domingo, 30 de dezembro de 2012

Discurso 100

O mais importante em um ano que se vai, não é o novo que inevitavelmente virá, mesmo que disfarçado, por vezes, de antigo. Pois o futuro é uma virtualidade que a imaginação pode até arquitetar, mas é o acaso quem constrói. É o morto que tem de ser celebrado para podermos exorcizar tudo que é perda e concluir a passagem. O que deixa de ser para poder voltar a ser. E no luto dos que sobreviveram, erguer um brinde ao esquecimento, regenerador da consciência. Que devora toda culpa e todo arrependimento, vislumbrando um amanhã, desejado mesmo em seu gosto amargo de incerteza.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Discurso 94

O desejo é principio de falta ou impossibilidade de saciação, posto seu sentido profundo de busca infinita. Ele é o que tarda a regressar e o que nunca cumpri seu destino. Enquanto ausência está ligado a lembrança do imemorial, ao arcaico e metafísico, provindo das origens impenetráveis do Ser, fazendo-se somente no momento infinitesimal do agora que busca no passado a repetição que se faz mesmo na diferença. Invocando assim o prazer que é silencio e imobilidade junto ao eterno. Sempre de novo e sempre constante. Mas o oposto da ausência também arde e clama no ser! Quando volúpia, o desejo se faz no excesso, é um transbordar-se impetuoso e desbravante voltado para o por-vir. O sagrado esquecimento que permite a novidade no antigo. Constituído por um deleite perturbador de voracidade indefinida. Em nem uma de suas manifestações o desejo pode ser satisfeito, pois nada há nele de necessidade, instinto primitivo do homem-bicho. Há apenas imaginação, criação do impossível e substituição precária deste. Matriz cíclica de movimento imóvel. O prazer é um de seus fenômenos, mas não seu objetivo, já que ele sempre volta-se para si, carregando concomitantemente conquistas e fracassos numa mesma ânsia sem nome. Incógnita que se esconde ao revelar-se num jogo sem fim de bonecas russas, uma a guardar a outra, mais fundo, mais dentro, mais longe...

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Discurso 141

Perdi a noção de tempo como percurso, nas lacunas da memória inconclusa, nos fragmentos das narrativas rabiscadas. E as horas se desdobraram em desertos de horizonte espelhado, onde todo passo regressa a si mesmo. E por isso tudo em mim é distância, e toda distância é terra, que o vento leva ao léu.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Discurso 66

Quero celebrar a vida como quem compactua com a  morte. E mesmo frente ao inominável proclamar o terrível Sim sagrado! E toda carne que clama viverá seu transbordamento e o mistério se fará presente,todo em um único lapso de tempo, todo agora, e para sempre e nunca...

sábado, 3 de novembro de 2012

Discurso 90

Minha poesia é o avesso de minha alma. O reverberar inverso de tudo que me transpassou, me habitou e me deixou, me feriu e me afagou. Tudo quanto eu não posso mais calar. E o silêncio vira cântico e lamento. E o que antes era carne, sangue e angústia se dilacera em palavra, que vai para além de minha boca, se estendendo para fora de mim, me dizendo mais do que eu poderia dizer. Se tornando estanha, se tornando o Outro.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Se quem espera nunca alcança,
me parece a esperança um jeito tolo de esperar.
Quem muito espera se esquece que o AGORA
tem muito tempo para dar.
Guardando em si o antes o depois e o já.
Espero que a esperança morra de esperar,
e revele em sua trágica morte o eterno desejar.
Pois se a esperança parte da ausência
que busca se completar,
o desejo trasborda de tanto desejar.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

(sem)Fim

O que assombra nas coisas é a predileção inata ao fim.
Tanto que as vezes posso sentir o cheiro mórbido de cada (re)começo...
A morte que nos espreita  é a vida  em contingência.
Como se cada instante fosse um beijo de amor e adeus.
Assim encontro no mundo uma beleza triste,
feita de crepúsculo e solidão.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Da construção do conforto e as ingratidões da liberdade


Era sem dúvida o móvel mais antigo da casa. Uma dessas heranças que se esquece a origem, que vai ficando e se torna mesmo parte indissociável do espaço, como se formasse a meteria bruta que constroem a própria sensação superficial do cotidiano. Por muito tempo foi apenas função, e fornecia aos usuários todo o conforto que lhe cabia, com tanta pericia que parecia natural e certa, nunca posta em questão. Na solidez de sua madeira e em seus garranchos barrocos havia também uma carga de vida subjetiva, tanto do homem que a fez quando dos que a utilizaram, se levarmos em conta a força simbólica da memória impregnada ao objeto, suas histórias contadas e silenciadas. Mas como nada pode resistir ao tempo que se faz sentir na matéria, uma de suas pernas envergara, não chegando a rachar, mas com alguns pregos velhos já frouxos, causava um fenômeno peculiar. Toda vez que alguém nela se sentava com muito impeto, a cadeira sedia um pouco para o lado, causando a rápida sensação da queda, em  uma leve dose medo, como uma picada de agulha, que ameaça, mas não chega a prejudicar. No inicio isso causava desconforto como traços de raiva. O susto, mesmo quase insignificante, trazia sempre a sensação de desamparo e tirava toda a paciência necessária. Ele esbravejava, falava palavrões em voz alta, se indignava com a falha do móvel, com sua própria falha! Repetia com sigo mesmo que tinha que dar um jeito naquilo. Mas se uns dos principais efeitos da ação do tempo e a degradação, por outro lado ele também cria uma certa malicia, que logo torna-se conhecimento e gera uma certa acomodação a partir do costume, que podesse mesmo chamar conforto, almejado e anestesiante. Adiando na corredia dos dias o concerto da cadeira, ele logo aprenderá nesse exercício de procrastinação a dominar o fenômeno ilusório de queda. Dessa forma, sentando-se com jeitinho, apoiando o peso do lado certo, em um determinado ângulo do quadril e das pernas, voltou a usufruir do histórico conforto que a velha cadeira proporcionava. E isso de certa forma parecia só contribuir com o valor nela agregado.
Ficava constrangido quando alguma visita em sua casa sentava-se desavisada na cadeira e tomava um susto, seguido de risadas. E todos questionavam o porque de não comprar outra cadeira ou concertar aquela. Ele não sabia bem responder, mas passou a avisar os amigos que naquela cadeira temperamental somente ele sabia como se sentar. A cadeira tinha um segredo, assim como todos temos. A convivencia elevara o mero objeto para além de sua serie de produção, tornando-o único pela relação. Um dia, quando tudo parecia normal, em um impulso impensado, em um desejo contraditório de modificação e liberdade sem destino certo, ele apanhara um martelo e alguns pregos, e agregando uma pequena tabua a perna da cadeira, acabará de vez com o seu cambalear. Com uma estranha sensação de conquista ele sentou-se nela sem preocupação, esparramado-se em seus braços, e aliviado, acendera um cigarro em frente a janela da sala, onde passou horas em meditação... Uma semana depois decide-se finalmente partir, muda-se e começa vida nova.

