terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O Ser do será

                                                                                                   (Phenomene, Remedios Varo, pintura)


Quem me olha, não me vê,
Quem me vê, não me sabe,
Quem me sabe, já me perdeu.
Pois nada sou, se não o que serei.
Nada sei, se não o inventado.
Nada faço, se não passar...
(e Ser passado pelo amanhã)

domingo, 18 de dezembro de 2011

A Ponte: buscando uma ontologia do movimento

                                                                                                                                             ( A ponte, xilografia, Maria Bonomi)

De longe eu vejo a ponte que me liga ao horizonte. O horizonte que é o por vir, para onde tudo há de ir e há de voltar. Para lá eu vejo o além, o abstrato indefinido que se perde no olhar e se estende no infinito imaginado.
Na ponte a passagem, o preço da travessia. Puro movimento, movimento imóvel em si e sobre si. Que me leva a mim mesmo e ao desconhecido de mim, a outra margem do que sou. Do eu ao outro. O eterno desconhecido sempre a se relevar. O passo a frente ou atrás no agora. Pois na ponte não há direção, nem chegada nem partida, só translação. E o caos do tempo, logo abaixo, em sua ondulantes águas obscuras e misteriosas, ergue-a em eternidades labirínticas, em linhas sinuosas que escondem em seus emaranhados um destino incerto, como nas linhas de uma mão.
A ponte não se faz de pedra ou de metal, se faz de azul, um azul espiritual, profundo e frio como o firmamento, insustentavelmente leve, como o indelével ser  que não se constitui em essência fixa, mas em processo constante. A ponte passa, a ponte paira sobre a vacuidade branca. A ponte aponta para dentro, nos conecta ao mundo pelo avesso, pelo estofo. A ponte liga pontas oposta da mesma corda. De um lado um passado inventado, a memória embaçada, do outro um futuro virtual, a sombra das esperanças condenadas. A ponte nada é, está sendo, em um presente incalculável, o espaço da transformação, a expansão sem limites, a vida pungente e a morte logo a frente...
Aponte para a ponte e atravesse-se!

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

                                                                    (M.C. Escher)


A Imensidão é o que o Espaço não contem, assim como a Eternidade é o que o Tempo não conta.


Kant diz que o tempo e o espaço são categorias cognitivas do espírito humano, ou seja, instrumentos da inteligencia que servem pra tentarmos explicar esses dois fenômenos e de certa forma controlá-los parcialmente. Eles não podem apreender o que Kant chamou de a “Coisa em Si”, conceito tanto interessante quanto obscuro (metafísica). Eu diria que o tempo e o espaço são elementos da tal da “Coisa em Si” que se referia Kant. É claro que desde a teoria da relatividade de Einstein sabemos que tempo e espaço não se separam, pois um depende do outro. Mesmo sabendo disso é comum que utilizemos termos de medias distintos para o tempo e para o espaço. Metros e sentimetros dizem respeito ao espaço, enquanto horas, minutos, segundos referem-se ao tempo. Mas mesmo quando por equivoco pensamos nos dois separadamente, acabamos por depararmo-nos com suas naturais coincidências. O tempo de um lado é formado por dois elementos opostos, o que passa e o que permanece, posto que só é possível perceber o que passa, comparando com o que permanece, e vice versa. O espaço, por sua vez, também carrega um fundamento dual, ele contém, delimita, mas para fazer isso tem de se levar em consideração o que contem o espaço, o que esta fora dele, que colabora para compô-lo.
Pensemos na linguagem. Me parece ser o primeiro instrumento intelectual, abstrato e teórico que ajuda a nos relacionarmos com o tempo-espaço em sua dupla função. Com o tempo porque a linguagem carrega memória, através dela podemos nos referir a algo no passado ou mesmo no futuro( por isso os tempos verbais são tão importantes no aprendizado de qualquer linguagem), algo que já não necessariamente existe, ou ira existir. No espaço, a linguagem permiti presentificar o ausente, aproximar o distante, podemos nos referir a algo que não necessariamente esta presente no espaço. Se digo a palavra gato, mesmo o que o “Ser gato” não esteja ao alcance da vista, ele surge na memória, se aproxima do entendimento. É assim que percebemos que a linguagem esta atrelada a categoria tempo-espaço em suas funções básicas.
Todos as ferramentas ao longo da história criadas pelos humanos para medir o tempo-espaço, trabalham dentro de categorias matemáticas objetivas de medição. Para o espaço, régua, compasso, astrolábio, GPS. Para o tempo, diferentes tipos de relógios, de sol, de areia, de ponteiros ou digital. Dessa forma é valido que também existam categorias filosóficas e poéticas para tratarmos o tempo-espaço. Conceitos não mensuráveis por medidas matemáticas, conceitos de subjetividade, de relatividade, carregados de poesia e imaginação. Bachelard ao falar da palavra imensidão, toma-a como signo do infinito, e diz: “Poderíamos dizer que a imensidão é uma categoria filosófica do devaneio”. Igualmente cabe aplicarmos a mesma ideia a palavra eternidade, pois se a imensidão não pode ser contida no espaço objetivo, a eternidade não se pode contar no tempo objetivo. E o mais interessante é que a sim como o tempo não esta separado do espaço, a palavra imensidão e a palavra eternidade também unem-se em um sentido comum, o incomensurável. A imensidão e a eternidade são reflexos de nosso íntimo. Diz Rilke: “O mundo é grande, mas em nós ele é profundo como o mar.” É somente pelo devaneio que o ser humano pode apreender o tempo-espaço subjetivamente, como são ilimitados, a imensidão e a eternidade não podem ser compreendidas em termos puramente racionais, mas podem ser sentidas, apreciadas, fruídas pelo homem que medita sobre a intimidade de seu Ser. Nas palavras de Bachelard: “Em tais devaneios que invadem o homem que medita, os pormenores apagam-se, o pitoresco desbota-se, a hora já não soa e o espaço estende-se sem limites”.

sábado, 3 de dezembro de 2011

A Chuva que cai...

(Lívio Abramo- Chuva Paraguay, xilografia)

A chuva que cai... banha a madrugada com águas serenas e cobre toda a superfície da cidade com uma leve película translucida, multiplicando as imagens em mil gotas e poças d'água, como se tudo fosse feito de espelhos. Um espelho frente ao outro, refletido o infinito vazio de dentro de nós.
A chuva que canta soturna seus ritmos fluviais, batucando nas folhas das árvores um som constante e hipnótico, como o culto mistico a um antigo Deus, que parece transpassar os ouvidos até os sonhos, onde navego nas águas da eternidade. As águas em sua textura fluida, disforme, dissolúvel, efêmera, que escorre e penetra nas brechas da terra, que corre nas veias da vida como rios furiosos, nos corpos dos seres, nas almas aflitas, e leva os pesares todos para as profundezas distantes do abismo do mar. Cai chuva de vida, que as vezes soa como a morte, fundi-te a minhas lágrimas que também escorrem de meus olhos de ternura. E na noite fria lava os desconsolos, leva os desenganos, molha todo ódio e acalma meu coração. Nos teus ciclos ei de renascer como tu, transfigurada, transfiguradora, sempre velha e sempre nova, sem distinção no tempo, no eterno retorno de si mesma...

Sobre a escrita do aforismo

Um aforismo não pode ser uma máxima, ele é uma minima. Uma compilação de tudo que é essencial. É nisso que consiste sua grande problemática. O essencial é por um lado o obvio, o que está sempre presente, o invariável, por outro é o inapreensível, a raridade, a pedra filosofal. Por isso todo aforismo e composto de uma dose de filosofia e uma dose de poesia, intrínsecos nas palavras. Há nele uma busca pela Verdade e ao mesmo tempo uma total despretensão para com ela. Assim, o aforismo carrega em si uma ambiguidade natural, sua proposta é extremamente ousada, mas seu resultado é sutil, busca a complexidade, mas é banal, tenta ser sucinto, mas traz a amplidão, parece ser direto, mas possibilita muitas interpretações. O aforismo nasce de uma percepção instantânea em um penamento prolongado. É um exercício poético que presa pela simplicidade sensível e pelo bom humor despreocupado. É contra toda a arrogância intelectual e verborrágica dos que muito falam e nada dizem.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Se por um instante eu pudesse abolir as divisas do tempo-espaço, perguntaria a meu Eu de ontem o que será do amanhã; e a meu Eu do amanhã o que foi o ontem; assim faria o hoje.

domingo, 20 de novembro de 2011

Há dois tipos de ilusão na existência humana; uma que aprisiona a vida e a outra que ajuda a suportá-la.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O oco do mundo ecoa no fundo, no fundo de mim... E os ecos do tempo, vazio como o mundo, pungente e profundo habitam o por vir.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A Melancolia e o Sublime

   

