quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Feliz Natal


 Ele consumira o primeiro grama ainda em casa, no banheiro, depois do banho, enquanto se encarava no espelho e repetia para si mesmo, como uma forma de aumentar sua convicção, que esse ano ninguém iria faze-lo de palhaço na frente da família. Vestira seu  melhor terno, o que sua mulher lhe dera para os eventos sociais de fim de ano .Ela dizia que já não suportava mais ser vista pela família dele como uma suburbana emergente e sem classe, que não cuida bem do marido. Que por isso, agora fazia questão de desfilar com tudo do bom e do melhor que haviam conquistado, roupas, jóias, perfumes, mesmo que fosse só mentira. Aquelas bruacas fofoqueiras, dizia ela sobre as noras, iam ter que engolir a seco seu próprio veneno. E para completar o espírito natalino, havia comprado ótimos e caros presentes para mostrar a sua infinita generosidade a aquelas pessoas que ela sabia que não gostavam dela.
    A mulher de Ronaldo, Ines, carrega desde o casamento uma magoa enorme das noras e da sogra que fizeram de tudo para Ronaldo desistir, afirmando que ela não tinhas os dotes corretos para uma boa dona de casa, que não era uma mulher carinhosa para formar uma família feliz. Desde então se refere secretamente a elas como conspiradoras de brinco de pérolas, quando está somente na presença do marido. Por esse e outros motivos, envolvendo outras intrigas de festas natalinas passadas, para Ines é imperdoável nessa data tão bonita, demostrar qualquer tipo de fraqueza, dúvida, medo ou necessidades perto da gente da família de Ronaldo. A única missão dela nesse evento é mostrar como foi capaz de formar uma boa família, e o quanto é feliz. E para isso vale de tudo. Até dividir em cinco vezes um terno caro para o marido, e em oito vezes um colar e brincos para ela.
    Ronaldo, a mulher e as filhas chegam a casa do patriarca da família para a ceia de natal. O clima é sempre o mesmo, afabilidade falsas, elogios exagerados e risadas forçadas, tudo para disfarçar a natural tensão viva e pulsante no ambiente. Pois a família Braga  era também uma empresa, e por isso os irmão eram também sócios. Ronaldo por sua vez sempre achava que os irmãos mais novos tramavam para tirar-lhe parte da empresa, para roubar-lhe parte dos lucros. Esses fizeram faculdade na área de economia e administração, enquanto Ronaldo aprendera tudo sobre negócios com o pai e na prática, sem diploma nem nada. E apesar de se saber competente, sempre se sentia inferiorizado pelo falta do tal diploma, e sabia que os irmãos adoravam coloca-lo em situações constrangedoras frente ao pai, utilizando conceitos e jargões que ele desconhecia.  Ver os irmãos explicarem ao pai, como doutores que eram, sobre as atuais condições econômicas do Brasil, e falar sobre os investimentos na bolsa de valores, acendia em seu peito a inveja, que lhe ardia as entranhas.
    As mesas postas no jardim lateral da casa acomodavam os convidados, entre elas os garçons serviam bebidas e tira gostos antes da ceia. O pai e a mãe de Ronaldo eram pessoas simples, vindas do interior e já muito idosas para se preocuparem com requinte e luxo, mas para os irmãos e noras, isso era indispensável, o raciocino é mais ou menos o mesmo que o de Ines. Ronaldo transitava entre os diferentes núcleos da família para se mostrar presente, portando um grande copo de whisky, que lhe servia de apoio, uma espécie de  lubrificante social, um objeto fetiche. Participava ativamente com todo tipo de opinião e observação exdrúxula nas conversas maçantes dos parentes que só via uma vez por ano. Com os irmãos falava de negócios, uma conversa cansativa e exagerada, com gritos e gargalhadas, repleta de subtextos, induções, frases dúbias, acusações brincalhonas e ironias afiadas. Ronaldo sabia que cada evento familiar como o natal, era no fundo uma batalha cruel pelos elogios do patriarca da família, que não só deu-lhes a vida, como de uma forma ou de outra era o responsável por mante-la até os dias de hoje, afinal cada filho só tinha seu ganha pão por conta da empresa do velho. Ronaldo se incomodava com as máscaras, a dele não lhe caia bem, se sentia sempre na emergência de ser descoberto, acusado de falsário, corrupto, mentiroso, sovina. A tensão o sufocava, sabia bem que qualquer palavra mal calculada poderia criar desconforto, gerar fofocas ou mesmo discussões, como já acontecera em natais passados.