sábado, 25 de agosto de 2012

Discurso 22

De que matéria são feitas as possibilidades perdidas?Quantas vozes devo calar, quantas vidas devo negar para poder dizer quem sou? Se tudo que podemos ter do Tempo além das lembranças insólitas do passado e os ideias ilusórios do futuro, é o concreto AGORA em sua insustentável carga de liberdade e medo. O problema da escolha se desloca do julgamento pragmático de valores aos mistérios do Desejo e o sutil equilíbrio que provoca o nascimento do Gesto, pois tudo que é potência de vida, inevitavelmente é aceitação de morte.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Na rua do alheamento

Recito meus pensamentos em uma língua morta e sigo repetindo como um mantra pelas ruas a dentro, como uma música interior que ressoa silenciosa pela solidão monumental da cidade branca. Avanço descompassado cortando o espaço geometrizado. Em um movimento inerte cruzo por entre blocos de concreto e vidro, e as cortinas verdes dos jardins de decadência. Vejo passar por mim sombras, projeções cinematográficas do que sei, que revelam em suas imagens turvas o que não sei, e talvez, não se possa saber, se não por um único segundo antes do esquecimento. Caminho em suspenso, desvio de mim, já não consigo me alcançar. E subo, pairando, distante, distante... onde tudo parece pequeno, delicado, prestes a desaparecer. Nuvens, sonhos...

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Ponderando

Não há planos para se seguir.
O melhor que farás será por acaso.
E nas contas da memória mais distante...
tuas perdas e teus ganhos serão apenas cinzas
na balança do tempo.

domingo, 22 de julho de 2012

Mudo amor


O encontro inesperado causou surpresa e espanto, mesmo disfarçado por de trás de um ar cotidiano de banalidade. Eles se cruzaram na saída de um prédio comercial no centro da cidade em meio aos transeuntes indiferentes. Ambos de cabeça baixa, imersos em suas particularidades quase não viram um ao outro, e se viram, não foi por atenção, mas por intuição. Em um leve movimento do olhar, em um único instante efêmero de casualidade do destino, se encararam, assim meio de lado, no ato continuo da passagem, como algo que se lembra e se esquece. A cena foi um tanto constrangedora, cumprimentaram-se friamente, trocando sorrisos tímidos e dissimulados, e continuaram seus caminhos opostos em busca da mesma coisa, mas não sem antes vacilar, cheios de dúvidas e temor. Já distantes, separados pelo abismo das escolhas; ela parou na esquina sem se virar, e esperou alguns minutos pelo improvável, antes de partir definitivamente. Ele diminuiu o passo e se virou, buscando inutilmente a imagem dela na multidão. Faltou coragem, sussurra uma voz...
Esse amor que é silêncio e sombra, sempre presente e passageiro, tal como um déjà vu. De tão delicado, beira a não existência, constituído de restos de memória, desejos imperfeitos, poemas antigos e filmes em preto e branco, de paisagens marítimas vastas e vazias de um norte qualquer. Idealizado na ausência há flertar paradoxalmente com a solidão.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Orgulho

O único orgulho que carrego nessa vida é o de ter tentado e falhado. Insistido! sem motivos aparentes. E falhado novamente. E só então, enfim, livre de esperança, de peito aberto para o imponderável; tentado mais uma vez, só para louvar a derrota gloriosa que marca a beleza imperfeita de minha raça.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Dicurso 11


Foi assim, de repente, num piscar de olhos, onde me falha a memória, em um instante sem tempo. Que vi, de relance, como quando viramos a cabeça muito rápido, e sobra no canto do olho uma imagem muito abstrata, como uma rastro ou uma pegada, bem na fronteira entre o percebido e o anunciado. Um fantasma! Ainda sem corpo ou palavra, mas presente, latente. Vejo a sombra da Morte, que se esconde silenciosa por de trás de todas as coisas (ou a Vida que aguarda na contingência). Sinto um medo que corta o pensamento, que inutiliza o gesto e cala a voz. E tudo ao meu redor torna-se cinzas. E a casca do mundo se revela frágil como um espelho. E desde então, caminho cauteloso e taciturno, como quem anda por sobre cacos. E ouso a cada passo, o solo se rachar lentamente por sobre meu pés vacilantes. Esse som de Angústia ecoa pelo vazio infinito de dentro de mim... Agora, tudo que espero, mesmo na desesperança, é tecer meu Véu de Maya, belo e brilhante, como o ouro falso dos tolos e dos loucos, repleto de múltiplas formas geométricas dançantes como um arabesco colorido. Para cobrir meu altar de papelão feito relíquia, e adorar meu falso ídolo de dupla face, brindando a vida com um cálice de ossos.