Tudo começa com uma belíssima sinfonia de Wagner, da ópera Tristão e Isolda, um prelúdio do fim. Uma cena em câmera lenta (mesmo recurso utilizado por Von Trier no inicio do filme Anticristo) mostra os menores detalhes dos movimentos, os corpos humanos, o vento nas árvores, as cenas em sequencia parecem um tipo de sonho profético, que mostra um contexto calmamente assombroso e catastrófico. Uma noiva imergindo em um rio, pássaros caindo mortos do céu, uma mulher correndo no campo com uma criança no colo, um cavalo negro caindo pelo chão. Um segundo que se estende ao infinito, como se esse fosse o último segundo de vida. Do espaço sideral, no ritmo da sinfonia de Wagner, a primeira imagem do sublime se faz aos olhos do espectador, um gigantesco planeta se choca com a Terra em uma colisão mortal. Pode-se ver a destruição espalhar-se como uma onda por toda a superfície do pequeno planeta em processo de pulverização. Esse é o fim do mundo!
O cineasta Lars Von Trier apropria-se do tema apocalíptico do fim do mundo, tão na moda por causa das ditas profecias andinas sobre 2012. Mas afasta-o totalmente dos chiches de ficção cientifica hollywoodianos e cria uma metáfora para explorar sua visão trágico existencialista sobre a condição humana, trazendo a tona a questão da melancolia na sociedade contemporânea e mais uma vez (como já tivemos a oportunidade de assistir nos filmes Dogville e Manderlay) desenvolver sua mordaz crítica ao capitalismo de consumo e as instituições que o apoiam, como a ciência e a religião. Associando assim a tragedia cósmica da extinção de um planeta ao micro cosmos de uma família e seus conflitos, representados pelas irmãs Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg), que nomeiam os dois capítulos do filme e revelam dois polos opostos de visão de mundo que ao longo do filme vão se transformando, dando espaço para a emersão da visão do diretor.
Melancolia, primeira manifestação:
Em algum lugar do planeta, realiza-se um luxuoso casamento em uma suntuosa mansão, isolada em um campo de golfe. A noiva Justine repara curiosa no céu uma estrela vermelha distante. O casamento organizado sistematicamente por Claire e patrocinado por seu marido milionário, o cientistas especialista em astros John, não se desenvolve como o esperado, mas porque afinal? Justine arrumara um bom partido como marido, receberá uma promoção na empresa de publicidade que trabalhava, e o marido já havia comprado um terreno para construírem suas vidas, presenteará com a foto do local onde plantariam árvores de maça e se amariam sobre sua sombra, todo o futuro parecia previamente planejado para a perfeita felicidade. Mas de repente a noiva e ataca por um mal estar súbito, aparentemente sem motivos. Ela se torna sonolenta e desanimada, seu desconforto é latente, o sorriso para os convidados é como uma máscara que não encaixa em seu rosto. Ele encontra todo o tipo de desculpa para se ausentar da festa, o que logo passa a indignar sua irmã e o marido, muito preocupados com as aparências e com o cumprimento dos rituais sociais do casamento. Nada mais parece fazer diferença para Justine, o casamentos, os convidados, a família, o emprego, o marido, tudo se torna inútil e cansativo. Justine caim em uma profunda melancolia.
Para a psicanalista Maria Rita Kehl (no livro “O tempo e o cão”) , a melancolia surge ai como um sintoma social, a perda dos laços sociais provoca um profundo desalento do sujeito frente as exigências do outro. Justine começa a perder em seu imaginário suas principais figuras simbólicas de autoridade, a figura paterna e a materna. Ao revelar para mãe que estava apavorada e sentia dificuldades para andar, como se as pernas estivessem atadas por um fio, não recebe da mãe, amarga e pessimista, nenhum acalanto, mas sim seu frio concelho desesperador de, “de o fora daqui'. Quanto ao pai, mulherengo e fanfarão, ela recebe o total abandono, ele se retira escondido, mesmo depois que a filha quase lhe implora para ficar. Em uma cena emblemática, John tomado por Von Trier como simbolo do capitalismo contemporâneo, cobra de Justine, ainda confusa com seus próprios sentimentos melancólicos, que todo o dinheiro empregado no casamento (“os olhos da cara”) confirme sua felicidade. Assim vemos uma sociedade do consumo onde se vive o que o filosofo Pascal Bruckner denominou como título de seu ensaio “A euforia perpetua”. A obrigatoriedade da felicidade pautada no consumo desregrado de futilidades efêmeras e enganosas é o ponto principal da critica do filosofo que afirma: “nós constituímos provavelmente as primeiras sociedades da história a tornar as pessoas infelizes por não serem felizes”(Bruckner - A Euforia Perpétua). Impelida a um pseudofelicidade que não era capaz de sustentar, Justine acaba por desistir de tudo, frustrando os planos da irmã e se entregando a um profundo sentimento melancólico, que em crises lhe impedia até mesmo de se erguer da cama e andar. Incapaz de se virar sozinha Justine acaba sobre os cuidados da irmã e seu marido. Revelam-se então as personalidades do filme, de um lado Justine a irmã estérica, melancólica, doente, de outro Claire, a irmã, sensata, resolvida e equilibrada, e ainda sobra John, cientista milionário, hipocritamente feliz e seguro. Todos passaram por transformações e reviravoltas que revelaram seus verdadeiros temperamentos quando a morte surgir inevitável no horizonte de expectativa.
A melancolia, segunda manifestação:
No segundo capítulo do filme a melancolia, que antes surgira como manifestação subjetiva e abstrata em Justine, torna-se cada vez mais concreta. Um gigantesco astro batizado de Melancolia aproxima-se da Terra, sua gradativa aproximação trará a à tona nos personagens o medo arquetípico, o que está na origem de todos os medos humanos,o grande tabu, o medo da morte. Dizem que quando o ser humano tomou consciência da morte é que nasceu a filosofia, pois surgiu a necessidade de refletir sobre os porquês e para quês de uma vida finita (é claro que esse assunto também diz muito respeito as artes). É nesse tema que Lars Von Trier ira explicitar sua visão existencial de cunho nietzschiana sobre a condição humana. Assim três opiniões aparecem no filme. Jonh, acredita na razão cientifica, e afirma que Melancolia não atingirá a Terra, tentando assim acalmar sua mulher e filho. Claire, a pesar da confiança no marido, expressa o temor da incerteza. Se pensarmos bem, veremos que um dos aspectos mais paradoxais da morte é exatamente o fato de que ela é certa, não há dúvida de que todos morreremos um dia, mas esse dia e totalmente incerto, e ai nasce o medo, na dúvida. Justine depois de um primeiro momento de depressão e medo, que só depois mostra-se ligado inconscientemente a aproximação do astro, passa a uma mórbida tranquilidade e a um total desprezo por qualquer forma de esperança vã. A personagem antes estérica, vai se tornando serena e consciente. Por outro lado a Claire passa do medo ao desespero, o medo da morte pouco a pouco vai consumindo-a.
Em uma das mais belas cenas do filme, Claire segue a irma durante a madrugada até as margens de um pequeno riacho, onde vê Justine deitar-se nua sobre a luz azulada do grande astro Melancolia, como em um ritual erótico mistico de louvor a morte que se aproxima. Quanto mais Justine aceita o fato inevitável, mais a irmã entra em desespero, a ponto de comprar uma caixa de remédios para um possível suicido. A tensão dramática do filme se estabelece por completo quando Jonh, ao se deparar com a falha dos cálculos científicos, sente todas as suas certezas se dissolverem, deparando-se com o vazio existencial e coma inevitabilidade da morte. Ele caba se revelando como o mais desesperado, o que leva a covardia, e por isso ele se mata com os remédios de Claire, deixando sua esposa sozinha com o filho e a irmã. Nesse personagem a crítica de Von Trier as certezas cientificas é explicita, a razão cientifica assim como a fé religiosa tem a mesma origem e função, tentar dissimular a morte, em uma forma de negação.
Quando já certa do fim do mundo, Claire vai consultar a irmã, essa lhe diz: “A Terra é má, ninguém sentirá falta dela, estamos sós”. Através da personagem Von Trier emiti, assim como já havia feito em O Anticristo, sua visão de mundo trágica existencialista. A solidão e a insignificância humana frente a grandiosidade do universo, o vazio de todas as nossas conquistas e objetivos e o aspecto maligno da natureza, que é mãe e é madrasta, que caótica faz a vida se alimenta da própria morte e institui seu ciclo. Lembremos que o caráter trágico para Aristóteles envolve sempre um conflito e uma decisão, e termina de um jeito ou de outro conduzindo os personagens ao infortúnio e ao aniquilamento inevitável. Justine, desacreditada com vida, melancólica e pessimista, prepara-se para o fim. Mas na cena final do filme, surge a redenção, a única possibilidade de superarmos, não a morte em si, mas o medo da morte que nos mata ainda em vida. Essa oportunidade nasce da figura da criança (que na parábola nietzschiana contada por Zaratustra, surge como o espírito criativo e lúdico do homem), o pequeno filho de Claire revela seu temor pelo fim. E ao ver refletido no menino seu próprio medo, tomada de compaixão, Justine toma o que eu denominei de postura artística, e cumpre um ato poético-lúdico frente a morte, ao dizer para o garoto que poderia ser construída uma toca mágica que os protegeria. Assim ela e o garoto cortam alguns galhos e fazem precariamente uma frágil toca no jardim, onde os três se colocam para enfrentar a colisão. Ai é que Von Trier revela o aspecto lúdico essencial do espírito humano, nossa maior arma contra o medo da morte, nossa infinita capacidade de sonhar, de imaginar e de simbolizar nossa vasta interioridade. Isso é a arte, como a mentira contada por Justine a seu sobrinho para acalmá-lo, a arte mente para tornar suportável a vida, como afirmava Nietzsche. A arte como a mais doce e delicada mentira! A Mentira sagrada! No gesto de Justine está a mais poderosa resistência do espírito humano frente ao supremo mal, o limite intransponível e incompreensível, a gratuidade da vida. As teorias sobre a arte desde Aristóteles até Freud, sempre falaram do processo de sublimação que a obra de arte pode proporcionar aos piores sentimentos humanos. Desta forma a arte age diferente das religiões e das ciências, ela não nega, mas integra a morte de forma que o medo e o desespero sejam sublimados pela beleza, e assim transformamos o tabu em totem, o supremo mal em supremo bem, em um processo de transvaloração. A arte não pode trazer nenhuma imortalidade (desejo vazio e contraditório), mas pode lançar-nos para além da esperança e do medo que oprimem.
A estética do sublime:
Não é por acaso que Von Trie constrói seu filme sobre a estética do sublime. Para Kant o sentimento do sublime nasce de uma desarmonia entre a natureza e a razão ao se perceber o terrível, o indeterminado. Esse sentimento por mais esmagador que seja gera um estranho agrado. É como se fossemos tomados pela visão de algo que é tão grandioso e incomensurável que vai muito além dos nossos sentidos, que só pode ser apreendido pelo espírito, assim a firma o filósofo: “O que nós chamamos de Sublime é aquilo que é absolutamente grande. Este termo designa aquilo que é grande para além de toda comparação...O sublime é qualquer coisa que, pelo simples fato de ser pensada , revela uma faculdade da alma que ultrapassa qualquer medida dos sentidos” (Kant – Critica do Juízo de Gosto). Dessa forma Von Trier inicia o filme com uma imagem sublime, de um ângulo externo a Terra, no espaço sideral, vemos o astro Melancolia chocando-se com o planeta Terra. No final do filme vemos a mesma cena, desta vez de um ângulo interno da Terra, do ponto de vista dos minúsculos seres humanos. Ambas as cenas invocam imediatamente o sublime, a grandiosidade do Melancolia e a peques da Terra, mais que isso, a grandiosidade da morte que vai muito além de nosso entendimento racional, mas que é sentida na alma, a morte de um planeta inteiro, bilhões de vidas, de seres que levaram bilhões de anos para se desenvolver, desaparecendo em um único instante efêmero. Quantos mundos acabam no fim do mundo? Quantas vezes o mundo pode acabar?Afusão das imagens com a sinfonia de Wagner, o prelúdio de Tristão e Isolda, causa uma especie de catarse visual-sonoro. A presença da música torna-se essencial para a criação do sentimento do sublime, um dos principais trunfos do filme. A intensidade oscilante da música traz uma tristeza profunda, paralisante e hipnótica. É como se a gravidade das imagens na tela do cinema nos atraísse, e também nos arrasta-se para o mesmo final trágico dos personagens do filme. Assim o fim do mundo para Lars Von Trier torna-se uma metáfora para a condição humana, marcada por sua finitude, pela gradativa e melancólica aproximação da morte. Que no fundo não nega a vida, mas molda-a por dentro, instituindo seus parâmetros, e acaba se tornando o motor para a criação do espírito, que não aceita a ditadura do materialismo biológico e se lança na arte e no lúdico, ao infinito.



