quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

As Quebradeiras: a poética do movimento



As quebradeiras de coco de babaçu, é sobre isso o filme de Evaldo Mocarzel. Um tema simples, sobre o cotidiano simples dessas mulheres simples, fortes e belas, marcadas pelo trabalho duro e pelo canto festivo que afirma a vida a cada dia e a cada coco quebrado. Uma simplicidade que instantaneamente se transforma sobre o olhar investigativo e contemplativo do cineasta, que narra a vida dessas figuras, de seu universo simbólico, cultural, existencial, de forma a encontrar no enigma da visão a poética do movimento dos seres. O filme se liberta de toda a linearidade da narrativa, de toda palavra falada, de toda legenda racional, para se entregar por completo a sinestesia da imagem e do som. Esse é o resumo do filme, um filme de som e imagem, que fala através do corpo, que se constitui por movimento, sobre o trabalho, a cultura e a vida desses seres humanos.
As quebradeiras de coco de babaçu da região do Pará e Maranhão vivem do extrativismo vegetal, vivem do babaçu. Aproveitam tudo que a que a árvore pode fornecer, da semente fazem óleo, do broto se extrai o palmito, aproveitam as folhas para produzir esteiras e cestos, atividade que alimenta toda uma economia de subsistência ecologicamente correta. Mas tudo isso é só o obvio, pois o olhar que busca, que percebe, vai mais longe, perfurando por entre as inúmeras camadas da realidade... O vento soprando entre as folhas verdes do babaçu parece cantar na mesma toada que as quebradeiras, o movimento forte e preciso dos braços e da mão, que empunhando um porrete lascam o coco contra a pedra afiada, libertando de seu interior a semente da planta. Nesse documentário é o corpo quem conta as histórias e dele também que surgem as metáforas e signos que significam a vida dessas mulheres.
Por entre a floresta verde de arvores de babaçu caminha uma mulher, ela surge em meio ao verde formando na tela do cinema um quadro, uma tela plasticamente construída, que entre o movimento da imagem e a imobilidade da fotografia cria uma cena onírica, que lentamente lança o espectador atento e sensível a uma espécie de transe, onde tudo flui lenta e organicamente quase como se o espectador fizesse parte da imagem que observa. E não fará parte realmente?! No cotidiano elas que trabalham duro, também cantam cantigas e cirandas, preparam o alimento de cada dia no silêncio exuberante de suas casinhas simples de madeira, se banham no rio, e penteiam os cabelos sem a pressa dos que estão sempre a esperar. Em seu universo tudo é certo e natural, o tempo corre cíclico e ameno longe da turbulência da civilização moderna. O olho do cineasta liberta o espírito que passei pelo ambiente e absorve o espetro do visível dando origem a imagem que por sua vez toca o espírito do observador tanto quanto o do cineasta. Comunicação transcendental que se imprime por artifícios imanentes e materiais, tanto a câmera que filma, o projetor que produz a imagem na tela do cinema , e principalmente a retina que apreende a luz e transfigura as formas em signos visuais. Corpo e espírito trabalhando em fusão e relativa harmonia criam a visão, o olhar, o cinema.
É de um etnodocumentário que estamos falando, nele arte e ciência travam um dialogo rico e intenso sem fronteiras definidas ou preconceitos intelectuais. O cinema como instrumento de análise da realidade, da dinâmica de uma comunidade, um tipo de ciência da imagem unida a uma antropologia do olhar. E é exatamente esse o olhar de antropólogo que Mocarzel lança para tentar desvendar a linguagem peculiar das quebradeiras, linguagem que dá vida e significado a uma atividade aparentemente simples e tediosa, mas que no fundo comporta em si todo um universo de beleza incomensurável. O universo que se abre na imagem detalhista do seio negro da quebradeira que se banha no rio e que aos poucos se transfigura no coco de babaçu, dando tom a metáfora da vida. Como uma brincadeira da natureza o seio que alimenta o recém nascido leva a mesma forma que o coco que o alimentará na vida adulta.
Quanto pode falar uma imagem, quantas linguagens diversas podem nela se apresentar? Cabe ao cinema, em sua complexidade e multiplicidade, investigar!

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Profissão mendigo




Já existíamos desde antes da época de Cristo, quem por sinal muito simpatizava conosco, e até acrescentou a barba e os cabelos compridos a nossa estética . Na Grécia Antiga lá estávamos, perambulando pelos cantos das pólis, e assim mesmo pregava o cínico Diógenes, um dos mais ilustres dos nossos por também ser filosofo nas horas vagas, vivia em uma barril, na completa miséria, possuindo apenas uma caneca e um bastão. Era ele símbolo do desapego e da auto-suficiência ante o mundo. Louco e profeta, indigente e poeta!
Na Idade Média enchíamos a entrada das catedrais e igrejas, mas não era só para pedir não, tinhas uma indispensável função espiritual dentro da doutrina católica. Já que eles pregavam a compaixão e a piedade, ninguém melhor do que nós para despertarmos nos outros tais sentimentos. E se os católicos estiverem certos e esses sentimentos realmente abrirem as portas do paraíso, nós já ajudamos muitas almas a se salvarem por ai! E até hoje dizem ai pelo interior que Deus toma a nossa forma emprestada para testar os fieis.
Se pensarmos no surgimento do mundo capitalista também veremos uma importância singular de nossas atividades. Nossa desgraça e miséria tomada simbolicamente pelas forças do Estado serviam de exemplo para os trabalhadores, numa espécie de terrorismo mental. Vejam o que acontece aos que não se adaptam a disciplina industrial da nova ordem mundial ! E lá estávamos melancólicos e taciturnos, como almas perdidas no purgatório, cumprindo resignado nossa terrível função social, jogados como lixo nos becos sujos de Londres, Paris, e logo, por todas as metrópoles do mundo moderno. Peças chaves no entendimento da dialética moderna, somos sempre a outra extremidade do progresso capitalista, o lixo sempre defronte ao luxo! Desta forma assumimos também uma função metafísica frente ao funcionamento da existência.
Assim podemos ver o quanto é antiga nossa profissão, assim como a miséria sempre existiu na alma humana nós também sempre existimos nas diversas sociedades, para lembrar a própria miséria que caracteriza a condição humana desde nossos primórdios animais. Se pensarmos na atualidade confirmaremos nossa importância estrutural na sociedade capitalista. Nós que recolhemos as moedas excedentes dos bolsos e carteiras, nós que recebemos as pilhas de roupas velhas que entulham os armários, nós que apoiamos ongs e empresas com “consciência social” a ganhar exoneração de impostos, nós que tornamos mais felizes os natais e feriados santos para os que doam. E afinal o que seria de um sistema que se fundamenta na exploração sem ter os explorados, o que seria da economia mundial sem os ratos e abutres que comem os restos deixados para traz pelos leões e leoas do mercado?
Muito se elogia as grandes e nobres profissões da humanidade, médico, cientista, juiz, professor(hoje em dia nem tanto), general, presidente e tantos outros clichês. Para nós guardam palavras não muito afáveis, como vagabundos, indigentes, inúteis, e o melhor de todos, parasitas sociais. Não nego nenhuma dessas classificações, afinal historicamente eles fazem parte da imagem necessária a essa profissão. Temos de ser sujos, feios, maltrapilhos, desprezíveis, patéticos, dignos de dó, temos que pedir, implorar, enojar, comover, sem isso não atingimos nosso objetivo de sobrevivência (algumas moedas) nem nosso papel social(subconsumidores). Seria como tirar do médico seu estetoscópio, ou o carro do motorista! Se muitos nos acusam de enganadores e fingidos respondo com prontidão; toda profissão leva naturalmente alguns elementos cênicos não se pode negar, e se mentimos as vezes e isso parece uma atitude anti-ética, eu agora é que pergunto, e os políticos corruptos, as impressas sonegadoras de imposto, ou mesmo os que estacionam em vagas de deficiente, são eles mais éticos ou menos éticos que nós?
Dessa forma exijo o reconhecimento de nossa profissão, que não é melhor ou pior que nenhuma outra. Se um indivíduo se torna advogado é porque seu meio o possibilitou isso, ele não existiria em uma sociedade por exemplo sem leis, ou com uma lei única. O mesmo raciocínio pode ser aplicado a nós, entre muitas profissões escolhemos a que nós é mais próxima pela condição dos meios em que vivemos( poderíamos ter sido assaltante, traficante, pedreiro, catado etc), não existiríamos em um mundo sem exploração, sem desigualdades, ou que desprezasse a piedade. Não quero dizer com isso que os seres humanos são escravos das circunstancias, mas sim que muitas vezes nos acomodamos com elas, e quem terá coragem de jogar a primeira pedra em um homem acomodado? E digo mais, se vivemos uma crise de ética na sociedade podem ter certeza que isso não vem só dos mendigos mentirosos não, traspassa todas as profissões e escalas da sociedade, mas ainda assim fico feliz se a reflexão ética começar por nós, afinal cedo ou tarde ele tem que vir de algum lugar, além disso já assumimos tantas mazelas da sociedade porque não mais essa? Pelo menos que essa seja por um fim maior...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Crônica Urbana IV: Enquanto isso no ônibus