domingo, 24 de junho de 2012

As ilusões da felicidade nas ruínas do inevitável



Era um belo dia de fim de semana, não me lembro bem da hora, mas também pouco importa, pois lá dentro as luzes fazem o papel de um sol que nunca se põe, por isso é sempre manhã ensolarada. As pessoas caminham felizes pelos corredores, com as mãos sempre ocupadas de pacotes e sacolas de presentes, como se fosse sempre véspera de natal ou um eterno dia de aniversário. Nos cruzamentos dos corredores, simulações de praças com banquinhos, fontes e jardins, com plantas de plástico, mais verdes que o verde, pois nunca mudam de cor, mais vivas que a vida, posto que são insensíveis a morte. Nesse pseudo urbanismo tudo foi artificialmente melhorado, ou camuflado, não há espaço para sujeira ou depredação, excluiu-se tudo de detestável que ocupa a cidade real e triste lá fora, não há mendigos ou pombos imundos compondo o ambiente, tudo é muito asséptico como um hospital particular e forçadamente confortável. Ali todo o esforço tende a ser minimizado para a melhor apreciação e acesso aos produtos, amplos estacionamentos subterrâneos, metros e metros de escadas rolantes, elevadores de vidro com uma bela vista panorâmica para as enormes estruturas internas como as de um labirinto. A paisagem é exuberante, painéis de alta tecnologia cobrem quase todas as paredes trazendo aos olhos as mais incríveis imagens do mundo,em luz e som, como um sonho hollywoodiano, pessoas bonitas e saudáveis esbanjando felicidade e riqueza sem peso de consciência, dúvida ou temor. A vida virtual e as verdades virtuais. Não há espaço para infelicidade quando tudo que se precisa esta as mãos por preços razoáveis, com descontos no cartão em até trezentas mil vezes. A infinitude das vitrines, como um portal, anunciam a possibilidade de um mundo melhor, ou pelo menos mais belo. Roupas coloridas da última moda em Paris, aparelhos eletrônicos japoneses que prometem fazer de tudo um pouco para servir indiscriminadamente a seus mestres como escravos perfeitos. Sanduíches e doces a se oferecer promíscuos e obesos, tão suculentos, inflando a fome insaciável dos olhos. São todos, na verdade, os arautos que nos convidão a conhecer o interior das lojas templos para buscarmos neles a completude que nos falta, o tesouro perdido. Além disso o vidro das vitrines tem ma espécie de efeito mágico sobre mim, ele permite ver através dele ao mesmo tempo que projeta meu reflexo no interior da loja. Deslocamento! E como se eu já tivesse lá! Quando olho uma roupa, por exemplo, não vejo só a roupa no manequim, vejo a roupa em mim, e por um instante eu já estou vestindo aquilo que desejo, como se aquilo tivesse sido feito exatamente para mim, e por isso já me pertencesse por direito, quando volto a mim desse sonho acordado, sinto meu desejo cão feroz, e um vazio infindo em meu peito, como se parte de mim tivesse sido capturada. Caminho sem rumo, extasiado pela enorme quantidade de informação visual que me transpassa e me livra das preocupações pessoais, minha atenção mantem-se alerta, pois a cada corredor, a cada andar, surge de repente uma nova imagem de pura felicidade, que me atrai como um imã, luzes que me hipnotizam, sons que me embalam guiando sem que eu percebe meu próprio caminhar, e assim, sem noção de tempo, entro de loja em loja como quem visita um parque de diversões. Compro o que posso, o que meu dinheiro permiti, mas o curioso é que parece que desejo mais ainda o que não posso ter, e esses objetos de desejo, mesmo não os possuindo, perduram em mim quando me vou, e depois me fazem voltar, por isso sempre volto, pois algo parece sempre me faltar. Me sento em um banquinho da praça para conferir meus cupons de compra, sinto uma sensação de leveza, como se estivesse meio bêbado. Minha atenção e brutalmente quebrada por um grito de puro pavor, viro a cabeça e de relance, no canto do olho vejo um vulto que cai a poucos metros de mim. Mesmo sem saber o que estava acontecendo já sou tomado por sentimento de medo, mas ainda estou muito confuso. Percebo imediatamente um tumulto se formando na praça. Vejo expressões de medo nas pessoas alvoroçadas, algumas parecem fugir de algo que as enoja. Olho para o chão e vejo que um estranho liquido vermelho escuro escore em um filete até meu sapato. Me abaixo e toco levemente com o dedo o liquido, que é viscoso e quente. Me surpreendo, enojado quando percebo que é sangue. Me levanto rapidamente, o medo em meu interior só aumenta como uma balão inchando, preste a explodir. Sou logo contagiado pelo pavor das pessoas ao meu redor, ainda sem entender bem o porque. Aproximo-me de um grupo de seguranças que faz uma roda tentando afastar as pessoas, que por algum motivo se aproximavam curiosas para ver algo. Também curioso me aproximo, e o terror brota em meus olhos! Vejo estatelado no chão, envolto por uma enorme poça de sangue, um corpo humano desfigurado. Os membros entortados , uns sobre os outros como se fossem de um boneco de pano. A imobilidade total indicava a morte. Apavorado, e possuído por um sentimento ainda inominável frente a morte, sinto meus olhos se encherem de lágrimas, os joelhos começam a tremer incontroláveis, sobe-me pela espinha um frio glacial, e sinto o estomago revirar por dentro. Jogo as sacolas e cupons de compra no chão, esqueço-os, eles perderam completamente o valor. Toda a felicidade anestesiante esvaíram-se como poeira por meu poros. Seco, murcho! Reencontro-me comigo mesmo, e me vejo solitário frente ao inevitável incompreensível, sem amparo, sem destino. Das profundezas emerge a angústia primitiva. O medo em sólidos calcificados me paralisa. Mesmo querendo correr para longe, como muitos fizeram (pois a morte se anunciava feito doença), me mantive ali, e tudo ao meu redor se transformou em ruínas. Eu também irei...