terça-feira, 11 de outubro de 2011

                                                           (Maria Bonomi - Sappho I)

Se a morte lhe apavora, canta a Morte, torna-a poesia . Assim o tabu vira totem, e do supremo mal extrai-se a Beleza, que regenera toda a existência incontornável.

domingo, 9 de outubro de 2011

                                         (Goeldi - xilogravura)

No alto de minha torre de marfim, sentado frente a janela, contemplo a imagem melancólica da cidade cinzenta la fora, com o som sereno da chuva que cai por sobre as árvores. A fumaça de um cigarro misturado ao vapor de uma xícara de café dissolve os pensamentos em silêncio interior. Me sinto no auge de minha solidão tal como a matriz sólida de uma xilogravura, imóvel no tempo, imagem imemorial, que guarda em sí todas as virtualidades do possível. E assim o fato banal se torna poesia. Despreocupado, tomo o livro de minha vida nas mãos e o folheio sem ordem estabelecida, como em um sonho...

terça-feira, 27 de setembro de 2011

A soma da finitude do indivíduo com a eternidade do Ser, gera o sagrado Sim, que afirma tudo que é bom e que é ruim.



domingo, 25 de setembro de 2011

A reinvenção do samba; a estética contemporânea; uma nova imagem de mulher; a metáfora do carnaval no Brasil; a (re)volta das marchinhas

      

  De roupas negras como em um ritual fúnebre, Adriana Calcanhotto reencarna o samba no palco e toma-o como guia de sua nova criação musical, o Micróbio do Samba. Afirmando-se como “impostora do samba” ela serve-se livremente dos elementos primordiais desse ritmo que é historicamente um dos pilares da cultura brasileira, simbolo de um povo integramente miscigenado. Da força dos batuques (tamborim, agogô, cuíca) de tradição afro-brasileiras (referencias diretas a Mangueira), a levada quebrada e malemolente do violão. Dando continuidade a uma tradição do cancioneiro popular, em suas letras (esse é seu primeiro álbum somente com composições próprias), a crônica dos relacionamentos amorosos entre homem e mulher surge como tema central, seguindo a linhagem de celebres compositores que também narravam as belezas e desventuras do amor na vida cotidiana, das paixões não correspondias, dos abandonos , traições, mentiras e reencontros, como Chico Buarque, Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho, e principalmente seu conterrâneo do sul, Lupicínio Rodrigues. De quem ela tomou emprestado o titulo do álbum,que se tornou uma perfeita metáfora para sua obra, posto que é samba sem ser samba. É com certeza algo que partiu do samba e foi além, como se o samba surgisse mesmo com um parasita, um corpo estranho que através da permanência no tempo se fundiu a seu hospedeiro em uma metamorfose criadora que gera o novo, ou a reinvenção do antigo. Assim ela pratica um exercício brasileiríssimo e de influencia oswalde-andradiana, a antropofagia. Só que agora já não é exatamente como os tropicalistas, que renovavam sua musicalidade unindo o tradicional da cultura brasileira a elementos externos como o rock e da contracultura norte-americana. Na verdade ela se alimenta do próprio passado cultural brasileiro, uma antropofagia de si mesmo, uma volta do Brasil ao Brasil. Não como no paradigma do maguebeat, de unir o local ao global (como simboliza a capa do primeiro álbum de Chico Sciance, “Da Lama ao Caos”; uma antena parabólica (referencia ao álbum de Gilberto Gil, “Parabolicamará”) ligada ao mangue), mas sim na questão de ligar o contemporâneo ao tradicional, reciclando o Brasil de ontem no Brasil de hoje. Mesmo porque atualmente é difícil classificar o que seria um elemento externo, já que vivemos o auge da globalização, onde tudo está, mais do que nunca, interligado. O problema se deslocou dos espaços (interno e externo/global e local) para a sincronicidade e dos múltiplos tempos.
Como compositora habilidosa, Adriana revê sambas antigos, que criaram a imagem do Malandro (arquétipo da mitologia brasileira), mulherengo,sambista da mangueira, sempre esperando o carnaval e pronto para deixar uma mulher aflita em sua ausência. Mas Adriana inverte a situação e traz a narrativa para o olhar da mulher contemporânea pós-feminista, criando um tipo de anacronismo dentro das próprias estruturas do samba, entre o ritmo e a temática narrativa da canção. Uma ponte entre o passado e o presente. O ritmo mantem-se ligado a elementos do tradicional, enquanto a letra revela as novas condições da mulher (em em uma era onde temos a primeira presidenta do Brasil, ou seja realmente muita coisa mudou para as mulheres). Surge uma nova imagem de mulher, não mais uma mulher ingenuamente apaixonada e entregue a seu homem, querendo agradá-lo de todas as formas para tentar prendê-lo, como canta Chico Buarque: “Com açúcar com afeto, fiz seu doce predileto, pra você parar em casa”. Ou a mulher passiva e amorosa, sempre disposta a perdoar, como se ouve na mesma música: “Quando a noite enfim lhe cansa, você vem feito criança, pra chorar o meu perdão...ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado, como vou me aborrecer...logo vou esquentar teu prato, do um beijo em seu retrato e abro meus braços pra você”. Ou na música de Ary Barroso, “Camisa Amarela” eternizada na voz de Nara Leão, que conta de uma mulher que corre atrás do marido no carnaval, mas só o reencontra depois da quarta-feira e ainda afirma: “Gosto dele assim, passada a brincadeira ele é pra mim”. Agora o que se tem é uma mulher em pé de igualdade com os homens, independente e decidida. Uma mulher do samba, que larga o homem em casa e vai pra mangueira, como mostra a canção “Ta na minha hora”. Pois agora ela já não depende só do amor de um homem, ela tem outras prioridades, sua vontade é autônoma, e assim ela diz ironicamente: “Não chora, neguinho não chora, o meu coração e verde e rosa”. Uma perfeita inversão da música de Nélson Cavaquinho “Vou partir”, onde o personagem masculino diz: “Vou partir, não sei se voltarei, tu não me queiras mal, hoje é carnaval”.
A questão da retomada de vida da mulher abandonada, já era tratada na canção “Olhos nos Olhos” de Chico: “Quando você me quiser rever, já vai me encontrar refeita, pode crer. Olhos nos olhos,quero ver o que você faz, ao sentir que sem você eu passo bem demais”. Porém nela, apesar do eu lirico feminino afirmar estar refeita, e dizer que outros homens já a amaram melhor que o antigo, ainda se sente no tom da música um sentimento de tristeza não sublimada, um leve sofrimento latente. Mais parece na verdade, uma vã tentativa de fingir aceitar a perda de um amor que ainda doí. Há um jeito orgulhoso e dissimulado em suas afirmações. O que dizer então da expressão de desespero da personagem da música “Atrás da Porta”, de Chico, interpretado com uma paixão lancinante por Maria Bethânia: “Quando olhaste bem nos olhos meu
E o teu olhar era de adeus, juro não acreditei, Eu te estranhei, me debrucei, Sobre o teu corpo e duvidei,E me arrastei, e te arranhei,E me agarrei nos teus cabelos, Nos teus pelos, teu pijama, Nos teus pés, ao pé da cama, Sem carinho, sem coberta, No tapete atrás da porta, Reclamei baixinho...” Uma mulher desolada, que não compreende e não aceita a separação. Uma mulher que trai, mas para se vingar do amor desprezado, adorando pelo avesso e afirmando na negação sua dependência: “Dei pra maldizer o nosso lar, Pra sujar teu nome, te humilhar, E me vingar a qualquer preço, Te adorando pelo avesso, Pra mostrar que ainda sou tua, Só pra provar que ainda sou tua”. Mas Adriana retrata outra atitude para situações semelhantes, como na canção “Pode se remoer”, onde a personagem afirma claramente e com segurança sua vingança amorosa bem sucedida e seu desprendimento do antigo amor, agora menosprezado por ter sido facilmente substituído:” Pode se remoer, se penitenciar, eu encontrei alguém que só quer me beijar”. Ou então em em “Beijo sem”, onde a personagem feminina se transforma depois de uma separação, e passa a correr atrás de seus desejos, decidida e sem nenhuma timidez ou empecilho moral, caindo então como antes faziam os velhos sambista, na orgia da noite da boemia: “Eu não sou mais, Quem você, Deixou, Amor,Vou a lapa, Decotada, Viro todas, Beijo bem, Madrugada, Sou da lira, Manhãzinha, De ninguém, Noite alta ,É meu dia, E a orgia, É meu bem”. Essa nova postura das mulheres não aparece só nas letras, está explicita na própria postura de Adriana Calcanhotto. Uma cantora, compositora e interprete contemporânea, não só talentosa, mas bem sucedida no mercado da música brasileira, bem aceita na mídia, e que mesmo assim não se permiti cair na reprodução massificadora, nem no modelo pronto do sucesso fácil, na imagem pública banalizada e satura pela TV. Ela esta sempre se reinventando, cada álbum seu é diferente e inovador. E esse último entrará sem dúvida entre as perolas da MPB, um clássico de nascença. Que segue bem a linha da também renovadora do samba Marisa Monte, que a poucos anos atrás revolucionou com o álbum “Universo ao meu redor”, a contenporanização do samba, também por uma ótica feminina, com canções tão belas como as do Micróbio do Samba, inclusive gravando uma das canções de Adriana, 'Vai saber”. Mas é bom deixar claro que se essas mulheres do samba, que estão mais fortes do que nunca, não são as únicas nem as primeiras, pois temos em nossa história uma linhagem de talentosas cantoras do samba, só para sitar algumas; Elizeth Cardoso, Elza Soares, Nara Leão e muitas outras.
No palco Adriana fez-se performance, sambando em movimentos lentos e caricatos feito um boneco de cordas tipo Arnaldo Antunes (incluindo o figurino que também leva um pitadinha do estilo dele, roupas largas como um pijama, panos sobre panos). E também uniu a performance a vertente experimentalista tão cara a música brasileira, de Hermeto Pascoal a Tom Zé. Ela tocou prato com faca, louça na bandeja, e na era do computador, trouce uma aparelhinho que era uma especia de cuíca eletrônica, modificou a voz com um megafone, criou batidas em aparelhos eletrônicos que ficavam sobre uma mesa, tipo filmes de ficção cientifica. Livrou-se das partituras tradicionais sobre o pedestal com um secador de cabelo (eletro demostênico, antigo simbolo da futilidade feminina, tornado arma), e elas esvoaçaram pelo palco, como o simbolo de um recomeço musical, o fim das amarras e do controle das partituras caretas. Além disso renovou um clássico de Paulinho da Viola, “Argumento”, e utilizou a música em um sentido metalinguístico, quando o refrão diz: “Tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim, olha que a rapaziada está sentindo a falta de um cavaco de um pandeiro ou de um tamborim”. Nesse caso a letra refece a própria desconstrução musical feita nos sambas de Adriana.
Por fim não poderia deixar de comentar a retomada marcante no álbum, do mito carnavalesco, fortemente presente em toda a história do samba. Mas o carnaval, não no sentido banal de festa da carne, mas em um sentido profundamente existencialista, como uma trégua para o ser humano, frente o inevitável destino de sofrimento e morte, uma libertação da frivolidade tediosa do cotidiano pelo transe do êxtase da multidão, dos batuques, da alegria contagiante e embriagante. Esse é o verdadeiro sentido do carnaval enquanto metáfora de uma existência sofrida e inútil, mas que pode ser absolvida por um único instante fugas e eterno de liberdade, prazer e sonho, como uma tipo de Sim nietzschiano, afirmando a vida. Como diz Caetano Veloso, “carnavalizar a vida coração”. São inúmeras as letras de samba que tratam do tema carnaval, que está presente na música “Tão chic” do Micróbio do Samba, com direito a confete, dedos erguidos ao ar, e ao final, braços abertos ao infinito. A letra diz assim: “Tão chic, tão cheia de sí, tão triste, me ousa, a vida voa, baixinho, se vai ver, já é, eu quero teu amor eterno, até a quarta-feira”. É claro que todo ilusão tem seu fim, e normalmente e mais rápido do que gostaríamos, por isso a quarta-feira é sempre de cinzas, pois marca o fim do êxtase carnavalesco. Assim também diz um samba de Chico Buarque: “Carnaval, desengano, deixei a dor em casa, me esperando, e brinquei e cantei e fui, vestido rei, quarta-feira sempre desce o pano”.
A marchinha de carnaval também é tradição dos carnavais de rua no Brasil. Caetano lançou nos anos 70 um celebre álbum intitulado, “Muitos carnavais”, uma magnifica retomada da marchinha carnavalesca. Adriana também passou por essa tradição, e também inverteu o sentido comum das letras com seu olhar feminino e contemporâneo. Mantendo o tom escrachado e cômico das marchinhas, ela canta na música “Deixa Gueixa” (que já é um trocadilho no título): “Deixa, gueixa deixa, Deixa eu te fazer um chá, Deixa queixa deixa, Deixa eu lavar a louça”. Na canção a gueixa, típica representação da submissão feminina pela tradição oriental machista (que pode facilmente ser aplicado a outras culturas) vem ao ocidente e um homem apaixonado faz tudo para agradá-la, implora quase para lavar a louça (típica função feminina no universo machista e tradicional), e ainda completa: “É assim no ocidente, E eu te explicaria, Tim tim por tim tim pudesse, Nunca mais tu chorarias”. Ou seja, no Ocidente, mais do que nunca a mulher ganhou seu espaço e descobriu sua força sobre os homens, a louça já não é sua obrigação, e é a gueixa agora que e servida com o chá.
 