Sábado de manhã! Só quem trabalha no sábado de manhã é que pode dizer que tipo de infortúnio significa trabalhar no sábado de manhã. O dia está lindo, o sol radiante, os pássaros cantam, a manhã bela e clara surge quase como um convite da natureza para a felicidade, guardada no fim do arco íris, e você desperdiçando isso pegando um ônibus lotado para ir trabalhar. Mas na verdade pode ser o contrário também, pode ser uma manhã chuvosa, de vento frio e céu cinza, pouco convidativa, e no fundo tudo que você queria era poder permanecer na cama embaixo das cobertas passeando entre o sono e a vigília, mas não, você tem que pegar o ônibus lotado para ir trabalhar. Em ambos os casos o infortúnio é o mesmo, e se chama obrigação (palavra assustadora pela própria sonoridade), e tudo parece melhor do que cumprir uma obrigação, faça chuva ou faça sol.
Eu bem sei da importância do trabalho na vida humana, afinal é nossa capacidade de transformar e manipular diretamente a matéria através do trabalho que nós da uma posição privilegiada na cadeia alimentar. O trabalho entendido como uma forma produtiva e criativa que ocupa o vazio de nossa existência tediosa impedindo muitas vezes que pule-mos do primeiro precipício. Porém, nesse caso que chamo atenção não estou me referindo a essa forma ideal de se entender o trabalho. Estou na verdade me referindo ao trabalho como práxis, no senso comum, ou seja, atividade continua, cansativa e repetitiva que o império das necessidades capitalistas nos obrigam a fazer, forma de vender seu tempo e sua paciência em prol de uma atividade que na maioria das vezes é mal remunerada e mal valorizada, é essa idéia de trabalho ao qual me refiro. E acho que não estou de todo enganado se digo que todo mundo diz querer ganhar na sena para não precisar mais trabalhar, principalmente no sábado de manhã. Isso faz de certa forma o trabalho como o mal numero um do homem.
O fato é que todo sábado de manhã quando eu pego o ônibus lotado para ir trabalhar, desanimado por esse fardo e tomado por essa reflexão, me deparo com muitas outras pessoas que parecem levar o mesmo fardo e talvez a mesma reflexão. Mas o curioso dessa história, e ai essa é uma percepção puramente minha, é a atitude um tanto quanto filosófica do motorista do ônibus, que em uma reta, ao avistar um decline na pista da esplanada, acelera o ônibus e desce em alta velocidade, provocando nos passageiros aquele friozinho na barriga igual o da montanha russa. Isso acontece por causa da adrenalina, não sou nenhum fã de esportes radicais, mas sei que a drenalina é uma substancia produzida pelo corpo humano e liberada no organismo quando o indivíduo, por algum motivo, se depara com uma situação aparentemente de risco. Basicamente essa substancia aumente a freqüência cardíaca deixando o corpo pronto e atento para uma ação rápida e essencial. É isso que acontece no caso do ônibus, a velocidade, a descida brusca e repentina pela pista. Começa como um ansiedade latente, que logo se materializa em uma espécie de bolha de ar no estômago, que vai crescendo e subindo pelo esôfago conforme o ônibus aumenta sua velocidade na descida, no fim de um segundo essa bolha explode na boca em um leve suspiro que termina inevitavelmente com um sorriso de canto de boca. Essa sensação boba é suficiente para varrer para longe o desanimo. Agora muitos me perguntaram, o que tem de filosófico e mesmo de curioso nessa besteira banal que acabo de descrever?
O ponto é, essa atitude simples, e provavelmente despropositada, levanta um questionamento sobre o fardo e o desanimo da vida, seja lá por que motivos forem, por trabalhar no sábado ou no domingo, ou mesmo não trabalhar. A leve sensação de adrenalina provoca uma quebra no cotidiano, parece acordar todo mundo sacudindo o desanimo e chamando a vida a tona, como um formigueiro que você sacode para instigar as formigas. A adrenalina parece nos dizer que perante o perigo da morte ( mesmo que esse perigo seja um simples ônibus numa descida) nada mais importa a não ser preservar a vida, e assim qualquer fardo fica pequeno. E como se a sensação sentida confirmasse para mim mesmo que realmente estou vivo. O motorista um tanto quanto filosófico, parece utilizar de uma metáfora para afirmar a vida mesmo nas desavenças de sábado de manhã, para lembra aos tripulantes que antes de tudo vem a própria vida como problema essencial e insolúvel, ante isso qualquer preocupação ou angústia se torna mesquinharia. Assim sendo para os que perceberam a metáfora do motorista ou não, eu afirmo, viva a filosofia do banal, pois ele vai além da metafísica!

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Estética do observador




De minha quase que natural inclinação a solidão, associada a minha vivência urbana, típica das metrópoles cosmopolitas do mundo contemporâneo, acabei por desenvolver um alto grau de singularidade frente a sociedade que me rodeia. Sou só mais um transeunte anônimo caminhando pelas ruas da cidade, pelas praças, dentro dos ônibus e metros. E tudo que meus sentidos captam do mundo externo e automaticamente interiorizado e peculiarmente tornado meu, tornado eu. Tenho livre acesso as mais modernas e tecnológicas fontes de informação, que derramam por sobre meus olhos e ouvidos quase todo o conhecimento já produzido pela humanidade por séculos e séculos, e isso só depende de um simples movimento do meu dedo indicador por sobre o mouse. Voraz consumidor de saber, bebo conhecimentos de todos os tipos, de filosofia grega a bossa nova, de fenomenologia a geopolítica, de cinema novo a surrealismo...
A contradição disso tudo é que dentro de toda essa multiplicidade do mundo pós-moderno acabei por me torna incapaz dos mais simples exercícios de sociabilização. Praticamente um eremita na cidade! Tudo fora de mim parece estranho e hostil, já não sinto intimidade com nada. Participo dos mais diversas culturas e subculturas contemporâneas, mas não pertenço a nenhuma. Eterno estrangeiro de todos os lugares! Ando em meio as multidões, mas estou sempre só. Olho para as pessoas e sei que são humanas como eu, e ainda assim pareço pertencer a uma raça única e já extinta. E é daí que surge o que chamo de estética do observador.
Da janela de meus olhos observo o mundo lá fora. Ele é vasto e diverso, sem começo nem fim, sem centros ou mesmo periferias, caótico e extremamente organizado, sublime e apavorante! Um macro sistema global formado por inúmeros micro sistemas locais. Um enorme emaranhado de culturas tão iguais quanto diferentes. Em suma um enorme caldeirão de relações de poder, impossível de ser analisada como um todo por indivíduos que são só seus fragmentos, e por tanto só podem dar conta de analisar fragmentos. Querer mais do que isso é como pedir a uma formiga que explique o que é um continente.
Como já não tenho pretensões de entender a existência como se ela fosse totalmente inteligível e o racionalismo cartesiano me parece banal, me contento em apreciar o quanto posso ver e sentir do mundo e o quanto posso particularizar isso como meu mundo. Aprecia-lo como se dele não fizesse parte, como mero observador, como um voyeur da vida. Olhar para o mundo como se uma película fina, porém intransponível me separasse dele. Assim tudo se torna belo e contemplativo, até mesmo os horrores humanos, pois no fundo tudo se resume a estética, a como percebemos as coisas, todas as ideologias, filosofias e religiões não passam de estética. A sociedade é uma grande farsa, um teatro de máscaras, um filme sem fim onde sou o único expectado do lado de fora da tela, que na verdade é meu lado de dentro. Minha ânsia de mudar o mundo tende a se apaziguar, pois já percebi que o mundo não precisa de mim para muda-lo, ele faz isso naturalmente. E a mim, cabe apenas notar essas modificações e quem sabe escrever algo sobre elas como puro exercício de estética...
Obs: Estética é normalmente definida como o estudo do belo. Mas prefiro adaptar essa definição para o estudo das formas de percepção do belo.

domingo, 23 de agosto de 2009

Nas graças de Calypso


Eis que surge da penumbra a aguardada dama da noite, com suas vestes longas de sacerdotisa e seu canto de sereia, como a ninfa dos mares que aparece na canção “Porto alegre”. Seu semblante juvenil e inocente e sua voz de tom doce e melancólico enganam os ouvidos desatentos que acreditam que ela canta o romantismo do amor. No fundo sua música sensitiva e minimalista, rica em metáforas e imagens poéticas provoca um forte impacto sonoro, que me parece surgir principalmente de sua proposta dialética que contrapõe sua interpretação leve e angelical com suas letras existencialistas de temática pesada, que remetem aos sentimentos mais densos, complexos e perturbadores que surgem do âmago da alma humana. “Transito entre dois lados de um lado eu gosto de opostos...” diz ela. Assim suas músicas, que se iniciam sempre de uma simples levada de violão, cantam a desilusão, a busca e a perda, o medo da solidão e o desespero da incompreensão de uma existência incompreensível. Mas ela fale de amor? É claro que ela fale de amor, não se faz arte sem se falar de amor, explicita ou implicitamente. Mas a grande questão não é o amor em si, sentimento polimorfo e difícil de ser definido, mas sim a falta de amor, a busca incansável e constante por amor, as ilusões e desilusões do amor, os prazeres e as dores do amor, as transformações do amor que permanece e se modifica ao mesmo tempo. “O nosso amor não vai parar de rolar de fugir e seguir como um rio”. O amor incansável e insatisfeito que nasce e more a cada instante, sempre em busca de um segundo mais feliz. É esse o universo que se ergue de sua música, a completude dos opostos, a insustentável leveza do ser nas palavras de Kundera.
O mar, figura presente em vários de seus álbuns anteriores, surge nesse novo álbum como figura central presente logo no titulo “Maré”. E é assim que ela abre o concerto, cantando as várias imagens poéticas do mar, suas cores e suas formas. “Mais uma vez vem o mar se dar como imagem... Sendo salgado gelado ou azul será só linguagem... Estando emaranhado verde azul será ondulado”. Mar de Poseidon, mar de Iemanjá, mar de Adriana! O mar, espaço amplo, quase infinito de liberdade,ela abre o concerto com a canção ‘Maré’,e fecha com a canção “Sargaço mar”, composição de Dorival o poeta, o mar do mistério da morte, a perdição da alma e a salvação pela fé, o som eterno que toca sempre ao longe e embala as vidas dos homens e mulheres que sabem ouvir... Iemanjá odoiá!

