quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

As Quebradeiras: a poética do movimento



As quebradeiras de coco de babaçu, é sobre isso o filme de Evaldo Mocarzel. Um tema simples, sobre o cotidiano simples dessas mulheres simples, fortes e belas, marcadas pelo trabalho duro e pelo canto festivo que afirma a vida a cada dia e a cada coco quebrado. Uma simplicidade que instantaneamente se transforma sobre o olhar investigativo e contemplativo do cineasta, que narra a vida dessas figuras, de seu universo simbólico, cultural, existencial, de forma a encontrar no enigma da visão a poética do movimento dos seres. O filme se liberta de toda a linearidade da narrativa, de toda palavra falada, de toda legenda racional, para se entregar por completo a sinestesia da imagem e do som. Esse é o resumo do filme, um filme de som e imagem, que fala através do corpo, que se constitui por movimento, sobre o trabalho, a cultura e a vida desses seres humanos.
As quebradeiras de coco de babaçu da região do Pará e Maranhão vivem do extrativismo vegetal, vivem do babaçu. Aproveitam tudo que a que a árvore pode fornecer, da semente fazem óleo, do broto se extrai o palmito, aproveitam as folhas para produzir esteiras e cestos, atividade que alimenta toda uma economia de subsistência ecologicamente correta. Mas tudo isso é só o obvio, pois o olhar que busca, que percebe, vai mais longe, perfurando por entre as inúmeras camadas da realidade... O vento soprando entre as folhas verdes do babaçu parece cantar na mesma toada que as quebradeiras, o movimento forte e preciso dos braços e da mão, que empunhando um porrete lascam o coco contra a pedra afiada, libertando de seu interior a semente da planta. Nesse documentário é o corpo quem conta as histórias e dele também que surgem as metáforas e signos que significam a vida dessas mulheres.
Por entre a floresta verde de arvores de babaçu caminha uma mulher, ela surge em meio ao verde formando na tela do cinema um quadro, uma tela plasticamente construída, que entre o movimento da imagem e a imobilidade da fotografia cria uma cena onírica, que lentamente lança o espectador atento e sensível a uma espécie de transe, onde tudo flui lenta e organicamente quase como se o espectador fizesse parte da imagem que observa. E não fará parte realmente?! No cotidiano elas que trabalham duro, também cantam cantigas e cirandas, preparam o alimento de cada dia no silêncio exuberante de suas casinhas simples de madeira, se banham no rio, e penteiam os cabelos sem a pressa dos que estão sempre a esperar. Em seu universo tudo é certo e natural, o tempo corre cíclico e ameno longe da turbulência da civilização moderna. O olho do cineasta liberta o espírito que passei pelo ambiente e absorve o espetro do visível dando origem a imagem que por sua vez toca o espírito do observador tanto quanto o do cineasta. Comunicação transcendental que se imprime por artifícios imanentes e materiais, tanto a câmera que filma, o projetor que produz a imagem na tela do cinema , e principalmente a retina que apreende a luz e transfigura as formas em signos visuais. Corpo e espírito trabalhando em fusão e relativa harmonia criam a visão, o olhar, o cinema.
É de um etnodocumentário que estamos falando, nele arte e ciência travam um dialogo rico e intenso sem fronteiras definidas ou preconceitos intelectuais. O cinema como instrumento de análise da realidade, da dinâmica de uma comunidade, um tipo de ciência da imagem unida a uma antropologia do olhar. E é exatamente esse o olhar de antropólogo que Mocarzel lança para tentar desvendar a linguagem peculiar das quebradeiras, linguagem que dá vida e significado a uma atividade aparentemente simples e tediosa, mas que no fundo comporta em si todo um universo de beleza incomensurável. O universo que se abre na imagem detalhista do seio negro da quebradeira que se banha no rio e que aos poucos se transfigura no coco de babaçu, dando tom a metáfora da vida. Como uma brincadeira da natureza o seio que alimenta o recém nascido leva a mesma forma que o coco que o alimentará na vida adulta.
Quanto pode falar uma imagem, quantas linguagens diversas podem nela se apresentar? Cabe ao cinema, em sua complexidade e multiplicidade, investigar!