    Há três anos atrás, ele discutira feio com um dos irmãos, Cláudio, e quase que tudo acaba em barraco. A discussão começou de forma fútil, por um maço de cigarros, mas terminara em acusações e insultos. Se não fosse a bronca do pai, talvez até saísse na mão com  irmão. Em outro natal ainda mais antigo, mas marcado na memória, sua esposa se ofendera com uma piadinha feita por sua mãe, e o natal terminará mais cedo. Ines enfurecida  simplesmente recolheu as crianças  puxou-o pelo casaco e se retirou bruscamente  antes da ceia ser posta. Muita, paciência, tempo e hipocrisia foram necessárias para se criar essa película frágil de aparente confortabilidade e paz no natal.
    Ines depois de misturar vinho tinto  e calmantes, mantinha uma cara de paisagem e um sorriso frouxo em quanto ouvia as noras contarem vantagens de suas viagens internacionais.  E ora ou outra se enchia de entusiasmos para contar algumas pequenas mentiras sobre sua profissão ou de forma distraída degradar algum aspecto das histórias das outras.  Já Ronaldo se botava inquieto, nervoso, as vezes ouvia alguns tipos de comentários que o faziam delirar de ódio por dentro, não suportava a arrogância dos irmão e as patetices de sua esposas tagarelas e fúteis. O olhar do pai, sempre reprovador, ele trazia da infância, evitava qualquer confronto com o velho, sabia que frente a família qualquer discordância com ele poderia esmagar sua moral, e nenhum argumento seu, por mais racional que fosse seria considerado. Ele não teria chance, seria humilhado, por isso deveria evitar qualquer tipo de embate. Toda essa situação lhe desconfortava, ele bebia, fumava um cigarro após o outro. Sorria sem graça,  por dentro irado, com os comentários insistentes da mãe e das tias sobre sua compulsão com a nicotina, o cheiro ruim que deixa no seu cabelo, problema do câncer, e o mal que pode fazer as crianças. Sempre infantilizado como se fosse incapaz de tomar decisões coerentes. As vezes até fingia que não era com ele para não dar uma boa resposta. Mas o que  mais lhe incomodava esse ano, eram os comentários maldosos  as piadinhas ácidas, que lembravam um calote que ele tomou na compra de um terreno, e que lhe deu um prejuízo considerável, fora a vergonha de servir como exemplo de trouxa no mundo dos negócios.  Cada vez que ouvia uma dessas piadas sentia o suor escorrer-lhe da testa, e em sua cabeça imagens de violência brotavam como em um filme de ação. Quanto sentia os joelhos tremerem, disfarçadamente ia ao banheiro, e pelo nariz tragava mais um grama posta na chave do carro. Mesmo inibido tentava de todas as formas ser sociável e se fazer ouvir.
    A ceia é posta, e inicia-se a comilança desenfreada, a abundância da comida é pura  excentricidade, e o desperdício fenomenal. Em poucas horas a  noite termina em uma estranha normalidade, presentes são entregues,  cumprimentos de feliz natal ecoam pela noite, e reina a "pax romana" na casa. Ronaldo volta  a seu apartamento. Sua mulher deitasse meio bêbada, com cara de quem ficou satisfeita com  a bela execução da farsa, o figurino preparado para sua família e o cumprimento de seu papel de boa mãe e esposa contente. Ronaldo inquieto e angustiado, sem sono passa a noite assistindo o canal de compras, assombrado por estranhos fantasmas de sua má consciência.
    Na manhã seguinte acorda assustado, depois de dormir poucas horas um sono desassossegado, com os gritos insistentes de sua mulher reclamando que estavam atrasados. Sabe bem que quando a ceia é na casa de sua família, o almoço do dia seguinte tem de ser na casa da família da mulher. Ele então descontente, mas conformado  se prepara  como sempre, cheirando na pia do  banheiro, depois do banho, para mais uma etapa do natal feliz de sua família. E olhando fixo para o espelho, ironicamente cumprimenta-se dizendo; "feliz natal Ronaldo"!

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Arte de Protesto?

A arte em suas múltiplas funções sociais ao longo da história assumiu muitas vezes o papel de instrumento de protesto. Independente da linguagem adotada a arte pode sempre servir como uma forma de critica, seja na pintura, no desenho, na música ou na poesia, algo que mecha com as estruturas e valores de uma sociedade, que desconforte e faça pensar ou mesmo que escandalize.
