quinta-feira, 28 de junho de 2012

Dicurso 11


Foi assim, de repente, num piscar de olhos, onde me falha a memória, em um instante sem tempo. Que vi, de relance, como quando viramos a cabeça muito rápido, e sobra no canto do olho uma imagem muito abstrata, como uma rastro ou uma pegada, bem na fronteira entre o percebido e o anunciado. Um fantasma! Ainda sem corpo ou palavra, mas presente, latente. Vejo a sombra da Morte, que se esconde silenciosa por de trás de todas as coisas (ou a Vida que aguarda na contingência). Sinto um medo que corta o pensamento, que inutiliza o gesto e cala a voz. E tudo ao meu redor torna-se cinzas. E a casca do mundo se revela frágil como um espelho. E desde então, caminho cauteloso e taciturno, como quem anda por sobre cacos. E ouso a cada passo, o solo se rachar lentamente por sobre meu pés vacilantes. Esse som de Angústia ecoa pelo vazio infinito de dentro de mim... Agora, tudo que espero, mesmo na desesperança, é tecer meu Véu de Maya, belo e brilhante, como o ouro falso dos tolos e dos loucos, repleto de múltiplas formas geométricas dançantes como um arabesco colorido. Para cobrir meu altar de papelão feito relíquia, e adorar meu falso ídolo de dupla face, brindando a vida com um cálice de ossos.