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Cupins na cabeça


Todos os dias, ao regressar cansado do trabalho, desanimado e frustrado com sua vida sem graça, Clóvis toma algumas cervejas no boteco da esquina antes de se recolher a sua solidão e repousar em seu minusculo quarto, na pensão da dona Marlene. Uma velha estranha, mistura macabra entre beata e cafetina, pois apesar de seu fervoroso discurso religioso, e o quarto cheio de santos e crucifixos, ela não só aceita como alicia e explora as jovens prostitutas que alugam seus quartos. A velha sovina e já meio delirante, em nada se preocupa com o mínimo de preservação do casarão, que apesar de cheio, aparenta um estado de abandono e imundice. Clóvis evita ao máximo encontrar com a velha, seu olhar medonho lhe metia medo, por isso fica o maior tempo possível na rua, e quando chegava já tarde da noite, ai logo dormir. Quando enfim deitava a cabaça no travesseiro em busca da paz que só no sono se pode encontrar, Clóvis começava a ouvir não se sabe bem de onde, o som dos cupins, a roer a madeira velha e podre do casarão. Talvez nas paredes ou no piso, quem sabe no guarda roupas ou mesmo nas pernas da cama. O fato é que os cupins já não davam sossego ao sono de Clóvis. O som começa baixinho, somente um chiado. Mas ai aumentando gradativamente, como se os cupins se multiplicassem em milhões a cada segundo, e povoassem cada canto do quarto. A cada noite que passava, parecia piorar o ataque dos cupins, o som do roer da medeira se torna quase ensurdecedor, como se um batalhão marchasse dentro de seu quarto. Clóvis sentia que a casa ia cair em cima dele a qualquer instante, frente a devastação provocada pelos cupins que ouvia todas as noite, incansáveis. Mas ele não conseguia entender bem aquele estranho fenômeno, pois já procurara em todos os cantos do quarto as marcas que a fome dos cupins deveriam deixar na medeira, mas nada encontrara. Até fez o enorme esforço de encarar dona Marlene para pedir que dedetizasse a casa, mas essa ignorou-o completamente. A cada noite a fome dos pequenos monstrinhos ia só aumentando. Porém com o tempo, Clóvis até se acostumou com o som, que passou a embalar seu sono tal como um mantra (pois vantagem ou não, o ser humano é capaz de se acostumar as piores condições). O roer constante dos cupins ditava o ritmo que ia transportando Clóvis através de seus pensamentos e memórias, da vigília ao mundo onírico. Mas tudo começa a virar pesadelo quanto a sensação da existência dos cupins, que antes era apenas sonora, passa a ser física. Como se alguma força diabólica houvesse aumentado de tal forma a ferocidade desses insetos, que eles passaram a ter fome de carne, sangue e até de alma. Clóvis sente que além de roerem toda a madeira da casa e dos moveis, os cupins passaram a tacar-lhe o corpo. Começam subindo-lhe pelos pés, entrando por debaixo das unhas e furando-lhe a carne até os ossos, subindo-lhe por dentro das pernas, espalhando-se pelo interior de seus corpo, pelas veis, músculos e órgãos. Ele conseguia até mesmo visualizar a cena dos pequenos insetos esbranquiçados , aos milhos ocupando-lhe as entranhas, transbordando por seus orifícios, cravejados em sua carne putrefata como em uma goiaba podre. Dessa forma passou a acordar todas as manhãs, assustado,banho em suor frio e com terríveis embrulhos estomacais, as vezes até vomitava na cama. O som do roer dos cupins passou a acompanhá-lo em todos os lugares de sua vida cotidiana, na rua, no escritório, no ônibus. Ele já não sabia se aquilo era real ou fruto de sua imaginação. As vezes mal conseguia ouvir seus próprios pensamentos ou o que as outras pessoas lhe diziam, frente ao roer frenético dos cupins em sua cabeça. A ideia de um corpo devorado por dentro, murcho, vazio como um fantoche de pele, assombrava-o. Era uma ideia fixa, que perversamente o perseguia impedindo-lhe de se concentrar em qualquer outra coisa. Ele se tornará desatento, nervoso e constantemente angustiado. A imagem enauseante dos cupins consumindo-lhe a carne lhe provocava enjoos, e mal conseguia se alimentar depois de certo tempo. Em poucos meses Clóvis aparentava uma profunda apatia, a má alimentação lhe deixara muito magro, a insonia lhe mantinha sempre exausto, olheiras fundas, mais parecia um zumbi se arrastando por ai. O chefe da repartição já havia lhe chamado a atenção várias vezes, insistindo que Clóvis devia procurar um médico, pois já não estava rendendo o que se esperava dele.
Um conhecido do trabalho ao perceber o abatimento de Clóvis e seus estado um tanto quanto perturbado, aproximasse amigável no refeitório e pergunta:
- Você não parece nada bem meu amigo, o que tem te acontecido?
- Cupins! Esses malditos bichinhos tem me infernizado,você já teve problemas com cupins?
- Claro! Conheço um produto que é ótimo para matar cupins.
- Talvez seja essa a solução que me resta! (diz com um ar reflexivo e mórbido).

sábado, 16 de junho de 2012

O poeta

                                      (Pintura, de Flávio de Carvalho 1939)