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Vítima da Solidão



De repente eis que desperta assustado com um grito! Mais não um grito ouvido e sim um grito sonhado, que no fundo não tem diferença alguma. Os olhos arregalados pouco a pouco vão identificando as formas dos objetos no quarto escuro. O suor gelado escore-lhe pela face, o corpo treme, sente o coração palpitar tão rápido como se quisesse fugir do peito. Que dia era que mês? Não se recorda, menos ainda há quanto já estava ali dormindo, parecia que já haviam passados anos sem acordar, e ainda assim tudo permanecia igual. Atordoado pelo pesadelo que não se recordará bem, a não ser pelo gosto amargo de medo que ficou impregnada no pensamento, resolve se levantar. Olha ao redor. Todo o minúsculo apartamento de dois cômodos estava revirado como se ali passará a pouco um tufão. Roupas sujas cobrindo a pouca mobília, livros espalhados em pilhas desorganizadas pelo chão, as plantas mortas na janela por falta de luz e água e o cheiro forte que exalava da pia da cozinha repleta de pratos sujos e restos putrefatos de comida chinesa. Com a boca seca alcança na escrivaninha entre as latas vazias de cerveja uma garrafa de vodca barata, onde ainda restava um último trago. Só depois de sentir o gosto forte da vodca descendo pela garganta e que ele realmente percebe que está acordado e vivo, ou pelo menos meio vivo! A vida só se pode definir pelas sensações que proporciona, principalmente pela dor que é a prova da vida material. Com a mente ainda turva de pensamentos e imagens estranhas e desconexas, apanha um cigarro meio fumado no cinzeiro entupido de cinzas e bitucas e acende. Empurra paro o chão uma pilha de roupas que estavam encima da poltrona e se senta buscando na memória vaga alguma explicação para tamanha decadência. Enquanto fuma lentamente, fixa sua atenção na aresta superior entre a parede e o teto do quarto, onde uma pequena aranha em sua casa de teia acaba de capturar uma mosca e se prepara para devorá-la. Aquela cena simplória e quase insignificante a qual ele observa por um tempo indeterminado que não caberia nos ponteiros de um relógio, lhe atinge como um dardo que rasga o esquecimento e libera emoções perdidas ou escondidas na memória. E automaticamente a palavra Existência lhe vem na mente, por um instante ele se recorda de seus antigos estudos de filosofia, e sussurra para si mesmo: “Existir significa nascer e morrer, um movimento de eterno retorno, vazio e sem sentido ante a imensidão infinita do universo”. Novamente ele sente a prova de que está realmente vivo. Numa distração ele queima seu dedo com o cigarro, e mais uma vez a dor se lhe apresenta, fraca sim, mas análoga a tantas outras que ele já sentira dilacerando sua alma. Ou haverá alguma diferença entre a brasa que queima apela e o Amor que arde no coração, ou a Angústia que perfura fundo a alma do homem?! Caminha até o banheiro, quer ver sua face no espelho. Olha-se e não se reconhece! A barba grande, os cabelos desgrenhados, as olheiras fundas, a pele pálida quase sem expressividade, o rosto magro e ossudo. “Quem é afinal esse que se apresenta no espelho?!” Se pergunta sem resposta. “Eu não posso ser; no máximo é meu cadáver que insiste em vagar por esse mundo”. Desconcertado pela imagem de sua própria morte, em um movimento brusco ele quebra o espelho com um soco e sente seu sangue viscoso escorrer por entre os dedos. Agora o espanto e ainda maior, seu corpo parece lhe dizer que ele ainda está vivo, mas ele sente um Vazio no peito que lhe prova que sua alma dali já se foi. Ele resolve se deitar novamente, mas o medo lhe presenteia com a insônia. Na cama ele fica de olhos bem abertos ouvindo os passos de fantasmas e demônios que o espreitam pelo apartamento. As lagrimas lhe correm dos olhos para o rosto compulsivamente, e ele já nem se lembra mais o que lhe faz chorar, mas sente-se incapaz de parar. Levanta-se novamente e pensa em abrir a janela, talvez gritar por socorro. O medo lhe congela os braços e o máximo que consegue é observar pelas frestas da janela a rua deserta. Já devem ser altas horas da madrugada, madrugada que para ele parece nunca ter fim. Ele olha com estranheza a rua lá fora, como se fosse um estrangeiro e sente um absurdo desapego a toda e qualquer coisa. Cai uma chuva leve por sobre o asfalto, essa cena se perpetua como se o tempo houvesse morrido. De manhã com o nascer do sol a policia arromba a porta do apartamento, e o encontra sentado inanimado no chão ao lado da janela fechada. E nos jornais se publicam a manchete: “Morreu hoje em seu apartamento mais uma vítima da Solidão”.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O exilio



Quem são os sem alma? Para que terras remotas são enviados os que perderam sua alma? Porque crime hediondo foram eles condenados, que tipo de Deus cruel os flagela? São eles os exilados da alma! Nasceram sem essência esses pobres infelizes, e se algo conseguem construir logo se esvai como poeira, por isso são amorfos, sem rosto, sem pátria, sem família, sem iguais. Eternos andarilhos vagam por entre as multidões imperceptíveis e rapidamente desaparecem ao longe como fantasmas. Carregam na fronte a marca de Cain, estigma dos homens e dos tempos, marcados por seu ódio, marcados por seu mal, marcados por serem demasiado humanos! Neles não se pode fala, eles poucos podem ver, estrangeiros de todos os lugares, estranhos a tudo e a todos, degredados do mundo e de si mesmos. São eles os exilados da alma! Inconformados com o existirem como coisa, como bicho, como homem... Eles fogem, fogem do destino, da dor, da morte, do amor... Ao contrario da maioria dos humanos que se contentam com as ilusões da civilização eles fogem. Para onde fogem? Para todos os lugares e para lugar nenhum. São eles os exilados da alma! Na bagagem a solidão, nos olhos a desilusão, no peito o nada deixado pelo vácuo da alma que lhes foi arrancada. São eles os exilados da alma!

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Crônica Urbana III: Fui na esquina comprar "pão"



Ainda de dentro do carro ao longe percebi o movimento, que pode ser discreto a olhos desavisados, mas sem dúvida nenhuma é descarado aos olhos de quem sabem procurar. É interessante perceber isso, pois o mercado negro funciona basicamente como o comércio convencional, vendedor, clientes, produto, dinheiro... A peculiaridade dessa forma ilegal de comércio é o fato de que ele deve ser visível para uns e invisível para outros, a verdade é que quem procura sabe onde achar, e mesmo os agentes da lei sabem achar, mas quando estes não estão envolvidos com os vendedores caiem na hipocrisia comum e fingem que não estão vendo nada. Acho que só não sabe quem realmente não quer saber. E isso é até aceitável já que esse submundo não é nada agradável. A identificação rolou pelos olhares trocados rapidamente entre consumidores e fornecedores. Eles, os fornecedores, são gente experiente na área, conhecem o tipo certo de seus clientes de longe, não que exista um único estereotipo para esse tipo de gente, na verdade existem muitos e ainda assim não comportam toda a multiplicidade indefinível de consumidores que variam desde um senhor de meia idade e suéter de lã, até um adolescente de moicano verde. A coisa acontece mesmo é pelo olhar, pelo movimento, um sacando os interesses do outro.
Passamos uma única vez de carro na frente da comercial, e isso foi o suficiente para entendermos que ali tinha o que queríamos. Estacionamos no fim da rua e subimos caminhando lentamente. A rua estava cheia, era o lugar perfeito para esse tipo de compra, cheio de bares e boates. Indiscutivelmente em qualquer lugar do mundo onde há juventude e álcool há também todos os outros adereços para a diversão. É tão obvio perceber a ligação do álcool com todas as outras drogas que chega a ser engraçado o fato de que o álcool é legal e as outras ilegais. Paradoxo ou hipocrisia social?! Em meio às pessoas que transitavam e bebiam por ali percebemos e fitamos de longe os agentes do narcotráfico, eram três tipos espalhados pelo estacionamento. Como percebê-los é fácil, normalmente se passam por vigias de carro, meio hippes, meio mendigos, meio traficantes... Um deles se aproxima sabendo bem o que queríamos, do branco ou do preto ele pergunta. Era alto e magro como um esqueleto, de pele morena cabelos e barba desgrenhados, bermuda, camiseta e chinelos. Seu olhar mal encarado parecia dizer que ele era capaz de matar qualquer um por pouca coisa, talvez isso não seja bem a verdade, mas sem dúvida queria dizer que ele tinha uma vida dura e perigosa e disso acho que ninguém pode duvidar. Vinte do preto, dissemos há ele, esse tipo de compra é feita por códigos, às palavras tem de ser poucas e o movimento rápido, dinheiro em uma mão produto em outra. É claro que toda essa precaução não evita com que todos que passem percebam o que esta sendo comercializado, as pessoas sabem e até fazem fila esperando sua vez, como em qualquer shopping. Nós o acompanhamos até a parte de traz do comércio, um lugar escuro e com forte cheiro de urina, esse é o ambiente característico. Às vezes paro para pensar que aqui no Brasil tudo podia ser como na Holanda, por exemplo, você entra em um coffee shop escolhe a dedo o que vai fumar paga, fuma, pode até beber alguma coisa enquanto ouve uma música ou conversa com um amigo. Ah isso que é um país verdadeiramente capitalista! Proibir as “drogas”, que nada! Se tiver quem compre sempre haverá quem venda, proibido ou não. Enquanto aqui, entre os flagelados da globalização, nos afundamos em repressão e preconceitos arcaicos que só alimentam cada vez mais o mercado negro e a violência! E além de tudo somos nós os grandes fornecedores dos holandeses, ou seja, a um valioso produto internacionalmente apreciado que nós produzimos e vendemos, mas a grana acaba nas mãos de uns poucos mega-empresarios do narcotráfico, e nada sobra para o país que ainda acha lindo quando alguns governadores colocam batalhões e mais batalhões de policia para prender gente nas ruas e favelas e periferias, repressão jamais resolveu problema nenhum, só aumenta a violência. Afinal o narcotráfico gera empregos, e se for pela violência que ele é proibido, convenhamos,fabricas de armas provocam muito mais violência, então porque não às fechamos primeiro?! Assunto longo e controverso, eu sei...!
O sujeito retirou um pacote de uma vala aberta por detrás de uma loja, ratos e baratas eram só um detalhe da paisagem urbana. O submundo tem de ser asqueroso, escuro, perigoso, tudo isso leva um ar de mistério que me atrai, mas confesso que preferia um produto mais higiênico. Ele nos entrega nossa parte e recebe sua grana, tudo se finda em poucos minutos. Alguns dias depois vejo no jornal que uma batida policial prendeu traficantes de drogas nessa mesma rua, provavelmente nosso fornecedor há essa hora esta em cana, que importa isso paro o narcotráfico? Que importa isso para a sociedade? Mais um ou menos um não faz diferença, de onde veio esse infeliz existem milhões de famintos prontos para fazer o que for necessário para conseguir um pouco do que o mundo exige e nega a eles. Será que é assim que se resolve um problema social, proibindo determinado produto com a ridícula desculpa de que ele faz mal a saúde, e prendendo os que vendem para sobreviver?! Por de trás de tudo isso existe um sistema globalizado, cruel e explorador que gera milhões e move o mercado capitalista. Tolice é achar que por ser ilegal esse sistema se diferencia do restante, as diferenças existem, mas no fundo é a mesma coisa, poucos ganham muito e muitos ganham à marginalidade e a miséria!

