segunda-feira, 31 de maio de 2010

A melancolia


A melancolia é uma espécie de tristeza resignada. Sem objeto fixo, sentimento ou lembrança que a retenha ou represente, é totalmente abstrata. Provem de tempos imemoriais , de primitivas tristezas tão profundas quanto as raízes do Ser. E de tão antiga já não se manifesta como estranhamento ou desconforto, é sim como um desalento acanhado e sóbrio de quem mira a existência sem pesar, mas com a fatídica percepção de que tudo é vão. Há nisso uma beleza triste, como a de quem se cansa de ser feliz e deixa a alma descansar em paz, contemplando o ínfimo infinito no olhar perdido para o além.

domingo, 2 de maio de 2010

Impressões de uma viagem



Por conta de minha graduação na universidade e afim de evitar comemorações exacerbadas e festanças desmedidas entre familiares e amigos, o que iria me constranger, pois a universidade muito mais do que um diploma me ampliou o senso critico mostrando-me o quanto minha conquista era importante e ínfima frente aos infinitos e tortuosos caminhos o conhecimento. Preferi optar então por uma singela viagem, que muito melhor do que uma festa me serviria de retiro espiritual, uma oportunidade para refletir sobre as incertezas de meu futuro e sondar a fundo meus mais secretos desejos e sonhos.
Escolhi, não por acaso, a bela cidade de Ouro Preto. Muitos motivos poderiam elucidar minha escolha tão certeira, entre os mais destacáveis posso escolher dois; meu singular gosto por cidades históricas que guardam em sua arquitetura as marcas do tempo como prêmios, e mais parecem museus a céu a aberto; e minha constante e incansável busca e apreensão de valores estéticos e identitários que possam constituir minha alteridade, e portanto, nada melhor que regressar as raízes mineiras de minha família, e buscar no interior desse estado a alma de meus antepassados que muito falam sobre mim. Além de tudo o ar de cidade pequena acalma os nervos e convida ao devaneio. E mesmo repleta de ladeiras íngremes que dificultam a locomoção, aquelas calçadas de paralelepípedo foram a passarela de meu exercício de flâneur.
Tomei um ônibus e a viajem apesar de relativamente curta, não foi das mais confortáveis. Mas ao som de Milton Nascimento preparei meus sentidos para o que me esperava por entre aqueles morros misteriosos de Minas Gerais. Cheguei logo ao amanhecer, o sol anda tímido surgia por entre os morros exuberantes que cercam a cidade. Respirei fundo aquele ar fresco com sabor de novidade e partir para o primeiro reconhecimento da cidade que se me apresentava bela e misteriosa com suas muitas historias escondidas em cada pedra da rua, cada telhado de casa, em cada janela e em cada porta que pareciam dar para um passado distante e ao mesmo tempo presente. As ruas ainda estavam imersas por um leve névoa, o que criava uma atmosfera européia, que se completava com o frio que fazia, muito além do que estou acostumado. Ser forasteiro em uma cidade e saber que absolutamente ninguém ali sabe quem sou ou de onde venho, por isso ninguém exige ou espera nada de mim, isso me dava uma grande sensação de liberdade, pois nenhum verdade factual me aprisionava, pois até mesmo meu nome eu poderia reinventar se assim me apraze-se. As músicas de Milton ditavam o ritmo de minhas andanças pela cidade, e mesmo descobrindo uma novidade a cada passo não demorou muito para me sentir totalmente a vontade naqueles espaços, é claro que a estética barroca da cidade muito contribuiu para essa profunda identificação de minha parte, e cada igreja ou casarão que eu me deparava me deslumbrava em uma novo êxtase estético.
Me hospedei em um pequeno e aconchegante quarto de uma estalagem simples com o nome de alguma santa, toda a cidade exala uma forte ar de religiosidade e espiritualidade. A estalagem era próxima ao centro histórico da cidade o que facilitava minha locomoção, e além disso era em um típico casarão antigo, com longos e estreitos corredores fantasmagóricos de tábuas rangedeiras. Meu quarto tinha uma simpática escrivaninha, onde anotava diariamente minhas experiências e percepções sobre a cidade, seus habitantes e a sobre mim mesmo.