O poeta tenebroso em manchas e borrões, em cores de escuridões. De pinceladas sonolentas, carregadas de tédio e rancor que escorrem densas feito sangue, turvas feito lágrimas, formando uma poça de lama e beleza. Na superfície rugosa da tela se destorce a imagem em angústia, que esconde mais do que diz, que pergunta mais do que pode afirmar. Os olhos do poeta, donde nasce a poesia, transborda a melancolia das horas que se esvaziam no tempo que já não quer mais passar, e por isso paira em eternidade por sobre a galeria da solidão. Da minha solidão, da solidão do poeta, do pintor, do espectador incógnito de tudo isso... Em seu rosto carcomido, azulado de velhice, vivem as marcas do sofrido, do lembrado e do esquecido. A esperança já morreu, mas a vida primitiva se manteve. Ele pensa o impensável e busca na palavra o incompreensível do mundo, mas se perde em devaneios e já não sabe como regressar ao banal da vida orgânica, por isso mergulha abandonado nas águas inconscientes da poesia ainda por fazer, sempre por fazer... Na mão, que repousa cansada, segura cambaleante o copo de conhaque, que tenta esquentar a alma fria e animar o corpo decadente. Bebe poeta, mantem-se embragado, de álcool e de poesia, que a vida é um gole que desce ardendo, uma página amaçada de versos dissonantes, e la fora a noite espera impreterivelmente tua volta ao começo.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Discurso 25


Quando nascemos o mundo também nasce para nós. Porque o mundo, enquanto fenômeno de imagem luz, só se faz quando existem olhos que se abrem para vê-lo, como um ecrã onde a imagem se projeta e é projetada. Pois na invisibilidade só o que existe é o silêncio latente da vontade prenha. É no primeiro ou no último olhar que as coisas se apresentam em sua virgindade primitiva e fenomenológica, nuas de compreensão, totalmente despidas de sentido, vazias de valor, ignorantes de objetivo e finalidade, simplesmente existente. O primeiro ato para uma vida plena (que se autoafirma até em seus aspectos mais tenebrosos), é a aceitação incondicional da liberdade extrema da existência , sua gratuidade despreocupada, indiferente e criadora.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Discurso 5


O olhar é um meio entre meios, um instrumento entre instrumentos, uma linguagem entre linguagens. Todo olhar, assim como toda palavra que nasce de um olhar, é uma forma de mediação entre a verdade interna e a externa do Ser que se reencontra no olhar, entre o micro e o macro universo. Todo olhar se faz através de... O próprio olhar faz parte do ato de atravessar algo, traspor, transgredir, transcender, além das fronteiras e fantasmas, do horizonte do visível ao amago da invisibilidade. Por dentre os olhos vemos o mundo tanto quanto o mundo nos vê, a assim compomos a dupla função mistica do olhar, a de revelar o Ser nas coisas e as Coisas no ser. Como um espelho de duas faces, em si mesmo vazio e infinito, mas repleto de reflexos de sombras eternas e imemoriais, resíduos vivos da Coisa-em-Si. O olhar que reflete e que refrata, que faz curva, que mergulha, que se subdivide em mil cacos e fragmentos de memória. Que guia e constrói o por vir, no mesmo ritmo que analisa e refaz o experimentado.

domingo, 3 de junho de 2012

Imagem de mulher

                                                 (Azul- pintura sobre pano)


Dos delírios de solidão, de dentro da noite imóvel e intransponível, me surge onírica a face de mulher! As múltiplas cores abstratas de humores corporais, formam esse ser feminino de puro paradoxo apaixonante, como um o reflexo cambiante de um espelho d' água que se desfaz ao menor toque. Amorosamente indiferente, friamente sensual, que esconde no rosto de lado, meigo e blasé, um latente amor carnal. Que mistério guarda essa mulher que desconheço? Que parte incógnita de mim mesmo só nela se revela? Um amor imemorial, perdido no passado ou esperando distante no por vir... Quantas vezes por mim ela passou? No bar, na mesa ao lado, no metro descendo na estação anterior, perdida no meio da multidão. Deixando apenas uma silhueta esguia e malemolente gravada em minhas retinas desejantes. De que fantasia erótica ela saiu? De dentro da memoria inventiva ou da lembrança da pela e da saliva? De faces mil, entre fraguentos cubistas e cores expressionista de um filme francês preto e branco. Me invoca e me proibi, me beija e me afastas, ama-me tanto quanto me despreza, é parte de mim e minha ausência. Mãe que da a vida, e viúva negra que fecha o caixão.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

O Duplo


Todos vivemos uma dupla existência.
Na ambivalência do Ser, que confunde em si,
Fome e Amor.
Em uma composição bio-ontologica que contrasta,
Liberdade e Necessidade.
Entre um coração que bate sem saber porque,
E uma alma que se inventa no ato de conhecer.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Discurso 2



                              (Narciso, por Caravaggio)

Busco na imperfeição da memória meu Eu original, aquele que era antes mesmo de eu ser, aquele que tudo podia em sua onipotência inconsciente, autossuficiente, autoerótico, deus em si mesmo! Mas onde ele está? Onde o perdi para sempre, em que momento o abandonei atraiçoando a mim mesmo e condenando-me como Édipo, por minhas próprias forças, a desventura? No auge de minha exuberância parti de minhas terras rumo ao desconhecido do Outro, o amor me convocou na imagem de mulher. Mas nada encontrei se não decepção, abandono e desprezo. Ao regressar a mim, já não me encontrei, minha casa vazia nada mais guardava de meu antigo reino, agora em ruínas. Torno-me assim, peregrino sem rumo, exilado de mim na solidão incomunicável dos homens, na melancolia das horas que me seguem, buscando inconformado o que nunca mais serei. Mirando ao longe a sombra do objeto perdido que recai sobre mim tenebrosa. Agora tomado apenas como resquício idealizado e inalcançável as minhas mãos de mendigo, eternamente faminto. Aprisionado a minha imagem no espelho, ao reflexo da ausência de um outro, ao amor de mim por mim, que me volta feito veneno, feito ódio que me dissipa por dentro, fragmentando-me em Eus sádicos e masoquistas, que se deleitam em uma orgia perversa.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Discurso 1