quarta-feira, 15 de julho de 2009

A partida


Os últimos dias antes de minha partida são impregnados de um sentimento de angústia latente, como se meus temores se fundissem a minha ansiedade formando um terceiro elemento obscuro e pegajoso que emplastra minha alma. Nada atualmente nesse lugar me agrada, passo dias inteiros trancado recluso em meu quarto, entediado demais para colocar o nariz para fora, imerso em literaturas que consolam minha falha de viver. Não sei ao certo se por lá será diferente, mas e exatamente essa dúvida que alimenta minha ansiedade atroz, que em alguns instantes de pensamento profundo parece abalar toda a minha consciência e imediatamente caio em um profundo sono de fuga, como um guerreiro que levanta a bandeira branca por cansaço da batalha... É a imagem do futuro que me assombra! Ou será a falta de sua imagem?! A imprevisibilidade do movimento, o por-vir! Quando iniciamos um movimento, seja qual for ele, estamos saindo de um ponto que ocupamos no tempo e no espaço e nos dirigindo a outro ponto que ocupa outro lugar no tempo e no espaço. Saindo de um estado de repouso, transitando por um estado de movimento e regressando ao estado de repouso, tal é o caminho percorrido. Independente da questão do movimento ser ou não indivisível, pode-se dizer que o movimento em síntese é um não-estado, um não-lugar, uma não-coisa, um não-ser... Onde o movimento se apresenta? Ele se apresenta no espaço intermediário entre o ponto de onde se sai e o ponto aonde se chega, ou seja, não há movimento nos pontos, só há movimento onde não há pontos, no espaço livre, indeterminado, misterioso... Se o movimento é o que nunca é, pois é sempre o por-vir, nos termos eraclitianos,ele é como o pulo no escuro, o vazio, o nada, elementos não-existentes que determinam os existentes. O movimento não pode ser contido, comprimido, classificado, é como a onda do mar que depois que se forma não importa se vai quebrar na praia ou na pedra, o certo é que ela quebrará e isso terá efeitos. Sendo o movimento campo de liberdade e também campo de possibilidade isso gere ansiedade, expectativa do novo. Quanto ao Medo, parece claro que se existe no movimento espaço de possibilidade em contrapartida há espaço de incerteza, insegurança, desamparo... O movimento rumo ao ser, a eterna partida seguida do eterno retorno! Parto em poucas horas para uma viajem... não sei bem para onde, não sei ao certo para que fim... Sei que parto, iniciando um movimento tão instigante quanto pavoroso rumo ao intangível...

domingo, 14 de junho de 2009

Crônica Urbana II: cidade submersa




"Ergo em silêncio, como um pirata perdido,
Minha negra bandeira e me sento.
Mexo e remexo e me perco e adormeço,
Nas ruínas da cidade submersa.
Sonhando um mar que não conheço
Como não conheço as ondas do meu coração.
Restaram que nem cinzas, cicatrizes que tentei cobrir ainda com pudor.
Na memória tantas vagas, que nem posso repetir ou explicar, se me doeu azar,
Não quero saber de nada..."
(Paulinho da Viola)

A cidade, emaranhado de vidas humanas diversas tão diferentes quanto iguais, amontoado de pedra e carne que pulsa, mexe, se expande e se contrai em movimentos sinuosos, mosaico de fragmentos infinitos. Caos e Ordem que se confundem e dançam em meio às multidões, prédios e avenidas. Frente a isso nasce o citadino, o metropolitano, o urbanóide, filhos da Modernidade, percussores a Pós-modernidade. Trabalho, atividade, produção, máquina, mil mãos e mil olhos agindo ao mesmo tempo, Tempo curto, fragmentado em milésimos, segundos, minutos, horas, controlado pelo Deus-Relogio, senhor das metrópoles. Esse homo-urbanus, solitário em meio à multidão submerge no mar da cidade, ruas, becos, pontes, e ao mesmo tempo quase como uma forma simbiôntica sente a cidade também submergir em seu peito, dar forma a seus sentimentos e moldar sua própria alma. Alma que se sonha, profunda como o mar, alma desconhecida, misteriosa como as ondas do coração.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Crônica Urbana: sonho acordado



Atolado nas obrigações da vida cotidiana, contas a pagar, prazos a cumprir, relações humanas frias e necessárias, ando sem forças me arrastando como um morto – vivo pelas ruas da cidade. A obrigatoriedade da vida, a repetição interminável e tediosa das horas, dos dias da semana, dos meses e anos, tudo parecendo tão indispensável quanto inútil! Não sei por que diabos continuo com tudo isso! E na verdade nem gosto de levar essa reflexão muito adiante, pois acho que ela pode acabar com um tiro na cabeça ou algo assim (porque não dar um tiro na cabeça? me nego essa pergunta). Como uma sombra, transito entre a multidão imperceptível, os olhares parecem me atravessar, minha angústia muda se debate no meu peito. Espero o ônibus que me leva ao trabalho, e também que me traz de volta a casa, sempre assim, sempre igual. O que vou dizer agora pode soar como uma enorme bobagem, mas quem há de me recriminar?! Quem há de negar a singularidade humana, como eu existem milhões, como eu não existe nenhum. A subjetividade individual não segue lógica cientifica nem necessita comprovações empíricas, por isso ignoro o que em minha história pode parecer bobagem e sigo minha narrativa. Avisto de longe meu ônibus, o mesmo de todos os dias. Subo, olho indiferente o cobrador, que me responde da mesma forma, pago a passagem, atravesso a catraca, me sento ao fundo do veiculo, visto meus fones de ouvido, e ao som calmo e sublime de uma sonata de Mozart ou Bach inicio minha viagem. É nesse momento banal, nesse ônibus comum, que com música aos ouvidos e os olhos grudados na paisagem urbana externa que passa em alta velocidade, encontro meu oásis da existência, minha válvula de escape dessa grande realidade que me oprime. É nesse instante efêmero e indelével que me sinto verdadeiramente humano, com todo o prestigio da palavra! Os budistas se dedicam a longos exercícios de meditação na busca pela transcendência da existência, o encontro com a eternidade sublime do Nirvana. Me arisco ao ridículo ao afirmar que tal meditação para mim se encontra dentro de um ônibus. Ali naquele banco, isolado pela música de toda a atividade exterior ao meu redor, com os olhos fixos no movimento continuo da cidade, entro em uma espécie de transe tão profundo quanto o de Buda. Minha alma livre com as asas da imaginação dança e canta por entre mundos que jamais conhecerei. Ali naquele mero ônibus caindo aos pedaços me torno sociólogo, filósofo, poeta, político hábil e honrado. Penso no problema da fome mundial, o neoliberalismo destruidor, as condições históricas e culturais da América Latina, da África e da Ásia. A economia mundial, a globalização, as soluções futuras para o capitalismo decadente. Penso na luta dos Sem Terra, na igualdade social, me encontro com os maiores pensadores da historia. Debato, discuto, proponho, discurso... Entrego-me a reflexões metafísicas sobre o Amor e a Liberdade. Lembro Platão, Rousseau, Nietzsche e Sartre, eles me falam de suas vidas de suas histórias e de toda sua filosofia, instrumentos de transformação para a humanidade. Penso na literatura, na poesia, em tudo que escreverei e que engrandecerá todos os homens e mulheres que lerem. Penso na ética social, que luta contra toda forma de racismo, preconceito e discriminação negativa que assola as nações, penso na ética ambiental que tenta evitar a degradação de nosso meio ambiente, o aquecimento global e o desmatamento da Amazônia. Penso nas guerras e na paz, na vida e na morte. Quem que me olha de fora vê um indivíduo patético, de vestes acinzentadas e semblante melancólico. Ninguém pode imaginar que no infinito de minha alma correm os discursos mais nobres e grandiosos da história da humanidade! E somente nesse breve período de vinte ou trinta minutos de viajem que me permito a fuga da pequeneza cotidiana e me torno Herói de mim mesmo. Chega minha parada, cessa a música em meus ouvidos, voltam meus olhos para a realidade socialmente aceita, desço do ônibus, ficam para traz os sonhos, esperando uma outra viajem. No escritório me espera uma montanha de documentos...

segunda-feira, 18 de maio de 2009

I.

