domingo, 23 de agosto de 2009

Nas graças de Calypso


Eis que surge da penumbra a aguardada dama da noite, com suas vestes longas de sacerdotisa e seu canto de sereia, como a ninfa dos mares que aparece na canção “Porto alegre”. Seu semblante juvenil e inocente e sua voz de tom doce e melancólico enganam os ouvidos desatentos que acreditam que ela canta o romantismo do amor. No fundo sua música sensitiva e minimalista, rica em metáforas e imagens poéticas provoca um forte impacto sonoro, que me parece surgir principalmente de sua proposta dialética que contrapõe sua interpretação leve e angelical com suas letras existencialistas de temática pesada, que remetem aos sentimentos mais densos, complexos e perturbadores que surgem do âmago da alma humana. “Transito entre dois lados de um lado eu gosto de opostos...” diz ela. Assim suas músicas, que se iniciam sempre de uma simples levada de violão, cantam a desilusão, a busca e a perda, o medo da solidão e o desespero da incompreensão de uma existência incompreensível. Mas ela fale de amor? É claro que ela fale de amor, não se faz arte sem se falar de amor, explicita ou implicitamente. Mas a grande questão não é o amor em si, sentimento polimorfo e difícil de ser definido, mas sim a falta de amor, a busca incansável e constante por amor, as ilusões e desilusões do amor, os prazeres e as dores do amor, as transformações do amor que permanece e se modifica ao mesmo tempo. “O nosso amor não vai parar de rolar de fugir e seguir como um rio”. O amor incansável e insatisfeito que nasce e more a cada instante, sempre em busca de um segundo mais feliz. É esse o universo que se ergue de sua música, a completude dos opostos, a insustentável leveza do ser nas palavras de Kundera.
O mar, figura presente em vários de seus álbuns anteriores, surge nesse novo álbum como figura central presente logo no titulo “Maré”. E é assim que ela abre o concerto, cantando as várias imagens poéticas do mar, suas cores e suas formas. “Mais uma vez vem o mar se dar como imagem... Sendo salgado gelado ou azul será só linguagem... Estando emaranhado verde azul será ondulado”. Mar de Poseidon, mar de Iemanjá, mar de Adriana! O mar, espaço amplo, quase infinito de liberdade,ela abre o concerto com a canção ‘Maré’,e fecha com a canção “Sargaço mar”, composição de Dorival o poeta, o mar do mistério da morte, a perdição da alma e a salvação pela fé, o som eterno que toca sempre ao longe e embala as vidas dos homens e mulheres que sabem ouvir... Iemanjá odoiá!