Desvio de pulsão libidinosa para o exercício sublimador da dor. A especulação interpretativa, a produção de sentidos tidos como palavra ditas e ouvidas. Que mesmo ilusórias e parciais, como metades, como fragmentos da Coisa-em-Si e em Nós, parece relevar aspectos misteriosos da existência supra racional. Mirar o Caos, vivido, furioso, obscuro ao nosso redor, e por tanto, dentro. Buscar alucinado, como quem está tomado de luz, moldar símbolos com as mãos feito um oleiro, e cobrir o Vazio, humanizar o supremo Nada. Proclamando a beleza efêmera das palavras-imagem que brotam do desproposito de nossa arte! De nossa curiosidade infantil! E de nosso gosto pelo artificial, pelo espelho. Como a criança que constrói castelos de areia na beira do mar, e ri quando os vê destruídos pelas forças inevitáveis de si mesma ou do mundo.

quinta-feira, 3 de maio de 2012


                                     (Melancholia I, gravura, Albrecht Dürer)

Caminho pelas ruas da cidade, atravesso salas e corredores, vou ao shopping center, sento no bar, tomo um coletivo, transitando entre homens e mulheres que me olham com uma estranha normalidade, e secreta mantem-se minha dor! Não percebem meu iguais tão diferentes que manco? Que arrasto dificultoso o peso incalculável de uma ausência? Uma falta sem nome, uma ferida por debaixo da camisa, que espada ou revolver nenhum podem fazer! Que sangra e clama em palavras incompreensíveis como uivos de um animal moribundo a volta do desconhecido. Que parte que me falta e me ocupa de vazio? Uma perda indelével me acompanha antes mesmo de mim, e por ela vago solitário com a capa negra do luto, sem um corpo para velar ou fotos para lembrar, mesmo assim sem esquecer nem por um instante...

segunda-feira, 12 de março de 2012

O abstrato de mim

Um fantasma sempre me ronda!
No passo que dou, é ele quem anda.
No gesto que faço, é ele quem toma.
No meu pensar, é ele quem sente.
O fantasma é minha sombra,
que me precede e antecede,
no mesmo ciclo do sol.
E que só se fará em mim,
no luminoso meio-dia,
ou na obscura meia-noite.

domingo, 11 de março de 2012


Enquanto o suicida tenta justifica o fim da própria vida, a grama ao seu redor cresce pelas brechas da calçada, e mesmo na sujeira embaixo de sua unha, a vida insiste em proliferar injustificável.

domingo, 4 de março de 2012

A repetição que gera a diferença

Todo dia subo a mesma rua, desço a mesma rua, e o som dos meus passos repetitivos me diz:   onde...? onde...? onde...?
Todo dia atravesso a mesma praça, na partida e na chegada, e o canto dos pássaros nas árvores me diz: quando...? quando...? quando...?
Todo dia eu pego o mesmo ônibus, que me leva e me traz, e o murmuro das pessoas nos bancos me diz: como...? como...? como...?
Toda noite, eu durmo e sonho com as múltiplas possibilidades para os muitos onde, quando,  como...                                                    Quando acordo pela manhã, os sonhos se recolhem ao esquecimento, para que a vida possa recomeçar de novo, sem onde, quando e como.

sábado, 3 de março de 2012

Dialogo Intimo

O homem soturno desce a rua deserta: 
-Quem es tu homem soturno, que máscara de mistério cobre teu rosto?
- O que sou não se diz, o que sou não se vê, o que sou, seja lá o que for, está além de qualquer sentença ou imagem.
- E o que carregas em tua bagagem homem soturno, o que guardas em teu peito?
- Na mala levo o Tempo, silencioso e constante. No peito só o vazio de um Amor sempre errante
- Enfim, para onde vais homem soturno, que destino lhe aguarda?
- Vou rumo ao indefinido, venho de longe do esquecimento, meu passo não se move, caminho sobre a eternidade, se chego ou se parto, já não importa, tudo isso faz parte da mesma viagem torta.
E ao longe desaparece feito fantasma o homem soturno, na escuridão da noite movediça...