O exercício da observação moral: o que é a observação moral se não a análise das percepções empíricas e psicológicas das relações interpessoais, levando em conta os valores históricos e culturais das construções sociais? Buscando entre elas sentidos de Bem e Mal, certo e errado, útil e inútil, verdadeiro e falso, aceito e reprovável. Comumente na vida cotidiana esse é um dos mais apreciados exercícios entre grupos e subgrupos populares. Obviamente que em um nível mais baixo, com uma linguagem menos diversificada e profunda, com fundamentos intelectuais menos arrojados, no âmbito do senso comum isso é chamado, em tom pejorativo, de “fofoca”. Se não vejamos como se dão as coisas. O que faz um “fofoqueiro” ou “fofoqueira”? Penso que fala sobre a vida das outras pessoas, incluindo de diversas formas diferentes uma sensação de simpatia ou aversão, ou mesmo às vezes um posicionamento não muito bem definido. De ambas as formas (ressaltando as devidas diferenças) o que está envolvido basicamente é a emissão de uma opinião sobre os valores envolvidos em determinada ação ou reação humana. A “fofoca” se caracteriza como um comentário impertinente, insolente, repleto de uma pequena maldade cotidiana, desprovido de análise crítica, reflexiva e racional, fundamentado por conhecimentos televisivos, sentimentos pessoais e por outras fofocas. Enquanto na observação moral, tomemos como exemplo “A contribuição para a história dos sentimentos morais” de Nietzsche, existe uma reflexão crítica e racional sobre as relações interpessoais, que busca desvendar não os sentimentos que se fazem obvieis, claramente representados no teatro social, mas sim os sentimentos mais leves e obscuros que se escondem ao primeiro olhar e estão ligados aos interesses pessoais e/ou sociais de cada indivíduo. Buscando perceber relativamente às ligeiras variações na moralidade que ocorrem de acordo com o contexto histórico-cultural e as subjetividades humanas. Além do exército intelectual, crítico e criativo de tal tipo de observação, ela ainda possui uma importância ética tanto para vida individual quanto coletiva. Fora o fato de que na forma escrita à observação moral ganha grande valor literário, podemos observar isso em muitos romances e contos, como por exemplo, de Machado de Assis, anatomista de almas sempre pronto a extrair e analisar a moral de dentro da trivialidade das vidas humanas. Por fim, parafraseando o filósofo já citado; a observação moral ajuda a aliviar o fardo da vida e permite ganhar presença de espírito em situações difíceis como também distração em ambientes enfadonhos, que mesmo nas experiências mais duras da vida se possa ao menos extrair sentenças férteis para serem compartilhadas e tornar a vida pouco mais inteligível e interessante.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Escondida no banal



Hoje me deparei com a Beleza! Ela estava assim como quem não quer nada, perdida no mundo cotidiano, por acaso pegou o mesmo ônibus que eu. De repente ela se levantou do banco pouco a minha frente, e parou por um milésimo de segundo. E só essa aparentemente insignificante fração de tempo me permitiu lançar um olhar e pescar a imagem dela em minha mente. Com os olhos é possível possuir as coisas, os olhos abertos rumo ao externo, como as portas da consciência. Ela não trazia uma estética de cinema nem capa de revista, era simples e sensual, talvez mais comum do que eu esperava. Mas em um momento intangível, em determinado ângulo, em certa incisão de luz, o contraste com a sombra, a devida temperatura do ambiente e as propicias condições físicas e psicológicas. Eis que ali, nessa caótica e infinda estatística do real, me surge a Beleza encarnada em corpo de mulher! Nesse curto tempo meus olhos derreteram por sua esbelta silhueta, escorrendo da face, pelos olhos e lábios, passando pelos cabelos aos ombros, até chegar e reter-se no decote da blusa branca que exaltava as arredondadas curvas dos seios. Às vezes não sei ao certo se vi realmente o que vi ou se foi tudo imaginado! Acho que no fundo nem importa mesmo... Senti e o sentido se vale por si só, fora da Razão. Pude testar as forças de sociabilidade colocadas em mim, os laços da moral. Naquele instante eu só queria possuir a Beleza, tela para mim como um prêmio ou tesouro. Senti então a força de minhas raízes, meus instintos naturais. Se desperta minha fome mais antiga, a dos primórdios! Isso tudo no subterrâneo de mim, pois fora reina a aparente calmaria do dia a dia. Por sobre a película do normal, me encontro sentado, calmo e cooperativo como um bom e domestico humano civilizado. Meus desejos foram controlados e jogados para algum lugar escuro do inconsciente. Talvez voltem em forma de sonho erótico ou delírio cotidiano. O ônibus parou e ela se foi. O fato que fica registrado por minhas retinas é que em um ônibus comum, em um dia qualquer, entre pessoas normais, nem mais nem menos, vi a Beleza passar, inflar minha imaginação com seu sopro caliente e desaparecer sem nem mesmo acenar...!

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Ao Sr.Hashish



Há quanto tempo viestes do Oriente trazendo para nós, materialistas e céticos ocidentais, teus poderes e magias milenares! Concentra em ti, oh substancia viscosa, negra e aromática as forças ocultas da Erva da Natureza! Guardada pela sabedoria das mais antigas civilizações Humanas, trabalhada pelas mãos de sacerdotes, alquimistas e xamãs, és deleite para os que sofrem, és portal para os que buscam!
Com teus surpreendentes efeitos, intrigastes poetas e pensadores, homens da Experiência. E como já afirmou Baudelaire, conquista nossa curiosidade instigando nosso gosto pelo Infinito. O Infinito entendido, não como o absoluto, mas sim como a grandeza incontestável das possibilidades múltiplas da percepção. Para os tolos cegos pelo medo do desconhecido, és substancia maligna que enlouquece e fere a Razão, mas para os que conhecem tua história e sabem de ti aproveitar, és remédio para alma entediada, sedenta pela novidade que a vida cotidiana esconde nas falsas certezas da Razão.
Se falo como Cientista, posso chamar-te de “barômetro espiritual”, instrumento de grande utilidade para medir e analisar os estados da psique, perfeito para os que buscam a difícil harmonia entre os elementos antagônicos que se debatem no âmago de nosso Ser Humano. Se falo como poeta, posso afirmar que és chave para mundos estranhos e distantes, mas que apesar disso se encontram no fundo de nosso próprio peito. És portal sagrado para dimensões etéreas de nosso espírito, guia para a exploração dos Sonhos e da vastidão do Inconsciente. Flor do absurdo que brota na mente e mistura o físico ao espiritual, apurando as percepções e relativizando as sensações corpóreas.
Ao queimar-te com o fumo de meu cachimbo, observo tua fumaça densa desenhar figuras transparentes no ar, imagens que se formam se deformam, se desfazem e se refazem como metáforas ontológicas. Em teu entorpecimento encontramos o prazer, o corpo leve como pluma,a exaltação transbordante da alma inquieta, as pupilas dilatadas aptas a ver o que antes se escondia. De tua doce embriagueis viajamos em sensações ora tão agudas como a lamina de uma espada que abre caminho por entre a mata, ora tão dispersa como se fossemos a própria mata. Teu efeito associado à Arte, Literatura ou Cinema, proporciona delírios e visões tão grandiosas que nos tornam o próprio escritor, ou personagem de filme, viajando por outros tempos, por outras almas e experiências, ganhando novas e variadas existências, que nunca poderiam caber em uma só se não pelos caminhos da transcendência do Tempo e do Espaço que podes provocar.
Oh substancia melindrosa, que transitas entre o pavor e o êxtase, respeito-te e louvo-te, pois sei que no transe que me proporcionas, por mais efêmero que seja muito de dá e muito me tira. O que me dá aceito e agradeço como a um presente dos Deuses, o que me tira não me lamento, pois sei que a perda faz parte do lucro, assim como a Morte faz parte da Vida.