domingo, 24 de junho de 2012

As ilusões da felicidade nas ruínas do inevitável



Era um belo dia de fim de semana, não me lembro bem da hora, mas também pouco importa, pois lá dentro as luzes fazem o papel de um sol que nunca se põe, por isso é sempre manhã ensolarada. As pessoas caminham felizes pelos corredores, com as mãos sempre ocupadas de pacotes e sacolas de presentes, como se fosse sempre véspera de natal ou um eterno dia de aniversário. Nos cruzamentos dos corredores, simulações de praças com banquinhos, fontes e jardins, com plantas de plástico, mais verdes que o verde, pois nunca mudam de cor, mais vivas que a vida, posto que são insensíveis a morte. Nesse pseudo urbanismo tudo foi artificialmente melhorado, ou camuflado, não há espaço para sujeira ou depredação, excluiu-se tudo de detestável que ocupa a cidade real e triste lá fora, não há mendigos ou pombos imundos compondo o ambiente, tudo é muito asséptico como um hospital particular e forçadamente confortável. Ali todo o esforço tende a ser minimizado para a melhor apreciação e acesso aos produtos, amplos estacionamentos subterrâneos, metros e metros de escadas rolantes, elevadores de vidro com uma bela vista panorâmica para as enormes estruturas internas como as de um labirinto. A paisagem é exuberante, painéis de alta tecnologia cobrem quase todas as paredes trazendo aos olhos as mais incríveis imagens do mundo,em luz e som, como um sonho hollywoodiano, pessoas bonitas e saudáveis esbanjando felicidade e riqueza sem peso de consciência, dúvida ou temor. A vida virtual e as verdades virtuais. Não há espaço para infelicidade quando tudo que se precisa esta as mãos por preços razoáveis, com descontos no cartão em até trezentas mil vezes. A infinitude das vitrines, como um portal, anunciam a possibilidade de um mundo melhor, ou pelo menos mais belo. Roupas coloridas da última moda em Paris, aparelhos eletrônicos japoneses que prometem fazer de tudo um pouco para servir indiscriminadamente a seus mestres como escravos perfeitos. Sanduíches e doces a se oferecer promíscuos e obesos, tão suculentos, inflando a fome insaciável dos olhos. São todos, na verdade, os arautos que nos convidão a conhecer o interior das lojas templos para buscarmos neles a completude que nos falta, o tesouro perdido. Além disso o vidro das vitrines tem ma espécie de efeito mágico sobre mim, ele permite ver através dele ao mesmo tempo que projeta meu reflexo no interior da loja. Deslocamento! E como se eu já tivesse lá! Quando olho uma roupa, por exemplo, não vejo só a roupa no manequim, vejo a roupa em mim, e por um instante eu já estou vestindo aquilo que desejo, como se aquilo tivesse sido feito exatamente para mim, e por isso já me pertencesse por direito, quando volto a mim desse sonho acordado, sinto meu desejo cão feroz, e um vazio infindo em meu peito, como se parte de mim tivesse sido capturada. Caminho sem rumo, extasiado pela enorme quantidade de informação visual que me transpassa e me livra das preocupações pessoais, minha atenção mantem-se alerta, pois a cada corredor, a cada andar, surge de repente uma nova imagem de pura felicidade, que me atrai como um imã, luzes que me hipnotizam, sons que me embalam guiando sem que eu percebe meu próprio caminhar, e assim, sem noção de tempo, entro de loja em loja como quem visita um parque de diversões. Compro o que posso, o que meu dinheiro permiti, mas o curioso é que parece que desejo mais ainda o que não posso ter, e esses objetos de desejo, mesmo não os possuindo, perduram em mim quando me vou, e depois me fazem voltar, por isso sempre volto, pois algo parece sempre me faltar. Me sento em um banquinho da praça para conferir meus cupons de compra, sinto uma sensação de leveza, como se estivesse meio bêbado. Minha atenção e brutalmente quebrada por um grito de puro pavor, viro a cabeça e de relance, no canto do olho vejo um vulto que cai a poucos metros de mim. Mesmo sem saber o que estava acontecendo já sou tomado por sentimento de medo, mas ainda estou muito confuso. Percebo imediatamente um tumulto se formando na praça. Vejo expressões de medo nas pessoas alvoroçadas, algumas parecem fugir de algo que as enoja. Olho para o chão e vejo que um estranho liquido vermelho escuro escore em um filete até meu sapato. Me abaixo e toco levemente com o dedo o liquido, que é viscoso e quente. Me surpreendo, enojado quando percebo que é sangue. Me levanto rapidamente, o medo em meu interior só aumenta como uma balão inchando, preste a explodir. Sou logo contagiado pelo pavor das pessoas ao meu redor, ainda sem entender bem o porque. Aproximo-me de um grupo de seguranças que faz uma roda tentando afastar as pessoas, que por algum motivo se aproximavam curiosas para ver algo. Também curioso me aproximo, e o terror brota em meus olhos! Vejo estatelado no chão, envolto por uma enorme poça de sangue, um corpo humano desfigurado. Os membros entortados , uns sobre os outros como se fossem de um boneco de pano. A imobilidade total indicava a morte. Apavorado, e possuído por um sentimento ainda inominável frente a morte, sinto meus olhos se encherem de lágrimas, os joelhos começam a tremer incontroláveis, sobe-me pela espinha um frio glacial, e sinto o estomago revirar por dentro. Jogo as sacolas e cupons de compra no chão, esqueço-os, eles perderam completamente o valor. Toda a felicidade anestesiante esvaíram-se como poeira por meu poros. Seco, murcho! Reencontro-me comigo mesmo, e me vejo solitário frente ao inevitável incompreensível, sem amparo, sem destino. Das profundezas emerge a angústia primitiva. O medo em sólidos calcificados me paralisa. Mesmo querendo correr para longe, como muitos fizeram (pois a morte se anunciava feito doença), me mantive ali, e tudo ao meu redor se transformou em ruínas. Eu também irei...