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Breve teoria do carnaval

Ah o carnaval!! o acontecimento religioso da raça, nas palavras de Oswald de Andrade. Um ano de espera em uma vidinha mais ou menos(pois em qualquer circunstancia a vida sempre é mais ou menos do que esperamos dela, para melhor ou para pior) para poder cair em sua graças, rir e chorar das ilusões da vida, até tudo se acabar na quarta-feira. O carnaval não é só uma festa, historicamente entranhado na genética cultural brasileira ele já se tornou um rito de celebração da Vida e resistência contra a Morte (pois inegavelmente e paradoxalmente quanto mais se vive, mais se morre). Uma mistura perfeita de procissão religiosa e festim dionisíaco,o profano e o sagrado, o santo pecado, a união prometida pelo profeta-poeta Blake entre o céu e o inferno ( ah se o tempo pudesse ser abolido e o genial Blake pudesse trocar o frio cinzento da Inglaterra do século XVIII pelo calor vibrante dos pandeiros e tamboris brasileiros!) .
O carnaval se constituí de carne e é no espírito da carne que o sentimos, suor, sangue e lágrimas escorrem pelo corpo e inundam a avenida onde dançam os mortais, que cantam em homenagem a vida enquanto vislumbram a própria morte sempre a nos esperar no horizonte, a nos espreitar no escuro, a nos sondar paciente, lá esta ela na quarta-feira de cinzas. Pois o carnaval é a explosão dos opostos, a contradição e o contraste latente, a existência humana absurda posta em prova. O carnaval não se explica pela lógica, para além das questões sociais, econômicas e políticas, filosoficamente falando o carnaval se faz metáfora. A metáfora da esperança humana, que é a força que nos move, e ao mesmo tempo a maldição de termos que nos mover. É a metáfora do desejo humano, ou a Vontade como diz Schopenhauer, essa força inconsciente e insaciável que tudo devora, até a si mesma, como um ciclo sem fim. Antes do carnaval esperamos o carnaval, depois do carnaval esperamos o carnaval, por isso o carnaval é a prova de que só se pode ser feliz na desesperança. Se eu acreditasse em Deus, poderia até dizer que ele é um velho sacana, com um senso de humor maléfico, pois uma das mais terríveis leis do tempo é que o momento esperado sempre é mais rápido do que a espera. Assim os dias de carnaval mais parecem minutos, e o ano que nos separa dele a tediosa eternidade.
E podemos nos perguntar, e de que vale tudo isso se por fim, do carnaval nada fica, se não esse esperança que maltrata, que angustia, que pesa no peito como o pesado fardo cristão da salvação? O carnaval em si é inútil, como todas as tentativas humanas de vencer a morte e de explicar a vida. Mas que bobagem, o único valor do carnaval é vivenciar o carnaval, e quem sabe narrar os muitos carnavais, assim se faz a experiência, que é a única coisa que vale na vida humana, pois é também a única coisa que pode relativamente perdurar além da efêmera vida individual, pois pode ser guardada tanto no inconsciente coletivo quanto na arte, formas de memória compartilhada. E se pensarmos bem, não é na inutilidade de nossos sonhos que está toda a beleza de sonharmos, não é isso que o carnaval representa? A arte é tão bela quanto inútil, a vida é tão essencial quanto fútil! Nada que fazemos pode mudar nossa condição, e mesmo assim fazemos, mesmo assim mudamos, mesmo assim retornamos ao igual.
Outro belo paradoxo que o carnaval revela é exatamente o eterno retorno. Diz Walter Benjamin que o principal na brincadeira é sua repetição, a criança que brinca sempre quer brincar mais uma vez, sempre quer repetir o jogo, infinitamente de novo. A repetição é a lei que rege a experiência. Ao sentirmos algo retemos o sentimento, mas é na narração desse sentimento que nasce a experiência. Precisamos repetir para moldar as sensações e sentimentos em experiencia humana compartilhável, assim também se constitui a memória, na repetição, que é o coração vibrante do Tempo. O que consola no pensamento terrível do eterno retorno é saber que se tudo de ruim em nossas vidas se repetirá, também tudo de bom se repetirá, e assim sempre haverá um último carnaval e nele a eternidade em um segundo...
Pensemos melhor no carnaval como ato lúdico que é, as fantasias, a música, a dança, a brincadeira. O Homo sapiens é o animal que trabalha e constrói, assim ele se protege dos perigos da natureza e dela retira o que necessita, por isso ele representa os primórdios da humanidade, por ele nos sobrevivemos até hoje, e com tudo que foi construído para nos proteger e confortar, podemos guardar algum tempo para ações inúteis, como por exemplo brincar. Depois que nossas necessidades externas são satisfeitas o que encontramos é um vazio em nosso peito, e esse é o problema em se ter uma alma, é que ela também tem fome. E fácil perceber isso, se o homem tem uma casa para se abrigar e comida, ele pode viver muitos anos, mas se isso é tudo que ele tem para viver, em menos de um ano ele se enforcaria ao perceber a banalidade e o desproposito de sua existência. Nessas condições a única forma de resistência e a invenção do inútil que logo se torna indispensável. Por isso o futuro pertence ao Homo Ludens, a vida para além da mera sobrevivência e a vida como jogo, como arte. Onde apesar de sempre perdermos para a morte, damos um jeito para fazer belos gools de placa.
Tratei do carnaval em termos gerais, mas se analisarmos por partes, destacando seus principais elementos podemos retirar importantes e interessantes temas filosóficos. Analisemos primeiramente a fantasia. A fantasia tem o poder de ampliar as possibilidades ontológicas do humano, propiciando a expansão do Ser. Quero dizer fantasia em todos os seus sentidos, tanto na materialidade das roupas, máscaras, chapéus, quanto simbolicamente enquanto imaginação, invenção, ficção, ideia, pensamento, arte. O fantasiar-se é a possibilidade de ser outro, e por tanto, de nascer de novo, de ser diferente (novamente surge o eterno retorno como pano de fundo do fantasiar-se). A fantasia é a ligação com a teatralidade da existência enquanto palco de uma tragicomédia, onde cada um representa um papel aparentemente fixo, mas que no carnaval se revela cambiável, o que só prova que o Ser nunca é, mas está em eterna construção. Fantasiar-se é reinventar-se, e querer ser mais do que se é. É dar vazão aos resquícios de personalidade escondidos no inconscientes, e dar voz ao outro que nos habita. E ao mesmo tempo e zombar de si mesmo, é afirmar a si mesmo que seu Ego não passa de uma ilusão, que no carnaval vira brincadeira.
Pensemos na constituição física do carnaval, que é formado por um bloco, uma multidão de pessoas reunidas ao redor de uma banda ou trio elétrico em um movimento mais ou menos harmônico rumo a mesma direção. O ser humano é sem duvida um animal sociável, e as multidões tiveram importantes papeis na história, se pensarmos bem quase todos os mais marcantes eventos da humanidade envolvem de alguma forma multidões, desde revoluções, guerras, esportes, ritos religiosos etc. É claro, por tanto, a força que uma multidão desencadeia, é uma energia que transpassa todos os corpos e parece criar um só corpo. Nesse sentido o bloco de carnaval colabora com a questão da despersonalização posta anteriormente pela fantasia, pois envolto na multidão o individuo se torna um desconhecido, e por isso pode ser qualquer um, pode ser outro. Nas palavras de Baudelaire: “gozas da presença das massas populares é uma arte”. Dentro da multidão tudo se generaliza, tudo se transmite, a música, o canto, a dança, a embriagues, a euforia a vitalidade o desejo. Aos olhos da multidão, só existe a multidão, e nada mais.
Tratarei da música, da dança e do canto como sendo um só elemento, que mesmo peculiar se associa e fortalece os demais. A música é tida por alguns filósofos como a arte maior, assim afirma Schopenhauer: “...o que distingue a música das outras artes é que ela não é uma reprodução do fenômeno ou, melhor dizendo, da objetividade adequada da vontade; ela exprime o que há de metafísico no mundo físico, a coisa em si de cada fenômeno”. Assim sendo a música é capaz de tocar diretamente o espírito, não é atoa que ela é utilizada desde os primórdios da história em todo tipo de rito religioso. A música envolve, cria ambientes, reverbera no corpo e cria a dança, (expressão física da imaterialidade do som), leva ao transe e a imersão. A pesar da grande complexidade da teoria e mesmo da prática da música, ele tem a incrível capacidade de transmitir sentimentos de forma muito direta e simples. Ninguém precisa entender absolutamente nada de música para se alegrar ou entristecer ao som dela, por isso ela é tida como universal. Quem canta seus males espanta é um dito popular que expressa bem o que representa a música no carnaval. O canto cria a identidade compartilhada da multidão, o que gera o sentimento de pertencimento, de abrigo, de segurança, não se teme aquele que ao seu lado canta a mesma canção que você. Uma voz unida a tantas outras, assim a música se fortifica ao ser cantado pela multidão do bloco.
Por último destacarei um elemento que sozinho não representa muita coisa, mas associado ao elementos já citados se torna poderoso no carnaval. Esse é o álcool, a embriaguez, principalmente o que vem da cachaça, marca brasileira no mundo todo. No carnaval a cachaça se torna o elixir da vitalidade, a fonte da juventude, o combustível da folia. Historicamente a bebida sempre teve lugar nas comemorações e eventos religiosos, a ela os gregos deram como deus nada menos que Dionísio( que também é o deus da dança e da música, o que revela a ligação mistica entre essas artes e o álcool), que sem dúvida abençoa a cachaça tanto quanto o vinho. Vejamos como a bebida associa-se aos demais elementos carnavalescos e fortifica-os. A bebida é instrumento poderoso de sociabilização, ao se ofertar uma bebida a alguém, cria-se laços de amizade, a bebida reuni os bebedores, é uma desculpa para o encontro. Assim ela fortifica o sentido do bloco, da multidão. A bebida leva a embriaguez, a embriaguez ao libertar o inconsciente colabora com a despersonalização do sujeito, e por tanto, com o sentido da fantasia, além do que, enriquece a criatividade, incita a imaginação fortificando a reinvenção de si. A embriaguez destrói qualquer forma de timidez, e é claro aboli totalmente nossas noções de bom senso, que normalmente regem nossas relações cotidianas, tornando o sujeito carnavalesco mais expansivo e propicio ao canto e a dança. A embriaguez derruba nossos preconceitos estético, ampliando nossas noções do belo, o que colabora também para a derrubada de preconceitos sexuais, pois como dizem, no carnaval pode tudo, homem vira mulher e mulher vira homem. Voltando a Baudelaire: “É preciso estar-se, sempre, bêbado. Tudo está lá, eis a única questão. Para não sentir o fardo do tempo que parte vossos ombros e verga-vos para terra, é preciso embebedar-vos sem trégua. Mas de que? De vinho, de poesia ou de virtude, a escolha é vossa. Mas embebedai-vos”. E para mim se o poeta disse, tá dito, é lei!ah o bom poeta! Se estive no carnaval brasileiro seria o mai triste e feliz pierro da avenida!
Assim termino minha breve dissertação/devaneio filosófica sobre os sentidos do carnaval, sempre relembrando os carnavais passados e esperando que muitos outros venham, e que esse pequena e simples teoria muito particular possa estar sempre se transformando.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A chuva lá fora cantou o dia todo seus ritmos melancólicos, como uma revoada de gotas a tamborilar nas folhas das árvores, embalando os sonhos diurnos. E a umidade branca que paira no ar como espectros de vida e se acumula nas coisas como detritos de sono, tomou conta dos meus pensamentos, cobrindo meus olhos de lodo e musgos...