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Vítima da Solidão



De repente eis que desperta assustado com um grito! Mais não um grito ouvido e sim um grito sonhado, que no fundo não tem diferença alguma. Os olhos arregalados pouco a pouco vão identificando as formas dos objetos no quarto escuro. O suor gelado escore-lhe pela face, o corpo treme, sente o coração palpitar tão rápido como se quisesse fugir do peito. Que dia era que mês? Não se recorda, menos ainda há quanto já estava ali dormindo, parecia que já haviam passados anos sem acordar, e ainda assim tudo permanecia igual. Atordoado pelo pesadelo que não se recordará bem, a não ser pelo gosto amargo de medo que ficou impregnada no pensamento, resolve se levantar. Olha ao redor. Todo o minúsculo apartamento de dois cômodos estava revirado como se ali passará a pouco um tufão. Roupas sujas cobrindo a pouca mobília, livros espalhados em pilhas desorganizadas pelo chão, as plantas mortas na janela por falta de luz e água e o cheiro forte que exalava da pia da cozinha repleta de pratos sujos e restos putrefatos de comida chinesa. Com a boca seca alcança na escrivaninha entre as latas vazias de cerveja uma garrafa de vodca barata, onde ainda restava um último trago. Só depois de sentir o gosto forte da vodca descendo pela garganta e que ele realmente percebe que está acordado e vivo, ou pelo menos meio vivo! A vida só se pode definir pelas sensações que proporciona, principalmente pela dor que é a prova da vida material. Com a mente ainda turva de pensamentos e imagens estranhas e desconexas, apanha um cigarro meio fumado no cinzeiro entupido de cinzas e bitucas e acende. Empurra paro o chão uma pilha de roupas que estavam encima da poltrona e se senta buscando na memória vaga alguma explicação para tamanha decadência. Enquanto fuma lentamente, fixa sua atenção na aresta superior entre a parede e o teto do quarto, onde uma pequena aranha em sua casa de teia acaba de capturar uma mosca e se prepara para devorá-la. Aquela cena simplória e quase insignificante a qual ele observa por um tempo indeterminado que não caberia nos ponteiros de um relógio, lhe atinge como um dardo que rasga o esquecimento e libera emoções perdidas ou escondidas na memória. E automaticamente a palavra Existência lhe vem na mente, por um instante ele se recorda de seus antigos estudos de filosofia, e sussurra para si mesmo: “Existir significa nascer e morrer, um movimento de eterno retorno, vazio e sem sentido ante a imensidão infinita do universo”. Novamente ele sente a prova de que está realmente vivo. Numa distração ele queima seu dedo com o cigarro, e mais uma vez a dor se lhe apresenta, fraca sim, mas análoga a tantas outras que ele já sentira dilacerando sua alma. Ou haverá alguma diferença entre a brasa que queima apela e o Amor que arde no coração, ou a Angústia que perfura fundo a alma do homem?! Caminha até o banheiro, quer ver sua face no espelho. Olha-se e não se reconhece! A barba grande, os cabelos desgrenhados, as olheiras fundas, a pele pálida quase sem expressividade, o rosto magro e ossudo. “Quem é afinal esse que se apresenta no espelho?!” Se pergunta sem resposta. “Eu não posso ser; no máximo é meu cadáver que insiste em vagar por esse mundo”. Desconcertado pela imagem de sua própria morte, em um movimento brusco ele quebra o espelho com um soco e sente seu sangue viscoso escorrer por entre os dedos. Agora o espanto e ainda maior, seu corpo parece lhe dizer que ele ainda está vivo, mas ele sente um Vazio no peito que lhe prova que sua alma dali já se foi. Ele resolve se deitar novamente, mas o medo lhe presenteia com a insônia. Na cama ele fica de olhos bem abertos ouvindo os passos de fantasmas e demônios que o espreitam pelo apartamento. As lagrimas lhe correm dos olhos para o rosto compulsivamente, e ele já nem se lembra mais o que lhe faz chorar, mas sente-se incapaz de parar. Levanta-se novamente e pensa em abrir a janela, talvez gritar por socorro. O medo lhe congela os braços e o máximo que consegue é observar pelas frestas da janela a rua deserta. Já devem ser altas horas da madrugada, madrugada que para ele parece nunca ter fim. Ele olha com estranheza a rua lá fora, como se fosse um estrangeiro e sente um absurdo desapego a toda e qualquer coisa. Cai uma chuva leve por sobre o asfalto, essa cena se perpetua como se o tempo houvesse morrido. De manhã com o nascer do sol a policia arromba a porta do apartamento, e o encontra sentado inanimado no chão ao lado da janela fechada. E nos jornais se publicam a manchete: “Morreu hoje em seu apartamento mais uma vítima da Solidão”.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O exilio



Quem são os sem alma? Para que terras remotas são enviados os que perderam sua alma? Porque crime hediondo foram eles condenados, que tipo de Deus cruel os flagela? São eles os exilados da alma! Nasceram sem essência esses pobres infelizes, e se algo conseguem construir logo se esvai como poeira, por isso são amorfos, sem rosto, sem pátria, sem família, sem iguais. Eternos andarilhos vagam por entre as multidões imperceptíveis e rapidamente desaparecem ao longe como fantasmas. Carregam na fronte a marca de Cain, estigma dos homens e dos tempos, marcados por seu ódio, marcados por seu mal, marcados por serem demasiado humanos! Neles não se pode fala, eles poucos podem ver, estrangeiros de todos os lugares, estranhos a tudo e a todos, degredados do mundo e de si mesmos. São eles os exilados da alma! Inconformados com o existirem como coisa, como bicho, como homem... Eles fogem, fogem do destino, da dor, da morte, do amor... Ao contrario da maioria dos humanos que se contentam com as ilusões da civilização eles fogem. Para onde fogem? Para todos os lugares e para lugar nenhum. São eles os exilados da alma! Na bagagem a solidão, nos olhos a desilusão, no peito o nada deixado pelo vácuo da alma que lhes foi arrancada. São eles os exilados da alma!

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Crônica Urbana III: Fui na esquina comprar "pão"