Os dias em Ouro Preto se sucediam sem a comum descontinuidade que sinto em minha vida urbana cotidiana, pelo contrário, lá cada dia parecia completar o anterior em uma seqüência construtiva, e aos poucos a cidade foi se desenhado em minha memória e constituindo minha narração. Passei os dias a visitar calmamente os museus e igrejas, com longas pausas para conhecer os bares, restaurantes e cafés mais simples, onde degustei avidamente da magnifica culinária mineira, que conheço bem desde o berço e nunca me enjoou. Sempre acompanhado do livro do desassossego, selecionei os mais tranqüilos e isolados lugares para leituras e devaneios (o parque Horto dos Contos era um de meus favoritos), a beleza natural das paisagens de Minas, os morros verdes e o céu límpido e azul cheio de uma luz exuberante e fria contribuíram muito. Passava longas e imperceptíveis horas sentado nos bancos das igrejas barrocas, a adorar a obra de Aleijadinho e seus contemporâneos. O barroco que é a primeira manifestação artística da modernidade que se livra das estreiteza da racionalidade renascentista e aponta para o infinito indefinível, me abalava com suas construções sublimes. Eu me punha a refletir sobre como um símbolo religioso, um altar ou uma coluna entalhada de anjos, podia ao mesmo tempo tocar o divino e flertar tão avidamente com o profano, isso é o barroco, a latente contradição humana, a batalha entre o corpo e a alma, entre Deus e o Diabo no coração do homem! Isso também marcava a vida e a obra de Antônio Francisco Lisboa, mulato, mas filho da nobreza, arquiteto e escultor divino, mas amaldiçoado e deformado por um destino trágico.
Toda a cidade estava muito movimentada por conta do festival de inverno, que envolvia muitas atrações culturais, concertos musicais , peças teatrais etc. Conheci o aconchegante e estilístico teatro de Ouro Peto, onde assisti a apresentação da orquestra municipal. Na praça Tiradentes conferi de perto uma peça sobre a passagem de Ulisses na ilha dos ciclopes, uma encenação magnifica, com figurinos impecáveis e um tom de teatro popular da idade media que me arrancou lagrimas de emoção. O museu da inconfidência chamou minha atenção para esse interessante episódio político-social da história do Brasil, os ideais da revolução francesa, as conspirações planejadas nas casas de intelectuais e artista, a identidade cultural de um país em formação, tudo isso encheu minha imaginação. Logo tive acesso a obra de Cecília Meireles que narra poeticamente a inconfidência, o que desenvolveu em meu espírito uma grande apreço pela história de Minas Gerais, e por mais que eu saiba que o símbolo de Tiradentes foi forjado na época da proclamação da republica por questões político-ideologicas, ainda assim o ideal dos inconfidentes considerado em seu devido contexto histórico revela o que a alma humana tem de mais sincero e profundo, a busca incansável por Liberdade. Simplesmente me cativou! E agora faz parte do que sou ou penso que sou.
Caminhar por aquelas ruas era como voltar no tempo, eu quase podia ver os escravos em seus afazeres diários. E apesar de não ser religioso, e até me considerar anti-clerical, não poso deixar de considerar a imensa beleza das igrejas que ultrapassa os dogmas opressores da instituição católica, e em seu interior convidam a reflexão e a contemplação. Me impressiona cada vez mais o poder da arte e sua presença irredutível na vida dos homens em todas as épocas. Através dela se pode falar de tudo, política, ideologia, ciência, religião, história, filosofia, tudo cabe nela. A arte barroca de Ouro Preto conta com detalhe a vida e a sensibilidade do homem mineiro do século XVIII e XIX, esta lá para quem tiver olhos para ver. Desbravar as ruas e esquinas de Ouro Preto foi como desbravar os recônditos de minha alma, foi como relembrar vidas que não vive, mas que poderia ter vivido, e agora vivi, pelo menos na imaginação. E afinal não é disso que se nutri a história?! Findo minha narração com a frase estampada na bandeira de Minas Gerais por influencia dos inconfidentes. Frase essa que desde que a li pela primeira vez passou a guiar meu ideal de sonhador e de incansável buscador do infinito: “Libertas quase sera tamien” (liberdade ainda que tardia) tirada dos versos de Virgílio por Alvarenga Peixoto.