domingo, 4 de setembro de 2011

O eterno retorno, linguagem e cotidiano, a palavra poética


É fácil perceber o paradigma de Heráclito, o de que tudo está em constante movimento, por isso, tudo muda, nada permanece se não o próprio ciclo das mudanças. Basta observar as folhas que caem das árvores na calçada, apodrecem, morrem, e novamente nascem. Passando de um verde robusto, a um amarelo pálido sobre o sol, até um marrom seco e moribundo, para enfim tornar-se alimento da terra, e logo, de volta ao topo das árvores no regresso da nova estação. Ou os pêlos do rosto, que cressem desgovernados mesmo  quando insistimos em raspa-los, pois não se pode controlar totalmente o corpo, ele também tem suas leis, e se mexe, se transforma, envelhece, adoece. E os mesmos pêlos que crescem viram um dia a cair, com a mesma certeza que temos de que nos espera a Morte por detrás do horizonte. E o rosto está sempre a mudar diante do espelho, como  um mosaico que se pode remontar. Da mesma forma o planeta, sempre em um silencioso movimento transformador, de rotação, de translação, de aliteração. Os movimentos internos, o intestino do mundo, as eras geológicas, os dinossauros, depois os macacos, quem sabe logo as máquinas dos contos de  Asimov, a evolução, a involução, a mutação. O universo é marcado pelo signo da transitoriedade e da repetição. Essa lei do universo, regida implacavelmente pelo Tempo-Rei, que tudo cria e tudo devora, pode vir a ser  perturbadora aos espíritos que sobre ela se deterem em reflexão. O que fazer frente a esses ciclo de mudanças infinitas, esse Samrara vertiginoso nesse globo da morte, que apavora nossa fragilidade e efemeridade com sua monstruosidade inevitabilidade?
E eis que se fez o verbo!
    O que se ganha com a palavra é a possibilidade de se elevar a realidade das coisas e dos seres a um novo nível, onde surge um novo campo de ação. Onde nos desprendemos do instante, nos abstraímos do aqui e agora e esquecemos temporariamente a urgência da vida. A linguagem busca um certo controle sobre o real, múltiplo e desordenado. A linguagem vem de um principio organizador, catalogador, virtualizador, que tem como  função primordial a organização do trabalho coletivo. A palavra transmite grosseiramente sensações e pensamentos (na verdade ela nasceu gêmea do pensamento) através de associações e generalizações, que parecem gerar um tipo de controle sobre as coisas ao nosso redor e sobre o que podemos fazer delas sem elas saberem.  Quando digo gato, me refiro a uma  espécie com muitas singularidades e variações entre seus membros. Mas a palavra gato, ao ser pronunciada transforma todo um gênero animal diverso, em signo, que reúne uma serie de características relativamente constantes capazes de invocar pelo som da boca, através dos ouvidos, a imagem que se guarda historicamente de um gato. Pois linguagem é memória coletiva. Ao dominarmos abstratamente a imagem do gato tornando-a em palavra, podemos agora inseri-la como carta em um baralho lingüistico, que nos possibilita agir sobre o gato, sobre o real, coordenar, articular, construir, dar significado e objetivo. A boca que pela primeira vez pronunciou os primeiros sons, ainda desarticulados, prenunciou a cultura. 
    Na palavra apoiamos nossa angústia de um mundo em eterna mutação, em uma vida mareada em um vai e vem cansativo. Onde a única certeza, é que o Ser, parece nunca Ser, parece que esta sempre no que virá.  Com a linguagem governamos em um outro mundo que não o mundo que nos governa. A palavra já é simulacro, vive paralela ao real, o qual ela contem apenas em parte. E com isso erguemos nossa cultura, nossa história, nossa tradição, nossa sociedade, nossos hábitos e costumes, nosso dia a dia. Um castelo de palavras! E erguemos a cabeça todos os dias pela manhã, certos de que estamos vivos, e de que faremos no dia o que o dia necessita, tomaremos café, sempre  com duas colheres de açúcar, os dentes bem escovados, o transito matinal pela mesma avenida, as noticias repetidas no noticiário da rádio, as pessoas transitando pelas ruas, os comprimentos cordiais, ao porteiro do prédio, a secretária, ao seu Joares da padaria,  a fila do banco, as batatas fritas do almoço, a cerveja do fim de tarde, aquela mesma música cantarolada no chuveiro. Tudo para mantermo-nos distraídos do mais obvio e assustador,  que a cada passo existe sempre a possibilidade do abismo, e de que o que ficou para traz, sempre regressa diferente.
    Começamos a construção de nosso cotidiano na linguagem, nas palavras que repetimos todos os dias e que geram as mesmas situações, repetidas vezes. As palavras que guiam nosso porque e para que. Pronunciamos os signos sociais como chaves, onde portas podem se abrir ou se fechar. Nos transpassa e compõe todos os discursos acumulados da história, os discursos políticos, econômicos, estéticos, morais etc. Tudo contido como DNA da palavra.  Nos fazemos entender pela constância dos sons que produzimos, pelos significados compartilhados e registrados, pela palavra do dicionário, nas gramáticas sociais. Nas palavras mais banis, nos gestos mais despercebidos, ai vive nosso cotidiano(olhar para os dois lados da rua como uma lei sagrada) essa repetição que parece recobrir toda a realidade com uma leve película de controle e tédio. Onde tudo parece certo e necessário. Como se realmente pudéssemos controlar o fluxo da vida e alinhar o tempo em nossas categorias cognitivas de passado, presente e futuro, e saber logo o que virá, com a mesma certeza que achamos que sabemos o que se foi. A linguagem inventa o cotidiano, que cria a sensação de constância, de continuidade, de objetividade. Dissimulamos no hábito herdado e construído, a verdade terrível, de que por debaixo dessa crosta de verdades arquitetadas e provisórias, estamos montados sobre o imponderável, o impassível, como se estivéssemos tragicamente atados sobre as costas de um  tigre.
    A palavra vem então para estabilizar, para sedimentar o conhecimento sobre o mundo em mundo conhecido. Mas  a mesma palavra que sustenta nossos sistemas de crenças, também pode ela mesma subverter o próprio  sistema, quebrar a cadeia lógica, escapar as regras da gramática, e reinventar o mundo inventado. Na palavra a seta para o infinito desconhecido. Esse é a palavra poética, que ao contrario da palavra dicionarizada, técnica, instrumental, que transforma as coisas em signos vazios, blocos de significados congelados que podemos jogar de um lado para o outro em nossas frases, na hipocrisia da retórica do convencimento. É uma palavra viva, autônoma, rebelde, livre, que diz o indizível (o que nem todos podem ouvir), que busca tocar o âmago das coisas, a gosma da existência intima, que invoca no espírito o imemorial. Não a palavra-controle, mas a palavra-amplidão. As reticências que sobram em cada poesia. O sentido oculto e único que cada sujeito nela pode imprimir. Ai surge a possibilidade da linguagem, pura artificialidade, tocar levemente a superfície do real, e se constituir como parte dele, como sua extensão no coração dos homens, como ponte para o Ser. A palavra que fluí, que não é mas esta em transito, que acompanha o devir do mundo. Não a palavra no papel, estéril, mas a palavra gravida, fértil, semente de girassol, que pula do papel e corre pelo espaço a fora. A palavra bruta, palavra-som, a palavra-pensamento, a palavra-sentimento que se transubistancializa na boca do poeta em palavra-materia, palavra-carne, palavra-mundo. Palavra que navega por sobre as ondas do  tempo, na eternidade.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Imagens noturnas