Ainda de dentro do carro ao longe percebi o movimento, que pode ser discreto a olhos desavisados, mas sem dúvida nenhuma é descarado aos olhos de quem sabem procurar. É interessante perceber isso, pois o mercado negro funciona basicamente como o comércio convencional, vendedor, clientes, produto, dinheiro... A peculiaridade dessa forma ilegal de comércio é o fato de que ele deve ser visível para uns e invisível para outros, a verdade é que quem procura sabe onde achar, e mesmo os agentes da lei sabem achar, mas quando estes não estão envolvidos com os vendedores caiem na hipocrisia comum e fingem que não estão vendo nada. Acho que só não sabe quem realmente não quer saber. E isso é até aceitável já que esse submundo não é nada agradável. A identificação rolou pelos olhares trocados rapidamente entre consumidores e fornecedores. Eles, os fornecedores, são gente experiente na área, conhecem o tipo certo de seus clientes de longe, não que exista um único estereotipo para esse tipo de gente, na verdade existem muitos e ainda assim não comportam toda a multiplicidade indefinível de consumidores que variam desde um senhor de meia idade e suéter de lã, até um adolescente de moicano verde. A coisa acontece mesmo é pelo olhar, pelo movimento, um sacando os interesses do outro.
Passamos uma única vez de carro na frente da comercial, e isso foi o suficiente para entendermos que ali tinha o que queríamos. Estacionamos no fim da rua e subimos caminhando lentamente. A rua estava cheia, era o lugar perfeito para esse tipo de compra, cheio de bares e boates. Indiscutivelmente em qualquer lugar do mundo onde há juventude e álcool há também todos os outros adereços para a diversão. É tão obvio perceber a ligação do álcool com todas as outras drogas que chega a ser engraçado o fato de que o álcool é legal e as outras ilegais. Paradoxo ou hipocrisia social?! Em meio às pessoas que transitavam e bebiam por ali percebemos e fitamos de longe os agentes do narcotráfico, eram três tipos espalhados pelo estacionamento. Como percebê-los é fácil, normalmente se passam por vigias de carro, meio hippes, meio mendigos, meio traficantes... Um deles se aproxima sabendo bem o que queríamos, do branco ou do preto ele pergunta. Era alto e magro como um esqueleto, de pele morena cabelos e barba desgrenhados, bermuda, camiseta e chinelos. Seu olhar mal encarado parecia dizer que ele era capaz de matar qualquer um por pouca coisa, talvez isso não seja bem a verdade, mas sem dúvida queria dizer que ele tinha uma vida dura e perigosa e disso acho que ninguém pode duvidar. Vinte do preto, dissemos há ele, esse tipo de compra é feita por códigos, às palavras tem de ser poucas e o movimento rápido, dinheiro em uma mão produto em outra. É claro que toda essa precaução não evita com que todos que passem percebam o que esta sendo comercializado, as pessoas sabem e até fazem fila esperando sua vez, como em qualquer shopping. Nós o acompanhamos até a parte de traz do comércio, um lugar escuro e com forte cheiro de urina, esse é o ambiente característico. Às vezes paro para pensar que aqui no Brasil tudo podia ser como na Holanda, por exemplo, você entra em um coffee shop escolhe a dedo o que vai fumar paga, fuma, pode até beber alguma coisa enquanto ouve uma música ou conversa com um amigo. Ah isso que é um país verdadeiramente capitalista! Proibir as “drogas”, que nada! Se tiver quem compre sempre haverá quem venda, proibido ou não. Enquanto aqui, entre os flagelados da globalização, nos afundamos em repressão e preconceitos arcaicos que só alimentam cada vez mais o mercado negro e a violência! E além de tudo somos nós os grandes fornecedores dos holandeses, ou seja, a um valioso produto internacionalmente apreciado que nós produzimos e vendemos, mas a grana acaba nas mãos de uns poucos mega-empresarios do narcotráfico, e nada sobra para o país que ainda acha lindo quando alguns governadores colocam batalhões e mais batalhões de policia para prender gente nas ruas e favelas e periferias, repressão jamais resolveu problema nenhum, só aumenta a violência. Afinal o narcotráfico gera empregos, e se for pela violência que ele é proibido, convenhamos,fabricas de armas provocam muito mais violência, então porque não às fechamos primeiro?! Assunto longo e controverso, eu sei...!
O sujeito retirou um pacote de uma vala aberta por detrás de uma loja, ratos e baratas eram só um detalhe da paisagem urbana. O submundo tem de ser asqueroso, escuro, perigoso, tudo isso leva um ar de mistério que me atrai, mas confesso que preferia um produto mais higiênico. Ele nos entrega nossa parte e recebe sua grana, tudo se finda em poucos minutos. Alguns dias depois vejo no jornal que uma batida policial prendeu traficantes de drogas nessa mesma rua, provavelmente nosso fornecedor há essa hora esta em cana, que importa isso paro o narcotráfico? Que importa isso para a sociedade? Mais um ou menos um não faz diferença, de onde veio esse infeliz existem milhões de famintos prontos para fazer o que for necessário para conseguir um pouco do que o mundo exige e nega a eles. Será que é assim que se resolve um problema social, proibindo determinado produto com a ridícula desculpa de que ele faz mal a saúde, e prendendo os que vendem para sobreviver?! Por de trás de tudo isso existe um sistema globalizado, cruel e explorador que gera milhões e move o mercado capitalista. Tolice é achar que por ser ilegal esse sistema se diferencia do restante, as diferenças existem, mas no fundo é a mesma coisa, poucos ganham muito e muitos ganham à marginalidade e a miséria!