Todos os dias, ao regressar cansado do trabalho, desanimado e
frustrado com sua vida sem graça, Clóvis toma algumas cervejas no
boteco da esquina antes de se recolher a sua solidão e repousar em
seu minusculo quarto, na pensão da dona Marlene. Uma velha estranha,
mistura macabra entre beata e cafetina, pois apesar de seu fervoroso
discurso religioso, e o quarto cheio de santos e crucifixos, ela não
só aceita como alicia e explora as jovens prostitutas que alugam
seus quartos. A velha sovina e já meio delirante, em nada se
preocupa com o mínimo de preservação do casarão, que apesar de
cheio, aparenta um estado de abandono e imundice. Clóvis evita ao
máximo encontrar com a velha, seu olhar medonho lhe metia medo, por
isso fica o maior tempo possível na rua, e quando chegava já tarde da
noite, ai logo dormir. Quando enfim deitava a cabaça no travesseiro
em busca da paz que só no sono se pode encontrar, Clóvis começava a
ouvir não se sabe bem de onde, o som dos cupins, a roer a madeira
velha e podre do casarão. Talvez nas paredes ou no piso, quem sabe
no guarda roupas ou mesmo nas pernas da cama. O fato é que os cupins
já não davam sossego ao sono de Clóvis. O som começa baixinho,
somente um chiado. Mas ai aumentando gradativamente, como se os
cupins se multiplicassem em milhões a cada segundo, e povoassem cada
canto do quarto. A cada noite que passava, parecia piorar o ataque
dos cupins, o som do roer da medeira se torna quase ensurdecedor,
como se um batalhão marchasse dentro de seu quarto. Clóvis sentia
que a casa ia cair em cima dele a qualquer instante, frente a
devastação provocada pelos cupins que ouvia todas as noite,
incansáveis. Mas ele não conseguia entender bem aquele estranho
fenômeno, pois já procurara em todos os cantos do quarto as marcas
que a fome dos cupins deveriam deixar na medeira, mas nada
encontrara. Até fez o enorme esforço de encarar dona Marlene para
pedir que dedetizasse a casa, mas essa ignorou-o completamente. A
cada noite a fome dos pequenos monstrinhos ia só aumentando. Porém
com o tempo, Clóvis até se acostumou com o som, que passou a embalar
seu sono tal como um mantra (pois vantagem ou não, o ser humano é
capaz de se acostumar as piores condições). O roer constante dos
cupins ditava o ritmo que ia transportando Clóvis através de seus
pensamentos e memórias, da vigília ao mundo onírico. Mas tudo
começa a virar pesadelo quanto a sensação da existência dos
cupins, que antes era apenas sonora, passa a ser física. Como se
alguma força diabólica houvesse aumentado de tal forma a ferocidade
desses insetos, que eles passaram a ter fome de carne, sangue e até de alma. Clóvis sente que além de roerem toda a madeira da casa e dos
moveis, os cupins passaram a tacar-lhe o corpo. Começam subindo-lhe
pelos pés, entrando por debaixo das unhas e furando-lhe a carne até
os ossos, subindo-lhe por dentro das pernas, espalhando-se pelo
interior de seus corpo, pelas veis, músculos e órgãos. Ele
conseguia até mesmo visualizar a cena dos pequenos insetos
esbranquiçados , aos milhos ocupando-lhe as entranhas, transbordando
por seus orifícios, cravejados em sua carne putrefata como em uma
goiaba podre. Dessa forma passou a acordar todas as manhãs,
assustado,banho em suor frio e com terríveis embrulhos estomacais,
as vezes até vomitava na cama. O som do roer dos cupins passou a
acompanhá-lo em todos os lugares de sua vida cotidiana, na rua, no
escritório, no ônibus. Ele já não sabia se aquilo era real ou
fruto de sua imaginação. As vezes mal conseguia ouvir seus próprios
pensamentos ou o que as outras pessoas lhe diziam, frente ao roer
frenético dos cupins em sua cabeça. A ideia de um corpo devorado
por dentro, murcho, vazio como um fantoche de pele, assombrava-o. Era uma ideia fixa, que perversamente o perseguia
impedindo-lhe de se concentrar em qualquer outra coisa. Ele se
tornará desatento, nervoso e constantemente angustiado. A imagem
enauseante dos cupins consumindo-lhe a carne lhe provocava enjoos, e
mal conseguia se alimentar depois de certo tempo. Em poucos meses
Clóvis aparentava uma profunda apatia, a má alimentação lhe
deixara muito magro, a insonia lhe mantinha sempre exausto, olheiras
fundas, mais parecia um zumbi se arrastando por ai. O chefe da
repartição já havia lhe chamado a atenção várias vezes,
insistindo que Clóvis devia procurar um médico, pois já não
estava rendendo o que se esperava dele.
Um conhecido do trabalho ao perceber o abatimento de Clóvis e seus
estado um tanto quanto perturbado, aproximasse amigável
no refeitório e pergunta:
- Você não parece nada bem meu amigo, o que tem te acontecido?
- Cupins! Esses malditos bichinhos tem me infernizado,você já teve
problemas com cupins?
- Claro! Conheço um produto que é ótimo para matar cupins.
- Talvez seja essa a solução que me resta! (diz com um ar reflexivo
e mórbido).