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Cupins na cabeça


Todos os dias, ao regressar cansado do trabalho, desanimado e frustrado com sua vida sem graça, Clóvis toma algumas cervejas no boteco da esquina antes de se recolher a sua solidão e repousar em seu minusculo quarto, na pensão da dona Marlene. Uma velha estranha, mistura macabra entre beata e cafetina, pois apesar de seu fervoroso discurso religioso, e o quarto cheio de santos e crucifixos, ela não só aceita como alicia e explora as jovens prostitutas que alugam seus quartos. A velha sovina e já meio delirante, em nada se preocupa com o mínimo de preservação do casarão, que apesar de cheio, aparenta um estado de abandono e imundice. Clóvis evita ao máximo encontrar com a velha, seu olhar medonho lhe metia medo, por isso fica o maior tempo possível na rua, e quando chegava já tarde da noite, ai logo dormir. Quando enfim deitava a cabaça no travesseiro em busca da paz que só no sono se pode encontrar, Clóvis começava a ouvir não se sabe bem de onde, o som dos cupins, a roer a madeira velha e podre do casarão. Talvez nas paredes ou no piso, quem sabe no guarda roupas ou mesmo nas pernas da cama. O fato é que os cupins já não davam sossego ao sono de Clóvis. O som começa baixinho, somente um chiado. Mas ai aumentando gradativamente, como se os cupins se multiplicassem em milhões a cada segundo, e povoassem cada canto do quarto. A cada noite que passava, parecia piorar o ataque dos cupins, o som do roer da medeira se torna quase ensurdecedor, como se um batalhão marchasse dentro de seu quarto. Clóvis sentia que a casa ia cair em cima dele a qualquer instante, frente a devastação provocada pelos cupins que ouvia todas as noite, incansáveis. Mas ele não conseguia entender bem aquele estranho fenômeno, pois já procurara em todos os cantos do quarto as marcas que a fome dos cupins deveriam deixar na medeira, mas nada encontrara. Até fez o enorme esforço de encarar dona Marlene para pedir que dedetizasse a casa, mas essa ignorou-o completamente. A cada noite a fome dos pequenos monstrinhos ia só aumentando. Porém com o tempo, Clóvis até se acostumou com o som, que passou a embalar seu sono tal como um mantra (pois vantagem ou não, o ser humano é capaz de se acostumar as piores condições). O roer constante dos cupins ditava o ritmo que ia transportando Clóvis através de seus pensamentos e memórias, da vigília ao mundo onírico. Mas tudo começa a virar pesadelo quanto a sensação da existência dos cupins, que antes era apenas sonora, passa a ser física. Como se alguma força diabólica houvesse aumentado de tal forma a ferocidade desses insetos, que eles passaram a ter fome de carne, sangue e até de alma. Clóvis sente que além de roerem toda a madeira da casa e dos moveis, os cupins passaram a tacar-lhe o corpo. Começam subindo-lhe pelos pés, entrando por debaixo das unhas e furando-lhe a carne até os ossos, subindo-lhe por dentro das pernas, espalhando-se pelo interior de seus corpo, pelas veis, músculos e órgãos. Ele conseguia até mesmo visualizar a cena dos pequenos insetos esbranquiçados , aos milhos ocupando-lhe as entranhas, transbordando por seus orifícios, cravejados em sua carne putrefata como em uma goiaba podre. Dessa forma passou a acordar todas as manhãs, assustado,banho em suor frio e com terríveis embrulhos estomacais, as vezes até vomitava na cama. O som do roer dos cupins passou a acompanhá-lo em todos os lugares de sua vida cotidiana, na rua, no escritório, no ônibus. Ele já não sabia se aquilo era real ou fruto de sua imaginação. As vezes mal conseguia ouvir seus próprios pensamentos ou o que as outras pessoas lhe diziam, frente ao roer frenético dos cupins em sua cabeça. A ideia de um corpo devorado por dentro, murcho, vazio como um fantoche de pele, assombrava-o. Era uma ideia fixa, que perversamente o perseguia impedindo-lhe de se concentrar em qualquer outra coisa. Ele se tornará desatento, nervoso e constantemente angustiado. A imagem enauseante dos cupins consumindo-lhe a carne lhe provocava enjoos, e mal conseguia se alimentar depois de certo tempo. Em poucos meses Clóvis aparentava uma profunda apatia, a má alimentação lhe deixara muito magro, a insonia lhe mantinha sempre exausto, olheiras fundas, mais parecia um zumbi se arrastando por ai. O chefe da repartição já havia lhe chamado a atenção várias vezes, insistindo que Clóvis devia procurar um médico, pois já não estava rendendo o que se esperava dele.
Um conhecido do trabalho ao perceber o abatimento de Clóvis e seus estado um tanto quanto perturbado, aproximasse amigável no refeitório e pergunta:
- Você não parece nada bem meu amigo, o que tem te acontecido?
- Cupins! Esses malditos bichinhos tem me infernizado,você já teve problemas com cupins?
- Claro! Conheço um produto que é ótimo para matar cupins.
- Talvez seja essa a solução que me resta! (diz com um ar reflexivo e mórbido).

sábado, 16 de junho de 2012

O poeta

                                      (Pintura, de Flávio de Carvalho 1939)