                  (Fantoches da meia noite - Di Cavalcanti)

Derivando pelos meandros da cidade, pelo escuro vazio das ruas, o silêncio da madrugada ecoa por entre as muralhas verdes e os blocos de concreto, lapides gigantes incrustadas na epiderme urbana. Ao longe se ouve o barulho de um ônibus afastando-se gradativamente, o que não foi capaz de romper o silêncio, que pairava pelo ar feito neblina, leve como uma cortina translúcida esvoaçando ao vento. Pesado como o inverno que estremece o esqueleto. Caindo por sobre tudo como a noite, tal qual uma capa que protege e aquece  o sono dos homens que viajam para longe. É sem dúvida por debaixo da capa negra e misteriosa da noite que escapa o sonho, a loucura e o delírio, para contarem as histórias que ocorrem do outro lado da razão, e que o dia esconde em seu excesso de lucidez Pois para ouvir esse tipo de narrativa é preciso ouvidos mais sensíveis, mais desatentos, mais abstratos.
            Acompanhando  os fantasma soturnos do espírito humano, para compor a orquestra da meia-noite, vem os amantes e filhos das sombras. Pequenos seres rastejantes e vultos alados atravessam o passeio, tomado pela erva da terra. Vindos  das comerciais abandonadas, encima das pilhas de lixo e escombros de guerra, com seus pequenos ruídos asquerosos e movimentos rápidos, compõe a canção da noite em notas de medo, silêncio e solidão.
            Ouço zunindo pelos ares, transitando de um lado para o outro entre o topo das grandes árvores, a sonata dos morcegos, os vampiros citadinos que dançam como em um teatro mal-assombrado. Sinto eles voando por cima de minha cabeça, o som é agudo e desritmado como uma música dodecafônica, quase palpável. Pelos cantos sujos, os pequenos olhos brilhantes e vermelhos dos irrequietos ratos de rua, observam maquiavélicos minha passagem. Prontos para devorarem qualquer coisa que eu deixe cair, restos de pão ou de esperança, parentes que são dos abutres e hienas, lixeiros da morte, heróis malditos do ciclo da vida. 
            Distante na paisagem, na perspectiva infinita dessa calçada floresta onde vou  rumo  ao interior desconhecido de mim mesmo, vejo um fantasma de carne e osso, um morto vivo vagando esfarrapado, a chaga ambulante de um corpo social doente, cruel, injusto e implacável. Ele parece cantar, uma canção de desalento, ou grunhir uma oração inútil e melancólica por piedade de algum  deus. Palavras que não consigo entender, como as de um dialeto antigo e esquecido da civilização, a língua dos derrotados, dos degredados, dos estigmatizados. Ele some do nada, da mesma forma que apareceu, mas sua imagem fica gravada e minhas retinas como a lembrança disforme de uma vida passada, de um outro eu, uma sombra distante.
            Não consigo deixar de pensar na estranha semelhança que existe (por mais que nosso orgulho racionalista tente dissimular)  entre alguns tipos de homens e alguns tipos de bichos. Como em uma sociologia antropo-animal, comparo os grupos e os valores implícitos neles. Primeiramente é claro que os homens não são todos iguais, nem diante da natureza nem diante da sociedade. Os animais tão pouco são iguais, e também se diversificam em valores que nós os damos. Projeções destorcidas de nossa humanidade cambiante.  Por exemplo, a morte de um animal pode custar nada (como um cão atropelado na estrada, ou milhões de baratas envenenadas), ou pode ser um caso de justiça internacional, como no caso do tráfico de animais silvestres. Os grupos de homens e bichos carregam valores culturais, historicamente constituídos, o que os torna sempre desiguais. Se a coruja é símbolo de Atenas, a deusa sa sabedoria, com seus grandes olhos atentos, ao corvo com suas penas negras restou lembra a morte.  Dessa forma ratos são caso de saúde publica (entendam, devem ser  eliminados), mas a última arara azul é questão ambientalista. Assim quem irá querer defender a preservação do rato, praga do lixo, ou do mendigo, praga de nossa consciência social? O que resta ao homem-cão, sarnento e imundo? Que desprezível de mais, não merece nem uma única ong que o proteja e venda camisetas com seu rosto! E assim preserva-se o mico-leão-dourado, e exclui-se da lista de salvação o homem sem posses, o bicho sem voz e sem lei.
            Mas é claro que mesmo entre os marginais cria-se por contato, um sentimento de identidade dos excluídos, que unem-se pela miséria, pelo ódio e pelo ressentimento, e planejam as escuras o saque a casa do patrão, enquanto sua família dorme hipócrita em lençóis macios e fascistas (toda ordem estabelecida, por mais forte que seja, esta sempre sobre uma delicada ameaça, quase invisível, mas presente). Se todos admiram o papagaio por sua habilidade antropomórfica e cômica de imitar a fala humana, de nos lembrar o que temos de especial, o pombo, por outro lado, de antigo símbolo da paz, passa na modernidade a ser chamado pejorativamente de rato de asas, aturado com desprezo nos aglomerados urbanos, praças e telhados de prédios. Mas essa comparação só serve para fortificar a classe dos rejeitados, o humo malcheiroso que alimenta a vida que apodrece, que ainda conta com mendigos e baratas, alcoólatras, viciados e gatos negros, cães vadios e poetas malditos, músicos decadentes de jazz, ladrões e assassinos, órfãos abandonados, solitários inveterados, anciãos alucinados, dementes e leprosos, exilados e melancólicos, todos eles que vivem a margem do que os criou, sem objetivo, nem salvação.       
 
   

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Reflexões na ponta de um cigarro


      Ah a fumaça do cigarro! Fluindo por entre meus lábios, de matéria tão leve quanto a palavra que flui pelo mesmo orifício, vácuo etéreo, palavra fumaça. Quando fumo, sinto esvanecer de mim todos os pensamentos, antes tão pesados com sua carga de angústia, agora,  leves pairando pelo ar, dançando abstratos e efêmeros. Sinto o vazio do corpo ocupado pela fumaça tragada, preenchido, inflado, comportado.  Em seguida, o retorno do vazio provocado pela baforada. Oco novamente, casca abandonada.
    A fumaça simboliza a leveza, e esse é o principio do fumar. Fumo quando me sinto deveras cheio. Depois do almoço, estômago lotado. Depois da leitura, espirito carregado. Depois do dialogo, palavras e ouvidos saturados. Fumo para me esvaziar, descarregar seja lá o que carrego, sentir o movimento que leva ao vazio. A saída do ocupante, a libertação do espaço ocupado, o nada novamente. E o que vira para novamente ocupar-me? Outra tragada, de fumaça, de bebida ou de esperança, quem sabe tragarei sonhos e ilusões! Trago a mim mesmo e ao outro, sou tudo e logo sou nada, entra e sai, vai e volta.
    O fumar também simboliza o tempo, a passagem gradual dos minutos dentro de cada cigarro, a repetição do gesto, da mão a boca, da boca a mão, o eterno retorno. Fumo para abstrair a  cruel ditadura do tempo que oprime. Pois quem fuma, mesmo sem tempo encontra tempo para fumar, e em pequenos fragmentos do cotidiano criam brechas temporais, dispõem-se do tempo funcional e obrigatório para a presença rápida de um cigarro libertador. Acende, traga, sopra...acende, traga, sopra... acende, traga, sopra. Assim se repetem em poucos minutos um tempo infindo, uma duração incalculável, que zomba do tempo dos relógios, pois nesse breve instante só a fumaça dita o tempo. A fumaça, sempre tão misteriosa, enigma da matéria, fronteira tênue entre o existente e o desistente.
    O cigarro torna-se espelho, objeto de reflexão, ponte, portal, válvula de escape do pensamento. Cada cigarro é como uma pergunta sem resposta, e que importa mesmo as resposta? Se cabe a inteligência sempre questionar as resposta em um espiral sem fim! Fumo e penso, penso e fumo, como se os dois exercícios se interpusessem no mesmo movimento lento e ritmado, de corpo e alma. Quando trago profundo a fumaça do cigarro sinto a vida que me invade e anima meu corpo. Sinto a mucosa que reveste minha boca, minha garganta, os alvéolos pulmonares  se expandindo. Sinto mesmo o ato da respiração como coisa essencial. Quase sempre nos esquecemos que antes de todos os problemas vem a respiração. Por ser um movimento repetitivo e involuntário na maior parte do tempo, não nos damos conta de que ele acontece sempre, ininterrupto, maquinal, indispensável, orgânico, vida. As vezes percebemos melhor as coisas pelo seu negativo, sua falta ou desarmonia. Quando corremos muito e nos cansamos, sentimos a respiração ofegante, percebemo-la pela falha, pela falta. Quando caminhamos e temos uma pedra no sapato, sentimos sem cessar o contorno do pé, pelo desconforto, pela intromissão estranha. Assim a fumaça do cigarro me lembra que respiro, que vivo mesmo sem querer, que penso mesmo sem saber para que.
    Fumar e pensar! Acaba um cigarro, acende-se um outro, igual ao primeiro, igual ao último, sempre igual a todos. Pensar e fumar! Tal como uma metáfora, um cigarro se finda pelo mesmo fogo que garante seu propósito. Quanto mais forte trago, mais prazer tenho e mais rápido se acaba. Como a vida, que quanto mais intensa mais próxima da morte. Sim a vida, que consome-se a si mesma e por isso  tem como sentido a morte. Assim como o cigarro que tem como sentido a fumaça, ou seja, seu próprio desfalecimento.  Por isso fumo a vida como a um cigarro, sempre concentrado na brasa, que é minha maior força e o principio de minha decadência. E o que há além do cigarro que fumo? Do instante que passa? Da vida que levo? Não sei... por isso fumo, fumo para esperar, para acalmar, para contemplar e tentar apaziguar a angústia da espera do que vem, porque algo sempre vem, mesmo sem se saber o que vem...

domingo, 10 de julho de 2011

Não quero o Amor como uma conquista, mas como uma  inevitabilidade.

