sábado, 22 de março de 2014

A morte do guarda-chuva

Deitado entre as sombras do esquecimento, na lama da rua próximo ao bueiro, morre o guarda-chuva imerso em solidão. Em um canto de abandono, entoado na escuridão, lamenta o saudoso guarda-chuva, um tempo antigo, de símbolo e função. Se antes, seu mecanismo primitivo de abrir e fechar nas mãos humanas guardava a a ilusão de proteção, agora desamparado por seu criador, degrada-se a matéria, definha-se a memória. Sua nobre missão, de erguer suas abas-asas negras contra o firmamento em pranto, impondo-lhe valente resistência, já não vigora, já não atende, já não abriga ninguém a não ser sua própria decadência. Pobre guarda-chuva, desapropriado de seu destino, apenas na companhia sombria de ratos e urubus, que já lhe roeram os restos de esperança e lhe rasgaram os tecidos do sonho, revelando em sua bruta materialidade, a crueza de coisa, coisa entre coisas. E agora também coisa sem por que, sem para que, só para si, em si, sem nada. Em seu cabo corroído pelo tempo, ainda resta o ar de bom burguês, as lembranças de seu constante flanar pela cidade, como bengala ou estandarte de transeunte. Passa a madrugada vazia, a noite não quer dispersar, mais densa, mais negra, ela parece se congelar em imagem, em estampa texturizada, grossa, dura, eterna. O guarda-chuva ali, imóvel, cravado na noite, parte da paisagem de solidão, despedido, dispensado, desprovido de objetivo, alforriado de obrigação. Transformou-se em objeto selvagem, perdeu sua humanidade, sua lógica doméstica, seu lugar determinado no mundo. Morre o guarda-chuva, morre a função, morre a palavra, sobra o resíduo de memória que paira como fantasma sobre o corpo renascido da coisa indefinida que sobreviveu e perdura em estranhamento.

domingo, 7 de julho de 2013

Objeto perdio

Ao meu mais antigo Amor,
restam as riquezas da dor,
as gotas de silêncio no canto da boca,
o odor de solidão nos cabelos e barba,
as noites escuras que raiam em mim.
Uma vela no breu para desnudar a imensidão.
E todo tempo perdido pertence a esse Amor indistinto.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Discurso 177

O primeiro valor que se da a um ser é o nome. O nome é a alma inventada das coisas. A forma invocativa que duplica o real e presentifica o ausente em som e imagem. Posto que nas trocas intimas a coisa ganha matéria de palavra e a palavra matéria de coisa. Antes do nome, que distingui e marca, as coisas eram chamadas indiferentemente de Tudo, ou Nada, tanto faz... fora da palavra, a beleza primitiva e assombrosa da natureza selvagem das coisas inomináveis, sem razão nem divindade, apenas o Isso.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Discurso 63

Não há um único dia em que eu não acorde querendo dormi. Com os olhos entreabertos ainda úmidos de aurora, vejo a vida se desfazer nas brumas do sonho, se perder na irrealidade dos desejos anônimos. E antes que eu possa afirmar que despertei, transito sem corpo, num tempo distinto, nostálgico e sonambúlico, entre mortos e não nascidos, entre Eus vividos e mentidos. E minha vida íntima e abstrata emerge, fluindo por sobre as engrenagens enferrujadas do cotidiano, enchendo minha externalidade, meus gestos fúteis e necessários,  da sonolência profunda e intransponível dos astros.
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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Discurso 301

Me olho no espelho e deparo-me com o Eu, essa construção precária e cambiante formada por fragmentos de percepção e memórias da superfície do Ser que chamamos consciência. E não paro de me perguntar o que há por de traz dessa máscara de pele, carne e osso, que as vezes se releva misteriosa num instante, no brilho de meu olhar vazio e infinito. A substancia mistica, a linha mágica que liga em emaranhados de nós a existência das coisas e dos seres, deixando indelével a marca das interdependências da vida, que se esticam e se encolhem, mas nunca se quebram englobando mesmo a morte e os aspectos parciais da finitude aparente. E que para além do indivíduo que sou, que se instala no tempo com seu começo e seu fim, habita em mim o impessoal da vontade universal. E sinto com angústia intima as raízes obscuras e profundas do que me precedeu e sustenta, e que proclama o vindouro, que mesmo desconhecido tende a regressar. Pois a escolha advem da ação, no tempo primeiro do corpo, antes do pensamento.

sábado, 12 de janeiro de 2013

O amor perfeito

A vida que quer se superar, tem sede do seu oposto...
A pedra que quer ser flor;
A flor que quer ser bicho;
O bicho que quer ser homem;
O homem que quer ser deus;
O deus que é pedra!
E silêncio...

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Discurso 88

Estou em uma rua de mão única, os lados opostos refletem o mesmo infinito misterioso. O corpo cravado na imanência do agora, vasto e poroso, transpassado de tempo. A frente o amanha, onde vejo as sombras estranhas do ontem. A paisagem abstrata e nebulosa brinca de enganar minha visão vacilante. As imagens imprecisas se transformam de acordo com o vento que me sobra pelas costas da  memória adormecida, despertando fantasmas incongruentes. Se sussurra o vento as lembranças de um mar, de ondas turvas de cor esmeralda, tudo se ilumina com os tons da esperança, e os raios de ouro do sol sobre minha cabeça, desenham histórias de prazeres indeléveis, de amores irrestritos, e posso até sentir o cheiro do calor da vida que arde no rosto e no coração de carne sensível e pulsante. Mas se o que me vem desse mesmo vento de outrora, pesa nas costas da alma como a angústia antiga dos mortos esquecidos,  descobre-se da familiaridade dos dias comuns o elementos bizarro que escapa a razão em tormento. Plantado o temor, desabrocha a rosa de um espírito avarento. E os passos que antes pareciam rumar ao futuro, se voltam para traz, em um andar de curupira, deixando pegadas que apontam para o contrário. E assim descubro que a mesma rua de mão única é agora a contramão de tudo que passou, e se volta novamente ao ponto desconhecido de onde parti para o então... onde o destino irremediável brinca nas linhas casuais do inesperado. E não tarda a surpresa a tocar em meu ombro e desperta de meu sono a vidência de um tempo ainda por vir.