Advertências do poeta: “Que os aristocratas e os ignorantes, curiosos de conhecer prazeres excepcionais, saibam, portanto, que não encontraram no haxixe nada de miraculoso, absolutamente nada do natural excessivo. O cérebro e o organismo sobre os quais opera o haxixe oferecerão apenas seus fenômenos comuns, individuais, aumentados, é verdade, quando ao número e à energia, mas sempre fiéis as suas origens. O homem não escapará à fatalidade de seu temperamento físico e moral: o haxixe será, para as impressões e os pensamentos familiares do homem, um espelho que aumenta, mas um simples espelho”. (Charles Baudelaire)

sábado, 25 de abril de 2009

Angústia


Quando fui tomado de assalto pela dúvida, a dúvida fundamental aquela que persegue o filósofo, ela transpassou minha alma como uma flecha atirada pela Contingência e atingiu o âmago de minha existência. Assim provocou a primeira rachadura em minha armadura de Luz materna. Da rachadura todo meu mundo pueril ruiu, se desmanchando em cacos, como um espelho que se parte e leva a imagem antes projetada com tanta nitidez. Ilusão, fantasia, transformação! Desde então vago como a sombra da Sombra, por entre as ruínas de meu antigo reino de paz, agora já em franca decadência. Amontoado de certezas e símbolos mortos de um tempo que se foi e não voltara mais. Das lágrimas de minha eterna solidão, planto sementes de Dor na terra árida e rezo em silêncio para todos os Deuses e Demônios, para que nasçam logo as flores de meu Mal dando Vida a minha Morte.
Ainda me recordo dos dias de Inocência, quando o que eu via era só o que eu via, o mundo corria leve ao meu redor e a estrada era uma só. Agora que me dei conta da Liberdade, as estradas se multiplicaram tornando-se tortuosas e dúbias. Tenho Medo! Mas sei que desse Inferno posso criar a Vida, aquela que ainda não tive, aquele que se esconde no porvir do lado Vazio do Ser que nunca é.Porém o risco iminente existe e sempre há de existir, pois quem muito se aproxima do Abismo numa vertigem pode nele cair...

sábado, 18 de abril de 2009

Nascimento: reminiscências da vida



Quando da aurora da vida surgi em prantos das entranhas da mulher, chorava de dor e de medo do mundo que para mim se apresentava nefasto e misterioso. Do corpo que para mim, amontoado de carne, sangue e ossos, mais parecia uma prisão orgânica com seu terrível pesar, com suas funções e disfunções ainda inexploradas e por isso assustadoras. Braços e pernas a se debater, olhos sugando toda a luz do ambiente e formando estranhas figuras disformes, ouvidos captando sons, ruídos, vozes que ainda nada diziam, boca a soar um grito agudo que brota das profundezas de minha garganta. Descubro as sensações corpóreas e com elas a dor e a necessidade. Sinto fome, sinto cede, sinto frio, sinto calor, sinto mãos a me tocar, sinto a carne que me recobre e pesa. Assim nasci, homem e mortal! Mas porque fui condenado ao degredo da vida?! Porque fui arrastado com tamanha brutalidade de fora do tempo, da paz eterna do Nada, para as turbulências da existência?! A resposta quem traz é o Silêncio...!

terça-feira, 7 de abril de 2009



Quem sou Eu se não o outro, o que me vê e me ouvi?! O que me nomeia e invoca?!
Em certas manhãs em que, sabe-se lá porque, me levanto doente dos olhos e me ponho a pensar, quem sou Eu? Entre minha xícara de café e minha viajem de metro, me transporto para o universo paralelo de minha mente e chego à estação quase como um estrangeiro em terras distantes. No passar rápido das imagens pela janela do metro me lanço em reflexões sobre meu Eu concreto e meu Eu abstrato.
Quem sou Eu? Serei o uniforme que visto, de professor, faxineiro ou médico? O sorriso amarelo e cordial que colo ao rosto para falar com os clientes, na loja de sapatos, na concessionária ou na recepção?Serei Eu talvez, alguma de minhas funções, filho, pai, irmão, amante ou marido? Quem sabe posso ser Eu os lugares que freqüento a universidade, o bar, o cinema ou o banheiro? Posso ser a política nacional, a economia mundial ou quem sabe a religião católica? Ora triste, amargo, repulsivo! Ora feliz, simpático, amável! Quem sou Eu entre tantos afinal? Um ator errante de mim mesmo, sempre representando o que os outros podem ver! Um palhaço carnavalesco sempre trocando de máscara a cada novo espetáculo da vida cotidiana! Sou Eu o outro, o que não sou. Sou Eu o ego, o que serei. Sou Eu o papel social que assumo, aqui, ali e acolá. Sou Eu o que exigem de mim as forças sociais e o que penso delas. Sou Eu o que fizeram de mim e também o que fiz do que fizeram de mim! Nunca esquecendo o degredo a liberdade. Sou Eu muitos, múltiplos, infinitos... Sou eu o resultado inacabado e inacabável da dialética social entre a máscara que visto e a fenda dos olhos que dá para a imensidão inefável de minha alma!

"Neste caso, o sujeito assujeitado à sua identidade passa a ser um 'eu' em construção, em processo, numa poética identitária, poética entendida como processo, mutação, onde os limites se traduzem apenas no passado, numa cartografia de mim,numa identidade nômade". (Tania Navarro Swain)

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Dia de chuva...



Ao ver de minha janela a chuva cair, ouso seu som doce e delicado que inebria meus ouvidos e sua estética chorosa que apraz meu olhar. Em muitos momentos eu já a odiei! Suas repentinas chegadas tornaram por muitas vezes difícil minha vida de pedestre, minhas idas e vindas pela cidade. Hoje a observo resignado e satisfeito por sua beleza natural, pois ela cai e nada posso fazer para evitar. Resta-me apreciá-la! A metáfora disso para com a existência me surge como um raio de luz! A existência humana, apesar de suas misérias, dificuldades e sofrimentos, ainda assim é carregada de profunda beleza. Beleza essa que é a única coisa que pode transfigurar e validar toda a dor. Quero ser resignado com minha existência assim como aprendi a ser com a chuva. Assim como foi Édipo, ao aceitar sua própria tragédia e tornar-se herói. Assim com foi Ifigênia, que mesmo em prantos caminhou corajosa para a morte. Quero aprender com as tragédias gregas a aceitação estóica, melancólica e corajosa, dos que vivem, sofrem, amam e morrem. Pois esses meros mortais é que são os grandes heróis e deuses. Se este destino não pode ser mudado dentro dele muito pode ser criado!
A chuva cai forte lá fora...!

quinta-feira, 26 de março de 2009

OS ESPELHOS



"O que é um espelho? Não existe a palavra espelho — só espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos. — Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? Não são precisos muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem intensa e insistente adin-finitum, liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos, os reflexos dessa dura água. — O que é um espelho? Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. — Esse vazio crista¬lizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. — E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. De onde também voltaria vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho. — A sua forma não importa: nenhuma forma con¬segue circunscrevê-lo e alterá-lo, não existe espelho quadrangular ou circular: um pedaço mínimo é sempre o espelho todo: tira-se a sua moldura e ele cresce assim como a água se derrama. — O que é um espelho? é o único material inventado que é natural.
Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isencão de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para den¬tro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da pró¬pria imagem — então percebeu o seu mistério. Para isso há-de se surpreendê-lo sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha.
Devo ter precisado de minha própria delicadeza para não atravessá-lo com a própria imagem, pois espelho em que eu me veja sou eu, mas espelho vazio é que é o espelho vivo. Só uma pessoa muito delicada pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio, essa pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: Vi o espelho propriamente dito.
E descobri os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro alto bloco de gelo. Em outro instante, este muito raro — e é preciso ficar de espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para poder captar esse instan¬te — nesse instante consegui surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Depois, apenas com preto e branco, recapturei sua luminosidade arco-irisada c trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturei também, num arrepio de frio, uma de suas ver¬dades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso enten¬der a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água".
(Clarice Lispector)
Esse texto não é de minha autoria, mas sinto do fundo de minha alma que eu poderia te-lo escrito. Sei que ele fala sobre mim e para mim! Por isso digo sem orgulho ou modestia, que esse texto e tão dela quanto meu. Muito obrigado Clarice!!!

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Meditação de dia de domingo



Às vezes sinto um tédio quase mortal. Ele chega como quem não quer nada, sem aviso prévio ou motivos aparentes, e se instala em mim em um final de manhã de domingo. Meu espírito parece pesar uma tonelada! Tal estado se perpetua por todo o dia e só se finda com a chegada do Sono que anuncia um novo dia e cala as vozes da Angústia.
A idéia que faço do Tédio esta diretamente ligada à sensação do Nada. O tédio não é a falta do que fazer, pois isso nunca falta, mas sim a total falta de sentido para qualquer coisa que se venha a fazer. É como um cansaço antecipado, o desproposito da ação e até mesmo do pensamento, o esvaziamento de todos os motivos, de todas as razões e de toda a vontade. Não é a Morte, e mais como boiar na existência; a existência nua e crua, sem as quimeras da metafísica e os signos lingüísticos. É o se deparar cara a cara com o Nada, o mesmo que alucina a mente do suicida e encanta o pensar do filosofo.
Levanto inebriado de tédio e não encontro posição que me conforte, na cama, no chão, na cadeira ou no sofá, nenhuma atividade me apraz. Passo horas perdidas e sem marcação, a olhar sem propósito os livros na minha estante. Não leio uma página sequer, parece que não há nada a ser dito entre tantas palavras. Sento no computador e tento esboçar algum pensamento, quem sabe uma poesia me salve! Logo nas primeiras tecladas vem-me a sensação do Nada... Largo tudo e passo a nada querer. Tomado por um poderoso torpor, arrasto meu olhar sonolento por todos os cantos do quarto e cada detalhe me parece mais igual e trivial do que jamais poderia ser. Corpo inquieto, mente volúvel há divagar. Saiu na rua e perambulo como um sonâmbulo ou uma sombra perdida na eternidade, sem onde ir, onde chegar ou mesmo para onde voltar. Li uma vez em um conto de Voltaire um personagem afirmando que o homem nascera para viver nas convulsões da inquietude ou na letargia do tédio. Não me arrisco a dizer qual é a mais trágica, mas sinto agora no corpo a letargia como uma doença, o ópio dos ópios.
Não sinto nada, não quero nada, não sou nada... Preguiça de ser e de estar, só carrego mesmo comigo a ociosidade que me devora todo o esforço e me aleija todo agir. De vontade tísica e imaginação moribunda deito-me derrotado na cama como quem perdeu a guerra sem nem lutar. De olhos arregalados, fixos no branco do teto, sinto o vazio, infinito vazio... O dia passa em uma completa morbidez, como se o Tempo tivesse morrido, e quem matou foi o Tédio...