domingo, 19 de junho de 2011

A figura de mulher atormenta meus sonhos, íncita meus desejos e depois some como sombras incertas, me deixando ao leu, afogado em desalentos. A mulher, simbolo de minhas ilusões perdidas, despedaçadas, inacessível A solidão é como um degredo e o amor uma palavra bonita que leio em prosa e em verso, e na boca dos poetas quase parece fazer sentido. Nunca conheci o amor de uma mulher, e carrego a impressão de ser invisível aos olhos delas, ou as vezes percebido  como um cão bonitinho, tolerado por ser inofensivo. Em algum lugar perdido de minha memória, a rejeição feminina lançou-me na eterna melancolia. Desacredito de mim mesmo, não sou bem um homem como me querem, mas um tipo de espantalho humanoide e desajeitado, que desprovido de qualquer tipo de carisma, mais atrai por suas formas bizarras e cômicas. O enorme desejo que sinto, guardo a sete chaves nas profundezas de mim, essa é minha força castrada, meu maior pecado, meu crime, que reprimo e controlo através de minhas práticas onanistas cotidianas e secretas. Minhas fantasias sexuais solitárias, alimentadas pela pornografia virtual, criam no meu exterior uma aparência de desinteresse sexual. Sou o que chamam um assexuado. Tudo o quanto desejo, fujo! Temo! Apenas meus olhos calados e tímidos acompanham tristes e desesperançados as belas e atraentes formas femininas que passam ao meu redor sem se quer notar minha inexpressiva existência de inseto, que por perder as asas não pode mais deleitar-se do néctar das flores desdenhosas. Meu semblante blase apenas esconde a fúria de minha sexualidade primitiva e latente em meu corpo desconhecido...

terça-feira, 14 de junho de 2011

No alheamento do Amor

Tenho sofrido por amor, um amor que perdi, ou um amor que nunca tive, talvez um amor esquecido no tempo imemorial, antes de mim, perdido na memória. O fato é que sofro, sem saber bem porque sofro, se é que há algum motivo para sofrer se não o próprio sofrimento de existir sem porque.
Há em meu Ser um vazio, um hiato de mim, que por mais que eu tente preencher reinventando-me, sempre me escapa no por vir. Sinto uma falta de palavras que me traduzam, sinto-me uma gramatica velha de sintaxe prolixa, que se repete e gagueja nas mesmas frases. E se penso no amor, não sei o que é ou deixa de ser, sei apenas que me doí no peito sua ideia abstrata como um espinho fincado na carne. E se dizem que o amor uni, em mim seu poder oposto afasta-me de mim mesmo, sua ausência separa-me dos outros que me cercam como um rio em fúria que não ouso transpor. Haverá algum dia uma ponte que me ligue a outrem que não pela morte? Haverá um comboio que me leve do deserto de mim aos campos floridos do amor por mim?
Não espero muito da vida, pois cansa-me a ideia de ter que esperar algo mais que a morte. E ao invés da ilusão que engana, prefiro fomentar em minha alma o sonho que embala a vida vivida alheia a si mesma, distante de toda objetividade inútil, de toda conquista estéril, de todo desejo redundante. Vivo e calo! Pois não carrego a visão futura dos profetas, nem a certeza eterna dos loucos. Apenas a fria lógica da incerteza que trai e da possibilidade que vislumbra espantosa.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Dormi, acordei: continuou!
Nasci, morri: continuaram...

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Diário sem data


O único impulso que me resta em favor da vida é minha enorme curiosidade em saber até onde vai a comédia humana que constitui meu ser. Até que ponto chega a inadaptabilidade de uma pessoa frente a seu mundo e seu tempo?! O que me pedem, não dou. Tão pouco dou o que não me pedem. Não posso dar nada, pois só herdei o cansaço e a desilusão dos que outrora muito deram e nada receberam. Associo-me aos desvalidos e miseráveis, os derrotados da história, que sem ter a honra dos guerreiros lendários, no silêncio ergueram com sangue e lágrimas os pilares da civilização vitoriosa. Sou um bizarro efeito colateral da atual sociedade do gozo, onde tudo tem de se converter em prazer efêmero e fútil. Prazer esse que para mim sempre carrega o amargo do fel, de quem sofre sem saber porque, de quem traz consigo o terrível crime de se entristecer. O que me resta se não o grito mudo do desesperado e  as lágrimas frias do melancólico?

domingo, 20 de março de 2011

A giganta


Sentei-me no balcão de um bar e pedi uma cerveja. Pretendia apenas tomar uma para relaxar depois de um dia cansativo de trabalho. Não tinha maiores pretensões naquele lugar. Não conhecia ninguém por ali e nem queria mesmo conhecer. O lugar estava cheio, mesas lotadas. Eu pretendia ir embora assim que a cerveja acabasse, e enquanto bebia observava desinteressado o movimento das pessoas nas mesas ao redor. De repente em meio a multidão de ninguéns surge um rosto que me invoca! Uma mulher sentada em uma das mesas rodeada de pessoas logo a minha frente cravou os olhos em mim como duas facas afiadas e precisas. Um olhar intenso, fixo e decidido, fortemente atraente e sensual, mas tão incisivo que chegava a ser violento, dominador, ameaçador, como algum tipo de felino que mira atentamente sua presa.
A mulher era de uma beleza exuberante, grandiosa, exagerada, extremamente sexy. Ela era alta, de um porte atlético, tinha uma pele morena com aspecto suave, suas cochas e quadril eram largos como de uma porta bandeira de escola de samba. Seu rosto tinha traços muito marcantes e bem definidos, linhas fortes formavam seu maxilas, nariz, e testa. Tinha um grande e reluzente par de olhos negros como a noite e profundos como um abismo, que me chamavam e me provocavam vertigem. Seus lábios eram grossos como duas frutas maduras e suculentas, levemente úmidos pareciam estar cheios de mel. Os longos cabelos negros caídos pelos ombros conduziram meus olhos a seus fartos seios apertados em um decote perverso de cor vermelha. A sensualidade dos corpos se manifesta na quelas partes que ficam nos limites entre o visto e o escondido, é ali que o desejo ganha força e alimenta a fantasia. Que coisas incríveis pode imaginar uma mente inebriada de desejo! Aquele olhar me paralisou o corpo todo, e me encheu de contraditórios sentimentos. Um misto perturbador de um irresistível desejo carnal e uma profundo medo existencial! Eu não sabia bem se eu queria agarrar aquela mulher e possuí-la ali mesmo como um animal selvagem, ou sair correndo daquele demônio que ameaçava me destruir! Seus olhos eram só de certeza e desejo, eles não se mexeram mais depois que se encontrarão com os meus. Era como se tudo houvesse desaparecido e só restasse em um espaço tempo indefinidos, eu e ela. Sua gravidade me atraia, me arrastava impetuosa, e eu resistia, mas cheio de vontade de desfalecer nela.
Dividido em mim, como se minha vontade fosse um campo de batalha entre o sim e o não, me mantive parado, somente olhando imerso naquela figura feminina tão poderosa. Ela se levantou e caminhou ousada, de passos intransigentes, parecia que nada podia pará-la, era como uma locomotiva vindo em minha direção em câmera lenta. Sentou-se a meu lado e aproximou seus suculentos lábios carnudos de meu ouvido e sussurrou... Meu corpo inteiro se arrepiou, e logo um calor gostoso e anestesiante se espalhou por meu peito. Depois o tempo se modificou drasticamente, se contorceu, se inverteu. Essa longa mirada na imagem da mulher, a posse de sua imagem por meus olhos, pareceu uma pequena eternidade que durou apenas uns três ou quatro minutos. Tudo que ocorreu depois, no intervalo de uma noite inteira, durou na percepção como segundos, como um vídeo acelerado de um filme com cenas cortadas.
Em um instante estávamos eu e a bela e sedutora mulher em meu carro, no instante seguinte já estávamos em seu pequeno apartamento, a meia luz entrelaçados nus no sofá de couro como dois bichos no cio. Nós nos devorávamos de beijos e a fome só crescia! Era muita fúria e desejo misturados em uma amor carnívoro. Eu me sentia dominado por aquele corpo farto. Eu me perdia nela, seios, coxas, bunda, mãos, boca, tudo nela era grande, tudo me agarrava e prendia. Suas coxas grossas se fixaram em torno de minha cintura como duas serpentes que me exprimam. Acredito que não podaria me libertar nem se quisesse. Ela era sem dúvida mais forte que eu, e essa força parecia só aumentar. Seus beijos molhados quase me afogavam de voracidade. Seus seios nãos cabiam em minhas mãos, eles transbordam entre os dedos. Eu há penetrava com muita força, como poucas vezes havia feito na vida, e ela dizia querer mais rápido e mais forte, mais e mais. O êxtase daquele momento já tomará todo meu corpo e mente. Estávamos já banhados em suor e saliva, em uma transa que parecia interminável, como dois cães que se acoplam por horas. Em quanto minha fúria sexual já se apagava no cansaço físico, a dela parecia ferver cada vez mais, como um caldeirão prestes a explodir. Em minha mente dúvidas e temores se chocavam contra meus desejos. Uma mulher estranha, totalmente desconhecia, de onde afinal vem tanto desejo por mim? Ela já aparentava estar fora de si, gemia cada vez mais alto, gritava e tremia de tesão. Já me sentia fraco, minhas forças pareciam ser sugadas por ela, que crescia por sobre meu corpo. Sim no começo não havia percebido, mas ela parecia ter bizarramente aumentado de tamanho e de peso. Seus seios pareciam estar bem maior do que quando eu havia visto pela primeira vez. Eu já estava afundando neles, como se fossem areia movediça. Com ela deitada por sobre mim, eu já mal conseguia respirar, seu imenso quadril havia crescido e me esmagava contra o sofá. Eu esta imobilizado por aquela mulher que não parava de crescer. Já era uma gigante! Havia si tornado um mostro, e eu estava totalmente a sua mercê. Não conseguia mover meus braços ou pernas, estava preso no copo dela, completamente dominado por sua força e seu peso descomunais. Tudo parecia um pesadelo, e eu não conseguia acordar!

