segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Profissão mendigo




Já existíamos desde antes da época de Cristo, quem por sinal muito simpatizava conosco, e até acrescentou a barba e os cabelos compridos a nossa estética . Na Grécia Antiga lá estávamos, perambulando pelos cantos das pólis, e assim mesmo pregava o cínico Diógenes, um dos mais ilustres dos nossos por também ser filosofo nas horas vagas, vivia em uma barril, na completa miséria, possuindo apenas uma caneca e um bastão. Era ele símbolo do desapego e da auto-suficiência ante o mundo. Louco e profeta, indigente e poeta!
Na Idade Média enchíamos a entrada das catedrais e igrejas, mas não era só para pedir não, tinhas uma indispensável função espiritual dentro da doutrina católica. Já que eles pregavam a compaixão e a piedade, ninguém melhor do que nós para despertarmos nos outros tais sentimentos. E se os católicos estiverem certos e esses sentimentos realmente abrirem as portas do paraíso, nós já ajudamos muitas almas a se salvarem por ai! E até hoje dizem ai pelo interior que Deus toma a nossa forma emprestada para testar os fieis.
Se pensarmos no surgimento do mundo capitalista também veremos uma importância singular de nossas atividades. Nossa desgraça e miséria tomada simbolicamente pelas forças do Estado serviam de exemplo para os trabalhadores, numa espécie de terrorismo mental. Vejam o que acontece aos que não se adaptam a disciplina industrial da nova ordem mundial ! E lá estávamos melancólicos e taciturnos, como almas perdidas no purgatório, cumprindo resignado nossa terrível função social, jogados como lixo nos becos sujos de Londres, Paris, e logo, por todas as metrópoles do mundo moderno. Peças chaves no entendimento da dialética moderna, somos sempre a outra extremidade do progresso capitalista, o lixo sempre defronte ao luxo! Desta forma assumimos também uma função metafísica frente ao funcionamento da existência.
Assim podemos ver o quanto é antiga nossa profissão, assim como a miséria sempre existiu na alma humana nós também sempre existimos nas diversas sociedades, para lembrar a própria miséria que caracteriza a condição humana desde nossos primórdios animais. Se pensarmos na atualidade confirmaremos nossa importância estrutural na sociedade capitalista. Nós que recolhemos as moedas excedentes dos bolsos e carteiras, nós que recebemos as pilhas de roupas velhas que entulham os armários, nós que apoiamos ongs e empresas com “consciência social” a ganhar exoneração de impostos, nós que tornamos mais felizes os natais e feriados santos para os que doam. E afinal o que seria de um sistema que se fundamenta na exploração sem ter os explorados, o que seria da economia mundial sem os ratos e abutres que comem os restos deixados para traz pelos leões e leoas do mercado?
Muito se elogia as grandes e nobres profissões da humanidade, médico, cientista, juiz, professor(hoje em dia nem tanto), general, presidente e tantos outros clichês. Para nós guardam palavras não muito afáveis, como vagabundos, indigentes, inúteis, e o melhor de todos, parasitas sociais. Não nego nenhuma dessas classificações, afinal historicamente eles fazem parte da imagem necessária a essa profissão. Temos de ser sujos, feios, maltrapilhos, desprezíveis, patéticos, dignos de dó, temos que pedir, implorar, enojar, comover, sem isso não atingimos nosso objetivo de sobrevivência (algumas moedas) nem nosso papel social(subconsumidores). Seria como tirar do médico seu estetoscópio, ou o carro do motorista! Se muitos nos acusam de enganadores e fingidos respondo com prontidão; toda profissão leva naturalmente alguns elementos cênicos não se pode negar, e se mentimos as vezes e isso parece uma atitude anti-ética, eu agora é que pergunto, e os políticos corruptos, as impressas sonegadoras de imposto, ou mesmo os que estacionam em vagas de deficiente, são eles mais éticos ou menos éticos que nós?
Dessa forma exijo o reconhecimento de nossa profissão, que não é melhor ou pior que nenhuma outra. Se um indivíduo se torna advogado é porque seu meio o possibilitou isso, ele não existiria em uma sociedade por exemplo sem leis, ou com uma lei única. O mesmo raciocínio pode ser aplicado a nós, entre muitas profissões escolhemos a que nós é mais próxima pela condição dos meios em que vivemos( poderíamos ter sido assaltante, traficante, pedreiro, catado etc), não existiríamos em um mundo sem exploração, sem desigualdades, ou que desprezasse a piedade. Não quero dizer com isso que os seres humanos são escravos das circunstancias, mas sim que muitas vezes nos acomodamos com elas, e quem terá coragem de jogar a primeira pedra em um homem acomodado? E digo mais, se vivemos uma crise de ética na sociedade podem ter certeza que isso não vem só dos mendigos mentirosos não, traspassa todas as profissões e escalas da sociedade, mas ainda assim fico feliz se a reflexão ética começar por nós, afinal cedo ou tarde ele tem que vir de algum lugar, além disso já assumimos tantas mazelas da sociedade porque não mais essa? Pelo menos que essa seja por um fim maior...