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Palavras ao Tempo




Quem é o Tempo se não o poderoso e cruel deus Cronos que devora os próprios filhos que outrora ele mesmo engendrara ao mundo? O que é o Tempo se não um rio de águas diáfanas e calmas, às vezes turvas e violentas; que nós carrega a vida entre instantes efêmeros e no fim de tudo deságua no Mar? Mar que na verdade é como a Morte, que não marca o fim da Vida, mas somente sua dispersão. Assim como o rio que corre e se difundi no mar, o Tempo corre e se difundir na Eternidade!Então será que perdemos tempo? Ou será que seu movimento de eterno retorno faz com que na Vida tudo se ganhe mesmo perdendo?! Que tudo passe mesmo ficando?! Que tudo seja mesmo não sendo?!
Tempo tão relativo quanto pode imaginar Einstein, mas creio não ser preciso nenhuma formula matemática ou especulação cientifica para notar que seus caminhos são vários, cheios de nuanças, às vezes bom às vezes mau. Para os mais velhos ele parece ser representado pelo Passado, o que se foi e o que se fez; Memória irmã mais velha da História. Para os mais jovens ele parece se definir pelo Futuro, quem se será e o que se fará. Planos, esperanças, ilusões; uma enorme angustia de esperá-lo contraposta a um imenso medo de desvendá-lo. E nisso tudo o que é o Presente? Parece ele um momento indefinível e sem extensão entre o que foi e o que virá. Se pensarmos que tudo o que temos é o Presente, nos deparamos com o fato de que não temos nada. Mas esse nada pode vir a ser tudo se percebermos que na verdade o indefinível Presente é fruto do Passado e do Futuro, modifica-os e por eles é modificado a cada geração, a cada nova reflexão, a cada nova história contada e reconta.
Sua essência é a sucessão, por isso ele flui e se estende silencioso como planta que cresce enquanto dormimos. Sua essência e a permanência, por isso ele se mantem eterno e dela nada escapa sem marcas.
Tempo é movimento imóvel, transformação intransformavel, o sempre no nunca! Passado, Presente e Futuro, ilusões do Tempo-Uno, que dialogando entre permanências e rupturas criam à multiplicidade do Tempo-Vivo. Tempo carrasco que é pai do engenho humano, Tempo ciclo velho contador de Histórias! Tempo-longo, Tempo-curto, Tempo-eterno, Tempo-tempo...!

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

A respeito da Liberdade...!


A Liberdade esse eterno paradigma humano! Essa vontade latente, esse constante buscar, esse inefável pensamento, esse fulgurante criar! E quem sabe no fundo o que ela é? Um Sentimento ou uma Razão? Uma coisa ou uma abstração? Um estado ou será uma condição?
Uma palavra de múltiplas facetas. De inumeráveis semânticas e morfologias, de várias línguas e povos. De diversas ideologias e filosofias, histórias e imaginação, muitas formas e cores, pesos e medidas. Paras uns é azul como o infinito do céu! Para outros, vermelha como o sangue das revoluções e escravidões!
E eu o que posso afinal falar da Liberdade?! Eu mero animal humano, pequenino vivente mortal do universo. O que sabe minha pobre consciência formada de tantos Iluminismos, Darwinismos e Marxismos?!
Eu digo com força da fé! Que o ser humano surge naturalmente provido da Liberdade, e que não me deixe mentir sozinho Rousseau! Porém, por motivos nefastos, o pobre ser humano perde sua Liberdade em seu próprio mundo, dentro de sua casa-alma. E depois, passa á vida toda em busca da desaparecida e amada Liberdade...E digo mais...!
Digo também que, cientificamente falando o ser humano nasce desprovido de Liberdade. Prezo a sua condição animal, biológica e material. Podendo assim ser um lobo ou um macaco ou se no caso de nenhuma outra espécie o amparar, um repolho como Kaspar Hauser. Mas se ele encontra outros humanos, ao longo do tempo ele vai desenvolvendo suas capacidades intelectuais, culturais e espirituais e pouco a pouco constrói sua tão esperada Liberdade.
Contraditória, assim é a Liberdade! E por isso é que essa palavra morre e renasce cada vez que um poeta a pronuncia. Morre e renasce a cada lagrima que escore, em cada boca que braveja, em cada coração que sangra! Pesada como a responsabilidade. Mas tão leve quanto o “ser”. Efêmera como uma escolha. Inalcançável como o Amor Romântico. Mas o que posso afirmar com verdade sobre a tal Liberdade, pulga atrás da orelha da humanidade. É que não há quem possa dizer com certeza se o ser humano há tem, há teve ou ainda há terá!

domingo, 11 de janeiro de 2009

O movimento rumo ao "ser"


Dialogando com minha nova amiguinha intelectual, apesar dos poucos 12 anos de idade, a personagem Paloma do best-seller clandestino “A elegância do ouriço”, cheguei a um pensamento muito interessante de cunho ontológico. Minhas duvidas e preocupações para com a existência me levam constantemente a me questionar sobre o que é o “ser”?
Em determinado momento do livro Paloma começa a observar o movimento dos corpos humanos, aparentemente uma observação comum, porém os olhos da garotinha estão carregados de analises filosóficas. Na cena a garotinha ao lado do pai assiste a um jogo de rugby na TV, e observa de forma extremamente perspicaz as coisas ao se redor: “A maioria das pessoas quando se mexem, bem, elas se mexem em função do que há em torno. Neste exato momento, enquanto estou escrevendo passa à gata Constituion, com a barriga arrastando no chão. Essa gata não tem nenhum projeto de vida constituído, mas se dirige para alguma coisa, provavelmente uma poltrona. E isso é visível pelo seu modo de se mexer: ela vai para. Mamãe acaba de passar na direção da porta de entrada, sai para fazer compras e, na verdade, já está fora, seu movimento se antecipa. Não sei muito bem como explicar isso, mas, quando nos deslocamos, somos, de certa forma, desestruturados por esse movimento para: estamos ali e ao mesmo tempo não estamos ali porque já estamos indo para outro lugar, se entendem o que quero dizer”. Uma observação do movimento digna de uma verdadeira fenomenologista! O que me interessa aqui é trazer essa observação para a questão ontológica, ao moldes existencialistas sartrianos. Paloma está procurando nos movimentos dos corpos humanos e mesmo das coisas um sentido estético sublime que faça parecer que a vida tem algum valor. Sem duvida nenhuma um ideal profundamente nietzscheano. Acho que não preciso dizer o quanto me apaixonei por essa incrível personagem! Vejamos então a continuação da observação de Paloma para que eu possa, então, fazer a minha própria observação. “Para parar de se desestruturar, é preciso parar de se mexer. Ou você se mexe e não está mais inteiro, ou você está inteiro e não pode se mexer”.
Partindo desse exemplo corriqueiro e facilmente imaginável sobre o movimento dos corpos e sobre a desestruturação dos mesmos, penso a questão do “ser”. Se pensarmos bem veremos que o indivíduo humano nunca chega a “ser” verdadeiramente enquanto está vivo. Se entendermos o “ser” como uma continuidade estável. Se definirmos a existência humana como uma constante modificação em direção ao “por-vir” ou nas palavras de Sartre um eterno reinventar de si mesmo, fica claro que estamos longe do “ser”. Isso se da pelo fato de sermos dotados como humanos de uma consciência. Sartre vê a consciência como uma atividade, um movimento em direção ao mundo externo. Em sua ontologia fenomenológica ele define duas formas fundamentais de “ser”, o “ser em-si” e o “ser para-si”. O segundo pertence à consciência humana, é caracterizado pela constante atividade, pela abertura para o mundo e pela capacidade de intencionar as coisas e objetos. O primeiro está relacionado as coisas, é fechado em si mesmo, inerte e opaco, ou seja, totalmente uno e não intencional, mas sim intencionável. Assim sendo, se possuímos uma consciência que é pura atividade e sempre está aberta ao mundo, nosso movimento rumo ao “ser” humano é análogo ao movimento dos corpos descrito por Paloma. Estamos sempre nos desestruturando nesse processo, porque paradoxalmente nós somos e não somos ao mesmo tempo.
Isso me leva inevitavelmente a pensar a nossa relação com o tempo. Se imaginarmos que o presente é um momento indefinido entre o passado e o futuro, chagamos a conclusão de que o presente é totalmente efêmero. Assim eu vejo o “ser”, como uma coisa totalmente efêmera. Tão leve quanto uma pluma que o vento arrasta pelos ares. Quase imperceptível como o orvalho que cai na madrugada e se acumula nas folhas, ou como a maresia que vem do mar. O “ser” é o que sempre passa e nunca fica, o único que fica é o eterno “por-vir” de que tanto falava Nietzsche.
Ao falar sobre o movimento, como já disse anteriormente, Paloma estava pensando sobre Arte, no sentido de valor estético que pode ser atribuído as coisas para que essas pareçam ter algum sentido, ela procura um “motivo existencial” (ver texto do blog com o mesmo nome). Para entendemos isso transcrevo outro fragmento das observações de Paloma, desta vez sobre um jogador de rogby que ela viu na TV fazendo um ritual típico desse jogo chamado haka: “Todo mundo estava hipnotizado por ele, mas ninguém parecia de fato saber por quê. No entanto, isso ficou claro no haka: ele se mexia, fazia os mesmos gestos que os outros (bater as palmas das mãos nas coxas, martelar o chão em cadencia, encostar-se com os cotovelos, tudo isso olhando nos olhos do adversário com ares de guerreiro irritado), mas, enquanto os gestos dos outros iam em direção dos adversários e de todo o estádio que olhava para eles, os gestos desse jogador ficavam nele mesmo, concentrados nele, e isso lhe dava uma presença, uma intensidade incrível... Assim, assisti ao jogo com atenção, procurando sempre a mesma coisa: momentos compactos em que um jogador se torna seu próprio movimentos sem precisar se fragmentar ao se dirigir para.” Paloma chama a atenção para o fato desse jogador se destacar, porque parece que a atividade que ele esta praticando basta-se em si mesma, e isso lhe da intensidade e verdade, ela denomina isso como “movimento imóvel”. E não é assim que deve ser a Arte afinal de contas? A Arte que se basta por si só como valor transcendente da existência humana! Pensemos que quando nos movimentamos alheatoriamente estamos em uma atividade inconstante, fragmentada, desestruturada e sem sentido. No caso de uma dançarina, ela também faz uma serie de movimentos fragmentados e desestruturados, porém ao som de uma música esses movimentos se unem em um todo complexo que da origem a dança, que por sua vez carrega um sentido estético profundo para quem dança e para quem aprecia a dança. Sabendo, portanto que a existência em si não carrega sentido algum, não tem nenhum valor “a priori”. Que mundo em si é um caos completo incontrolável e inexplicável. Percebemos o quanto é dificil não nos perdermos na veleidade do “ser”, e a importancia de buscarmos fazer do movimento da consciência rumo ao “ser” uma dança e não um cambalear tortuoso. Isso é encarar a aventura sem fim da constituição de nós mesmos!