O poeta tenebroso em manchas e borrões, em cores de escuridões. De pinceladas sonolentas, carregadas de tédio e rancor que escorrem densas feito sangue, turvas feito lágrimas, formando uma poça de lama e beleza. Na superfície rugosa da tela se destorce a imagem em angústia, que esconde mais do que diz, que pergunta mais do que pode afirmar. Os olhos do poeta, donde nasce a poesia, transborda a melancolia das horas que se esvaziam no tempo que já não quer mais passar, e por isso paira em eternidade por sobre a galeria da solidão. Da minha solidão, da solidão do poeta, do pintor, do espectador incógnito de tudo isso... Em seu rosto carcomido, azulado de velhice, vivem as marcas do sofrido, do lembrado e do esquecido. A esperança já morreu, mas a vida primitiva se manteve. Ele pensa o impensável e busca na palavra o incompreensível do mundo, mas se perde em devaneios e já não sabe como regressar ao banal da vida orgânica, por isso mergulha abandonado nas águas inconscientes da poesia ainda por fazer, sempre por fazer... Na mão, que repousa cansada, segura cambaleante o copo de conhaque, que tenta esquentar a alma fria e animar o corpo decadente. Bebe poeta, mantem-se embragado, de álcool e de poesia, que a vida é um gole que desce ardendo, uma página amaçada de versos dissonantes, e la fora a noite espera impreterivelmente tua volta ao começo.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Discurso 25


Quando nascemos o mundo também nasce para nós. Porque o mundo, enquanto fenômeno de imagem luz, só se faz quando existem olhos que se abrem para vê-lo, como um ecrã onde a imagem se projeta e é projetada. Pois na invisibilidade só o que existe é o silêncio latente da vontade prenha. É no primeiro ou no último olhar que as coisas se apresentam em sua virgindade primitiva e fenomenológica, nuas de compreensão, totalmente despidas de sentido, vazias de valor, ignorantes de objetivo e finalidade, simplesmente existente. O primeiro ato para uma vida plena (que se autoafirma até em seus aspectos mais tenebrosos), é a aceitação incondicional da liberdade extrema da existência , sua gratuidade despreocupada, indiferente e criadora.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Discurso 5


O olhar é um meio entre meios, um instrumento entre instrumentos, uma linguagem entre linguagens. Todo olhar, assim como toda palavra que nasce de um olhar, é uma forma de mediação entre a verdade interna e a externa do Ser que se reencontra no olhar, entre o micro e o macro universo. Todo olhar se faz através de... O próprio olhar faz parte do ato de atravessar algo, traspor, transgredir, transcender, além das fronteiras e fantasmas, do horizonte do visível ao amago da invisibilidade. Por dentre os olhos vemos o mundo tanto quanto o mundo nos vê, a assim compomos a dupla função mistica do olhar, a de revelar o Ser nas coisas e as Coisas no ser. Como um espelho de duas faces, em si mesmo vazio e infinito, mas repleto de reflexos de sombras eternas e imemoriais, resíduos vivos da Coisa-em-Si. O olhar que reflete e que refrata, que faz curva, que mergulha, que se subdivide em mil cacos e fragmentos de memória. Que guia e constrói o por vir, no mesmo ritmo que analisa e refaz o experimentado.

domingo, 3 de junho de 2012

Imagem de mulher

                                                 (Azul- pintura sobre pano)


Dos delírios de solidão, de dentro da noite imóvel e intransponível, me surge onírica a face de mulher! As múltiplas cores abstratas de humores corporais, formam esse ser feminino de puro paradoxo apaixonante, como um o reflexo cambiante de um espelho d' água que se desfaz ao menor toque. Amorosamente indiferente, friamente sensual, que esconde no rosto de lado, meigo e blasé, um latente amor carnal. Que mistério guarda essa mulher que desconheço? Que parte incógnita de mim mesmo só nela se revela? Um amor imemorial, perdido no passado ou esperando distante no por vir... Quantas vezes por mim ela passou? No bar, na mesa ao lado, no metro descendo na estação anterior, perdida no meio da multidão. Deixando apenas uma silhueta esguia e malemolente gravada em minhas retinas desejantes. De que fantasia erótica ela saiu? De dentro da memoria inventiva ou da lembrança da pela e da saliva? De faces mil, entre fraguentos cubistas e cores expressionista de um filme francês preto e branco. Me invoca e me proibi, me beija e me afastas, ama-me tanto quanto me despreza, é parte de mim e minha ausência. Mãe que da a vida, e viúva negra que fecha o caixão.