Logo passei ao desespero, tesão e pavor unidos, a situação estranha já estava se tornando perigosa, a mulher não parava de crescer e me desejava ardentemente, insaciavelmente, parecia que ia me devorar. Ela me lambia e sugava com seus lábios gigantescos. Comecei a pedir que ela parece, que me deixasse em paz! Mas ela nem me ouvia, gemia como um animal, uma leoa feroz, devoradora. Eu me esforcei, tentei escapar da giganta, mas foi inútil. Eu já estava exausto das horas e horas de transa, meu corpo já não tinha força alguma, e ela pelo contrario só crescia e crescia. Passei a não mais conseguir enxergar nada no apartamento, nem o teto, nem o chão, nem o sofá, posto que o corpo da mulher parecia já ter ocupado todos os espaços do local. Ela se espalhou gelatinosa enchendo todos os cômodos. Eu me afogava eu seu corpo como se fosse o mar. Não ouve escapatória, ela me absorveu inteiro em seu organismo, como se por fagocitose. Em um instante eu já não era eu, era agora parte da gigante que me devorará.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Aquelas mãos

Nessa noite de sábado comprei ingressos para ir ao teatro assistir a uma peça recomendada por amigos. Infelizmente ou felizmente, não sei ao certo, minha companhia teve um imprevisto e não pode comparecer. É claro que acostumado que sou ao exercício da solidão não me abati muito com o súbito abandono. A verdade é que tenho grande apreço pelas atividades solitárias, principalmente as vinculadas a apreciação artística. Sinto que centrado em minha solidão posso me entregar por completo a contemplação estética. Sendo que acompanhado por qualquer outra pessoa conhecida, amante ou amigo, sempre há de se reservar uma pitada de atenção ao acompanhante, até por uma questão ética, afinal é a pessoa que esta ali dividindo amistosamente uma experiência com você, e mesmo que sem palavras  sinto que uma parte minha esta sempre voltada para o outro, o que invoca, o que ameaça ou encanta, pois isso é o mínimo que qualquer tipo de outro exige numa relação, seja ela qual for.
    Para esse tipo de evento, tenho para mim um ritual corriqueiro de preparação. Acredito que assim como o corpo deve ser aquecido antes de uma prática de exercício físico o espírito também deve estar nas condições certas para a apreciação da obra de arte. Por isso, procuro estar com os poros da alma bem abertos para poder fruir com os olhos e os ouvidos tudo que me for apresentado no palco, para poder sintetizar todas as sensações, sentimentos e idéias que se relacionarem com minhas experiências e assim reviver a obra, dar-lhe minhas próprias características e roubar-lhes algumas. Desse modo, chego sempre um pouco mais cedo ao teatro para evitar atrasos, filas, ou qualquer imprevisto desagradável que exija de mais de minhas ações, posto que antes mesmo do inicio da peça já começo a me colocar em um estado propicio a contemplação e a meditação, e quase como se minha alma se afastasse lentamente de meu corpo para poder se debruçar sobre o observado, para poder analisa-lo mais de perto em abstrato, sem o peso do corpo e da ação necessária. Ao lado do teatro havia um belo jardim, onde me sentei e acendi um cigarro. Com a fumaça do cigarro vai-se dissolvendo de minha mente pouco a pouco todas as preocupações e impacientais, todas as idéias excessivamente pesadas, os pensamentos se esvoaçam pelo ar livres,  e no corpo se instala uma calmo relaxamento. A ação continua de levar o cigarro a boca, traga-lo vagarosamente vendo-lhe a chama aumentar e a fumaça invadir minha boca e meus pulmões preenchendo-me o vazio interno, e depois afasta-lo e soprar a fumaça turva e densa pela boca e narinas tal como um dragão, é como uma forma de mantra que tende a me colocar na orbita certa do meu Ser. Ali sentado observei as pessoas chegarem ao teatro, em grupos, em casais, o teatro enfim é também um evento social, um lugar para convivência, como nos bares e restaurantes. Apresados faziam fila para comprar o ingresso e tumultuavam a entrada do teatro. De longe eu só observava.
    Sentei-me na poltrona marcada, e ao ver a poltrona do lado vazia sentir uma certa melancolia pela solidão. O que sei ser uma coisa  natural, afinal de contas devemos aceitar nossa solidão, mas não com um sorriso tolo no rosto e sim com um olhar triste e resignado de quem aceita o que não pode mudar e ama o que não pode entender. Ali na poltrona vazia deveria estar uma pessoa conhecida, amigável, com quem eu trocaria palavras, idéias, percepções, que se ocuparia de mim assim como eu dela. Mas não, agora somente a ausência, o vazio, onde certamente se sentara um Ninguém, um rosto desconhecido e estranho que provavelmente me invocara a indiferença, típico costume das cidades grandes. A peça atrasou alguns minutos e o barulho dos cochichos das pessoas estava me desconcentrando, resolvi ficar um pouco mais lá fora, quem sabe comprar um doce na cafeteria. Ao ouvir o último sinal para as luzes se apagarem regressei. Vi que alguém já havia ocupado a poltrona ao meu lado, era uma mulher, de cabelos loiros encaracolados na altura do pescoço, vestida elegantemente com uma jaqueta marrom. Não puder nem mesmo reparar em seu rosto, pois logo  as luzes se apagaram e fiquei entretido  com o inicio da peça. Era um monologo que parecia muito bom, uma daquelas histórias clássicas da literatura internacional, personagem perturbado com os processos de alto descoberta, em busca de sua própria liberada contra todas as opressões e violências do mundo, a imagem do louco santo. Algo assim como uma tragi-comédia cheia de idealismo liberais e utopias humanistas.
Mas repentinamente o foco das minhas percepções, ritualisticamente apuradas para a peça, teve seu foco deslocado. Começou quando senti um exuberante cheiro de rosas do campo que simplesmente se apossaram de meu ser, primeiro pelo olfato, mas depois todos os meus sentidos estavam impregnados por aquele cheiro . Era um cheiro doce como todos os méis, chocolates e néctares de frutas da terra. Era quente, macio e enebriante, sensual e apetitoso, tudo isso num único odor. Mas de onde vinha esse cheiro que me tomava e me impedia de prestar atenção na peça?
    Seguindo afetado o cheiro que me hipnotizava deparei-me com as mãos da mulher desconhecida sentada ao lado. A mulher  que a principio em nada me chamava a atenção, estava sentada de pernas cruzadas. De meu angulo de vista eu podia ver a penas a parte de baixo de seu tronco, suas pernas e suas mãos postas por sobre o colo. Ela retirou da bolsa uma pequeno pote, e despejou na palma de uma das mãos uma dose de creme.  Ao começar a esfregar o creme de uma mão na outra e por entre os dedos, começou a exalar um doce odor pelos ares. Ai então, foi como se todos os holofotes do teatro se voltassem para aquelas mãos. Aquele colo onde elas posavam leves como duas plumas tornou-se para mim então o palco, onde se desenrolava uma peça musical, quase um bale dos dedos, uma dança dionisíaca! Assim o odor que me atrairá e me proporcionava um prazer indescritível uniu-se também ao prazer do olhar. Comecei a observar de canto de olho, com muita atenção e descrição,  os movimentos ondulantes das mãos da mulher, que ao se massagearem parecia também poder massagear meus sentidos todos no mesmo movimento. Suas mãos eram de uma beleza angélica, brancas, pequenas, delicadas e sensíveis. Os dedos muito proporcionais, finos e alongados se entrelaçavam com uma graça sublime. A graciosidade é uma característica tipicamente feminina, pois um coisa graciosa é essencialmente harmoniosa em sua pequenez, nada deveras grandioso pode se aproximar da graciosidade, que invoca sentimentos de proteção e afeto diante da compartilhada fragilidade. Ah como suas mãos eram graciosas! Não pude entender bem na hora, tentei relutar com essa forte atração tão banal e voltar a prestar a tenção na peça. Mas foi inútil, mesmo voltando os olhos novamente para o palco não pude mante-los, a cada nova respirada eu voltava a sentir o doce odor das flores e tinha minha visão empurrada irresistivelmente para as mãos da mulher, como um marinheiro chamado pelo canto das sereias.
    Porque aquele cheiro, porque aquelas mãos, porque naquele momento? Perguntas que só cabem ao acaso responder! A peça simplesmente se desfez para meus sentidos como um vidro que se despedaça. E me entreguei todo aquelas mãos! Ao deleite daqueles movimentos suaves dos dedos se esfregando com carinho e calma por sobre as palmas, as unhas levemente cintilantes, os pulsos finos e elegantes como de uma leide!  Somente sua brancura e doçura acupavam minha atenção e meus desejos. Era um prazer sensual, erótico, estético, era uma obra de arte a parte, que meus sentidos encontraram por acaso perdida, jogada quase imperceptível  no meio da banalidade da vida. Eu queria tocar aquelas mãos sentir sua suavidade, sua pele de marfim. Queria ser tocado por aquelas mãos, sentir  sua delicadeza, seu calor, queria beija-las para absorver melhor sua pureza de manjar raro! Por mais ou menos uma hora pus-me a fruir o prazer estético sensual daquelas mãos sem corpo, ou melhor dizendo, aquelas mãos que eram um corpo inteiro de mulher. Observava sua performance teatral, musical, plástica, como se aquilo fosse o céu para mim por um instante, a sublimação de tudo que pesa na alma, o desfalecer de todos os significados aparentes por uma insignificância designificada. A contemplação desinteressada da beleza simplesmente bela! Engraçado como as vezes encontramos o que procuramos quando não estamos procurando e em lugares onde não pretendíamos achar, e não encontramos o que queríamos no lugar onde imaginamos que íamos achar. A beleza se esconde em todos os lugares, basta os olhos certos para encontra-las ou inventa-las! 
    Ao final da peça as luzes se acenderam me cegando momentaneamente, e os aplausos enlouquecidos turvaram meus ouvidos. Quando me dei por mim já não haviam mais mãos, nem peça, e todos se retiravam do teatro em uma enorme turba. Não pude me recompor rapidamente, era como se eu tivesse caído, minha cabeça foi sacudida pelo espanto prolongado! Só pude sair quando o teatro já se encontrava vazio, e é claro que perdi completamente aquelas mãos de vista, as quais muito provavelmente nunca mais verei. Foi como ver uma estrela cadente cair. Efêmera! Um instante de epifania! Quem era aquela mulher? Nunca saberei! E talvez realmente nem importe.  Será que me amaria? Não posso crer! O certo é que suas mãos, apenas aquelas belas e graciosas mãos me tomaram de tal amor, de tal amor como aquele que se sente por uma rosa ao sol, ou o crepúsculo vermelho e rosa do cerrado, ou a luz branca da lua no seu negro da noite. O amor leve, simples e incompreensível, por isso louvável. Como diz o grande mestre Caeiro: “...quem ama nunca sabe o que ama, nem sabe por que ama, nem o que é amar... amar é a  eterna inocência...” Quando eu aprenderei a ser inocente para poder comungar da beleza de cada instante? Sozinho no teatro  totalmente vazio aplaudi satisfeito o espetáculo que somente meus olhos presenciaram.

terça-feira, 1 de março de 2011

A vida é tal como um jogo, onde por fim iremos todos perder. Sábio é aquele que na derrota se contenta com o inútil prazer de ter jogado.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Neopanteísmo às avessas