    Exemplos históricos não nos falta. No inicio do século XIX  Daumier foi preso por ridicularizar o imperador francês com  sua caricatura Gargântua, no mesmo século e na mesma França décadas depois, Baudelaire foi multado e teve os exemplares de seu livro Flores do Mal apreendidos pela lei. A antiarte desenvolvida pelos Dadaísta no inicio do século XX  era tipicamente uma arte de protesto radical, que mais tarde foi herdada pelo movimento Fluxos, já na década de 60. A luta por liberdade dentro de uma sociedade burguesa e conservadora era o mote que movia a criatividade desses artistas revolucionários e rebeldes. Daí surgiam todos os tipos de afronta aos “bons costumes”, performances e happening eram os novos instrumentos de ação político-artística, feito em lugares públicos, o objetivo era afetar as pessoas diretamente, tira-las de sua aparente confortabilidade, chocar, chamar a atenção, invocar a dúvida e a critica. Não podemos esquecer do Brasil nesse contexto, em plena ditadura militar os artistas queriam mais é protestar, canções e peças teatrais tentavam levar a critica ao governo até o público.
    Mas frente a atual situação socio-política e artística do mundo globalizado a pergunta que surge ao se pensar em arte de protesto é, como faze-la? Em um contexto onde tudo se torna produto e moda, e onde em meio a diversidade, o conformismo e a quotidianidade as pessoas estão totalmente anestesiadas e preparadas para ignorar complemente qualquer coisa que aparentemente as desconforte ou simplesmente encara-las com uma normalidade mórbida. Hoje em dia a força das mídias se ampliaram tanto que mais do que nunca, guerras, misérias e atentados se tornaram reality shows que se pode ver enquanto se toma uma coca-cola no sofá. A enorme diversidade proposta pela globalização e distribuída  pela Internet  parece tornar tudo convencional. O grande paradoxo de nossos tempos é mesmo a globalização internetica, que torna a própria diversidade um padrão. Como protestar sem cair no clichê e ser absorvido pelo sistema onde tudo se torna mesmice?
    Na abertura de uma exposição em grande museu brasileiro, em meio ao coquetel com mesa de quitutes e vinho em um clima formal de artista, especialistas e estudantes de arte, uma mulher surge com cara de zangada, e sem pronunciar uma só palavra arranca rapidamente todas as vestes, se colocando nua, e num pulo sobe sobre a mesa de quitutes e começa a se lambuzar bizarramente neles. Ela chuta com certa ira os copos, pratos e bandejas, fazendo uma bagunça. Depois da cena de poucos minutos ela sai andando entre os convidados, que a pesar do aparente espanto continuaram a comer e beber e até esboçaram algumas palmas para a artista performance tão “ousada” e “rebelde” (assim como a boa e vela  juventude dos  anos 60 e 70!). As pessoas acharam que tudo foi só mais um show como os da TV! Os “intelectuais” e “artistas’ presentes acharam lindo a jovem artista se expressando! Os mais desenformados  apreciaram suas belas formas femininas e riram da bagunça! O que aconteceu com o protesto, com desconforto e com a critica?! Será que se tornou impossível em nossa sociedade tocar verdadeiramente as pessoas através da arte? Será impossível criticar as coisas sem parecer ou um fundamentalista radical ou um piegas? Será possível fazer alguma coisa realmente criativa em meio a massificação globalizada? Dentro das relações de poder que estratégias devemos tomar para não sermos engolidos pelo sistema, pela mesmice e pelo conformismo? Concerteza não podem ser as mesmas estratégias das décadas passas! A nostalgia de uma época de engajamento social tem levado a atual juventude a cair em clichês, não que hoje falte coisas a serem criticadas, o problema é que o mundo já não é bipolar, já não há vilão e herói, já não há ditadura (pelo menos não tão descarada como antes), e por isso a crítica na arte precisa ser refazer, e ser mais delicada e minuciosa do que foi em outras épocas. Por fim, a verdade é que a tal performance até chegou a chocar algumas pessoas, claro que não os convidados, que devidamente alimentados saíram como se nada tivesse acontecido, mas sim os garçons  que tiveram que limpar tudo e recolher todos os cacos de vidro do chão. Esses devem ter se queixado: “Os artistas fazem arte e a bagunça quem limpa é a gente!”