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

A Compaixão


“Há em suma apenas três motivações fundamentais das ações humanas, e só por meio do estimulo delas é que agem todos os outros motivos possíveis. Elas são:
A) Egoísmo, que quer seu próprio bem (é ilimitado);
B) Maldade, que quer o mal alheio (chega até a mais extrema crueldade);
C) Compaixão, que quer o bem-estar alheio (chega até a nobreza moral e a generosidade)” .
(Schopenahuer, Sobre o fundamento da moral).
No ano de 1840, a Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de Copenhague levantou o seguinte questionamento: “A fonte e o fundamento da filosofia da moral devem ser buscados numa idéia de moralidade contida na consciência imediata e em outras noções fundamentais que dela derivam ou em outro principio do conhecimento?”. A fim de respondê-lo o filosofo alemão Arthur Schopenhauer escreveu um tratado filosófico intitulado “Sobre o fundamento da moral”. Pretendo aqui refletir brevemente sobre as idéias schopenhaurianas presentes nesse tratado que apesar de ter sido escrito no século XIX me parece muito útil para se pensar à contemporaneidade. Vivemos em um mundo capitalista de imensas explorações e desigualdades sociais, políticas e econômicas. Apesar de todo o desenvolvimento tecnológico do último século e a grande capacidade produtora das indústrias o mundo ainda é assolado pela fome e pela miséria. Apesar de todo o acumulo de conhecimento cientifico ainda sofremos de intolerância étnica e religiosa, e os conflitos armados matam milhares de pessoas todos os dias, a exploração descontrolada e irresponsável da natureza cada vez mais se agrava provocando catástrofes em todas as partes. Ao pensarmos essa realidade entendemos um pouco o que Schopenhauer queria dizer quando falava de egoísmo e maldade como formas de motivação da ação humana. Aparentemente tais motivações não só existem de sobra como são o que move o nosso sistema. Mesmo imbuindo de pessimismo a filosofia de Schopenahuer convida-nos a pensar o celebre sentimento da compaixão, o que significa, como se manifesta e principalmente qual é seu papel entres as relações humanas e a moralidade.
Ao pensar em compaixão lembra-se logo da filosofia cristã e do mandamento bíblico que diz, “amaras a teu próximo como a ti mesmo”. É inegável que apesar de ateu Schopenhauer tem uma enorme influencia da cultura judaico-cristã, porém em sua posição de filosofo e cientista ele busca desvincular a moral e a ética de conceitos teológicos. Comecemos do principio, para falar sobre o fundamento da moral deve-se compreender o que Schopenhauer entende por moral. A palavra moral vem do latim mores e quer dizer costume, filosoficamente falando moral significa conjunto de valores, regras, costumes e hábitos sociais. Assim sendo moral está diretamente vinculada à ação humana, ou seja, ao agir de um individuo para com outros. Como é de se imaginar a moral esteve presente de formas variadas em todas as formações sociais na história dos seres humanos, por isso ela é um campo muito vasto da filosofia estando sua reflexão presente em todos os grandes pensadores da história. A moral só existe no campo dos relacionamentos sociais, assim sendo Schopenhauer afirma que o contrario de uma ação moral e uma ação egoísta. Uma ação egoísta pode ser definida como uma ação vinculada somente às necessidades do eu, e totalmente desinteressada para com as necessidades de um outro. Portanto para uma ação ganhar valor moral, de justiça e caridade ela não pode ter como motivo imediato nenhum interesse egoísta. Uma ação moral deve levar em conta o bem-estar e o mal-estar de um outro como se esse fosse o meu próprio. Schopenhauer ao pensar em nossa condição animal descobre que a auto-preservação e a auto-satisfação são nossos instintos primordiais, assim sendo o egoísmo. A grande pergunta que se apresenta agora é: como negar o egoísmo sendo ele instinto primordial e agir para com outro como se fosse eu mesmo? É ai que começamos a tratar sobre a compaixão, sendo ela também uma motivação primordial nos seres humanos.
Ao nos percebermos como indivíduos, ganhamos facilmente a noção empírica da diferença entre o eu e o outro, é inegável que os seres humanos carregam muitas diferenças entre si, o que aumenta a separação entre cada um. Isso dificulta ainda mais a pergunta feita no parágrafo anterior, como é possível frente a essa inegável diferença entre os indivíduos agir com o outro como se esse fosse eu mesmo? Para solucionar esse dilema Schopenahuer aponta para a compaixão. Para o filosofo alemão a compaixão está ligada exatamente à destruição dessas diferenças que percebemos entre os indivíduos, ou pelo menos uma diminuição. A compaixão é o sentimento de identificação com a dor alheia, de tal forma que a dor alheia passa a ser sentida como a minha própria dor. Ao sentirmos a dor do outro como nossa própria, diminuímos essa diferença entre o eu e o outro e é ai que surge o verdadeiro valor moral como uma entrega desinteressada ao outro, suprimindo mesmo que parcialmente o egoísmo. A compaixão é o fundamento de toda moral e, portanto, de toda a justiça livre e de toda caridade genuína. A compaixão não pode por sua vez ser induzida artificialmente e externamente, ela provem do interior da alma é um sentimento que se manifesta naturalmente em qualquer ser humano, apesar de que não se manifesta sempre.
Disso pode vir a surgir outro interessante questionamento: porque somente a dor do outro é que gera a compaixão e não o prazer ou a felicidade? Schopenhauer ficou conhecido pelo seu profundo pessimismo existencial, que apesar de ser um tanto quanto radical é muito coerente, se não vejamos. Ele afirma que a dor e o sofrimento são as características principais da existência humana. Como diz o personagem Agamêmnon na tragédia “Ifigênia” de Eurípedes: “Não há entre os mortais um só cuja existência seja perenemente próspera e feliz. Nunca existiu alguém imune ao sofrimento”. Assim sendo Schopenhauer diz que a dor alheia desperta a compaixão porque a dor e o sofrimento são sentimentos positivos que se fazem sentir imediatamente. Enquanto o prazer e a felicidade consistem simplesmente na supressão temporária de alguma carência, portanto sentimentos negativos. É nisto que consiste o fato de que somente a dor, o sofrimento e carência despertam a compaixão e a necessidade de participação frente ao outro, enquanto a felicidade e a satisfação nos são indiferentes por serem estados negativos.
A noção de compaixão como uma forma de perceber a igualdade entre os seres humanos vem na historia da filosofia do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, filosofo iluminista muito apreciado por Schopenhauer. Além disso, toda essa fundamentação da moral na compaixão tem muito haver com a visão cosmológica de Schopenhauer, que acredita que tudo no universo provem de uma força metafísica irracional denominada Vontade. Se tudo que existe não passa de fenômeno dessa Vontade então no fundo todos os seres tem a mesma essência, inclusive os seres humanos. Essa é a fundamentação metafísica que Schopenhauer da a moral e a compaixão, isso é o que marca definitivamente sua ética.
Se pensarmos os dias atuais percebemos que a realidade contradiz os dizeres do velho filosofo. Em nosso sistema capitalista a moral se tornou materialista, e seu fundamento esta na busca de lucro e no acumulo de capital. Nossos principais valores como a competição, o individualismo e o consumismo geram um sentimento de total egoísmo, o que obviamente só agrava mais ainda a desigualdade entre os seres humanos. A ética schopenhauriana nos serve principalmente para pensarmos a relação com o outro. Se grande parte de nossos problemas vem do fato de termos nos tornado tão diferentes a compaixão surge como alternativa para tentarmos perceber o que nos faz iguais e nos uni. As teses de Schopenhauer são compostas por conceitos e idéias de filosofias antiguíssimas dos primórdios da humanidade como o cristianismo primitivo, o hinduismo e o budismo. Todas elas repletas de sabedoria milenar que de uma forma ou de outra sempre valem para as reflexões.
“...A multiplicidade e a separabilidade pertencem somente ao mero fenômeno, e é uma e mesma essência que se apresenta em todos os viventes. Assim, a apreensão que suprime a diferença entre o eu e o não-eu não é a errônea, mas sim a que lhe é oposta. Encontramos esta última indicada pelos hindus pelo nome de ‘Maja’, quer dizer, ilusão, engano, fantasma. Aquele primeiro aspecto é o que encontramos como sendo aquilo que está no fundamento do fenômeno da compaixão e mesmo como a expressão real dele. Seria portanto a base metafísica da ética e consistiria no fato de que um indivíduo se reconhece a si próprio, a sua essência verdadeira, imediatamente no outro”. (Schopenhauer, Sobre o fundamento da moral).