O panteísmo é uma doutrina muito antiga, adotada na história em diferentes épocas por distintas correntes filosóficas e religiosas, como os estóicos, epicuristas e depois até alguns iluministas. Também no oriente o panteísmo se aproxima de alguns conceitos da religião budista, entre povos da antigüidade e tribos indígenas na América também havia uma espécie de panteísmo na adoração a natureza. O panteísmo é fundamentalmente a crença espiritual de que deus como ser onipresente esta em todas as coisas existentes, nos seres vivos e nos elementos da natureza. Tudo tem um pouco de deus, e deus é um pouco de tudo. Até mesmo o radical ateu Schopenhauer, desenvolveu em sua filosofia um tipo de panteísmo, ao afirma que a origem de tudo vem de uma força inconsciente e irracional denominada Vontade, que rege o mundo e os seres.
    Pensando racionalmente o panteísmo é talvez a mais coerente idéia sobre a possível existência de deus, pois acreditar em um homem vestido de branco com uma barba enorme sentado em um trono por sobre as nuvens e deveras metafórico para não dizer infantil ou cômico.  O grande problema das religiões  monoteístas é essa imagem de um deus único que se coloca como um criador externo a própria existência, como alguém que só observa o mundo do lado de fora. É difícil  imaginar alguma coisa fora do mundo, já que o mundo é tudo o que conhecemos (em parte), afinal se ele fica fora do mundo então não participa dele, e se fica fora, fica aonde, no espaço, na lua, no sol?  No panteísmo deus ganha a forma de um tipo de substancia invisível que permeias as coisas, e assim é mais fácil de imaginar como ele age. Podemos afirmar o panteísmo até dentro das noções cientificistas, por exemplo, toda forma de vida conhecida até agora compartilha de  do elemento carbono, talvez ele pudesse ser deus, ou mesmo o oxigênio que transita por toda parte sem ser visto, talvez seja ele deus. É claro que com isso não quero dizer que a problemática de deus seja uma questão de comprovação racional, lógica ou cientifica, bem sei que é uma questão de fé (fé entendida como a crença em algo possível, sentido, mas não comprovável, o pulo no escuro. E isso não se restringe só a questões religiosas, por exemplo, o amor ou o medo são coisas conhecidas e sentidas, mas não podem ser efetivamente comprovadas).
    Como ateu convicto, mas curioso sobre as questões metafísicas, desenvolvi para minha  filosofia pessoal um certo conceito a respeito da existência de deus. Claro que não acredito em deus, e nem mesmo gosto muito dessa palavra, que esta deveras carregada, historicamente falando, de sentidos ligados ao cristianismo (no meu caso que sou um brasileiro ocidentalizado) e a idéia de um ser todo poderoso, superior, bondoso e julgador. O que realmente me faz adotar o ateísmo não é em si a descrença em um deus, mas sim a impossibilidade dentro da minha filosofia de associar a liberdade criadora e autotransformadora do homem-artista com a existência de um ser que me governe conscientemente e que decide sem minha consulta o que seja o bem e o mal. A própria idéia de livre arbítrio já foi superada, pois o livre arbítrio é a possibilidade ou a grande caridade de deus em seu espirito democrático, de permitir que nós seres humanos escolhamos entre o bem e o mal. Isso não é liberdade! Liberdade criadora diz respeito a possibilidade não de escolher entre um bem e um mal já predefinidos, mas sim criar o que venha a ser o bem e mal. A idéia de deus nasceu na mente do homem primitivo como uma necessidade de explicar os fenômenos da natureza e ocupar o enorme espaço deixado em nosso espírito por nosso desconhecimento. Mesmo entre os gregos antigos, seus múltiplos deuses eram arquétipos mitológicos em forma humana, não que eles realmente acreditassem nisso, mas sendo um povo essencialmente artístico, tinham a necessidade de explicar o mundo através de narrativas e mitos que consolidavam sua cultura e mediavam sua relação com a natureza e com sigo mesmos. Assim sendo admito a importância de deus na história do pensamento humano, mas a verdade é que ele esta morto (como afirmou Nietszche) e precisamos de novas idéias que ocupem seu lugar. 
    Por isso criei a minha própria idéia de deus, partindo de algumas leituras existencialistas, filmes do Bergman e em especial de uma frase muito intrigante da filosofa francesa Simone Weil: “Deus só pode estar presente na criação sob a forma de ausência”. Acredito seriamente na Ausência, no Vazio, no Nada, até porque sinto isso no fundo da alma, a necessidade de ocupar a mim mesmo, minha imensidão intima me assombra. Como diz o Bachelard, a imensidão é uma categoria filosófica, pois como pensar geometricamente em um espaço que se estende ao infinito, que nunca pode ser totalmente ocupado ou mesmo observado, somente  vislumbrado. “O mundo é grande, mas em nós ele é profundo como o mar”(Rilke). Dessa profundeza intima, desse vazio incomensurável nasce a Angústia, a necessidade de tentar ocupar-se a si mesmo. Assim sendo se deus existe mesmo ele é o Nada, ele é a Ausência que esta está em tudo, como a substancia invisível do panteísmo, só que pelo avesso. Tudo que existe traz uma dose de ausência, um espaço vazio que permiti a constante transformação. Se deus existisse como  presença ele seria tudo, e não haveria espaço para mais nada. Sendo ele Ausência ele permiti que as coisas existam e  se transformem. Deus é por tanto, a possibilidade do Ser.  
“Deus está em toda parte, mas tão disfarçado que é como se não estivesse”. (Drummond)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Arte e Vida

Quando penso em arte, de forma geral, uma das questões que mais me intriga é como a arte, a principio  uma  artificialidade, se relaciona com a vida? Como a arte, que é uma mentira, uma ilusão, pode se tornar real, pode se tornar verdade, pode se tornar viva?
    No filme “Cisne Negro” do diretor Darren Aronofsky, a personagem Nina Sayers (Natalie Portman), uma bailarina, vive um intenso e assustador drama psicológico que transita entre sua vida pessoal e sua carreira artística. Ao ser escolhida para interpretar  o cisne branco e o negro na peça de Tchaikovsky, ela inicia um processo de criação de personagem que acaba por ultrapassar as barreiras da sanidade e trazer das profundezas de sua alma seus instintos e desejos mais tenebrosos. Dentro da narrativa do filme, como em uma analise psicanalítica, não há distinção entre a realidade e o delírio, tudo ocorre dentro da mente da personagem, que vive duplamente dilacerada. Por um lado em sua vida intima, entre a extensão de sua infância e seus desejos de mulher, e ao mesmo tempo em sua vida artística, entre sua perícia técnica e seu impulso criador. 
    Nina é uma jovem doce, meiga e frágil, de uma beleza luminosa e um talento provindo da dedicação e do esforço. Mas ao ser desafiada pelo diretor de sua companhia de bale a interpretar o cisne negro, entra em contradição com sua própria personalidade. A peça “O Lago dos Cisnes”  conta a história de uma princesa que enfeitiçada  se torna um cisne branco,  e passa a esperar o amor perfeito para se libertar, mas quando enfim surge o príncipe ele é seduzido pelo cisne negro, terminando a história da princesa em um  trágico suicido. Nina é a exata imagem do cisne branco, tanto em sua vida pessoal como na profissional. Na vida pessoal ela é a imagem da pureza virginal, oprimida pela superproteção da mãe, que a mima e controla de uma forma amorosamente perversa, mantendo-a presa a um ambiente infantilizado, privando-a de qualquer intimidade e privacidade com seu próprio corpo, ela reluta contra o desejo sexual que arde em seu interior. Em sua vida profissional ela encarna o apolíneo da arte, técnica, controle, configuração exata de gestos e formas, harmonia, beleza. Mas para interpretar o cisne negro ela necessita do dionisíaco,  o extase, a paixão, o desejo, o instinto.
     Nina, que se realiza ao conquistar o papel principal da peça, passa a viver uma paranóia com sua concorrente, a sexy Lily (Mila Kunis). Uma mistura perturbadora entre desejo e ódio. Lily passa a representar a imagem do cisne negro, sedutora, impetuosa e espontânea. Ela é tudo o que Nina não é e ao mesmo tempo tudo que ela quer ser. A personagem Beth Macintyre (Winona Ryder), antiga estrela da companhia, substituída, simboliza os maiores temores de Nina. Ela é a perfeição em decadência, os símbolo da autodestruição e do abandono, ainda mais depois de um terrível atropelamento  que a deixa praticamente aleijada. Nina há tinha como um exemplo de beleza, mas passa a teme-la ao ver quais as conseqüências de sua impetuosidade e agressividade, que a levam a um estado deplorável. 
    A narrativa do filme  tensa e angustiante,  traga pouco a pouco o espectador para dentro do drama de Nina, que assombrada por seus medos e ao mesmo tempo tomada pela obsessão do papel do cisne negro, começa a quebrar todas as barreiras racionais que separam arte e vida. O diretor se serve do elemento do bizarro e da estranheza para materializar a metamorfose psicológica vivida por Nina em algo corpóreo. Assim ela inicia uma espécie de mutação entre a mulher e o cisne negro. Esse elemento da ao filme algo de extremamente tátil e sensitivo, quase se pode sentir na pela as mutações do corpo de Nina, a pele que se solta, as penas que nascem, os ossos que se modificam. O suspense inquietante, carrega elementos de terror, que surgem nas visões de Nina tal qual fantasmas, desde a perseguição de seu reflexo nos espelhos, até cenas de sexo e assassinato com a concorrente Lily.
    O desfecho do filme revela Nina como uma artista em plena ascensão e declínio, do ápice de sua magnifica apresentação, a sua própria autodestruição, vigor e morte. Nina sublima seu próprio Ser atingindo a perfeição de sua obra e pagando com a vida por sua ousadia extrema e sua loucura divina.
    O que é a arte enfim, senão a experiência da vida, entendida pelo filosofo Dewey como a relação entre o homem e seu mundo? A verdadeira obra  de arte  é a experiência do artista materializada, e essa obra só pode sobreviver ao tempo quanto é revivida na experiência do fruidor, ou do interprete no caso de Nina, que revive em seu próprio drama pessoal a história criada a tornada música e dança por Tchaikovsky. O drama humano que se repete por entre os séculos, a batalha simbólica e espiritual entre a luz e as trevas, consciente e inconsciente, amor e morte, tudo isso se manifestou na obra “Lago dos Cisnes” , tudo  revive no filme “Cisne Negro”, na personagem de Nina, nos olhos e  corações dos que desfrutam. Será que por isso as verdadeiras obras de arte são vistas como imortais? Nietzsche nos diz no prefacio de leu livro “O Nascimento da Tragédia” que esta convencido de que a arte é tarefa suprema e atividade propriamente metafísica da vida. Tarefa suprema porque permite transcender a nós mesmo em um  ato de autotranformação e autocriação, o homem deixa de ser artista e se torna obra de arte. Atividade metafísica porque a arte sendo uma mentira trata de uma verdade através de uma representação ou mímeses, assim ela é capaz de inverter os valores de verdade e mentira.  A mentira que convence o mentiroso se torna a mais poderosa verdade, a Arte!