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

                                                                                 (Fotografia de Ninguém)
Ergo os olhos e contemplo triste a beleza intangível da Lua, mãe da noite tenebrosa, em sua indiferença luminosa das alturas. Nossas Solidões se encaram, se medem, se identificam, se cumprimentam e se despedem, sabendo ambas serem indeléveis ao tempo.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Domingo

No intervalo entre os ponteiros do relógio, o tempo estendido, o dia passa lento em tons de eternidade. A manhã que desperta sonolenta, a tarde morna e preguiçosa, a noite triste e silenciosa. Tudo novo de novo e eu...

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A Natureza, mãe-madrasta, que está fora e está dentro,com uma mão nos da a vida e com a outra tira.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Devemos parar de sobreviver como quem vive apenas, e passar a Sobreviver como quem sobrepõe-se a vida.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Quem puder cantar ao longo da marcha da morte, sempre viverá para mais uma canção...

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O interiorano

O homem do interior é aquele que busca no interiro (o seu ou  de seu país) as raízes de um passado que é presente e futuro.

domingo, 15 de janeiro de 2012

O inquantificável

Quando me vejo só na mesa da partilha,
E restam em meu olhos apenas os ecos de minhas vastas emoções,
O vulto de meus pensamentos imperfeitos, ao largo da solidão
E do abandono que me configuram, pergunto ao incógnito:
Quanto de mim sou eu, quanto é o Outro?
Quanto de mim é parte, quanto é todo?
Quando de mim passa, quanto prega na eternidade?
Quanto de mim é liberdade, quanto é prisão?
Quanto de mim são os mortos que me precederam?
Quanto é a vida que me sucederá?
Quanto é canto e poesia, quanto chora em agonia?
Quantos me habitam e em quantos habitarei?
A repetição, o tempo, o nada...

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Do movimento das nuvens ou da leveza que pesa

                                                                                                 (Estudo das nuvens, John Constable, pintura)


A nuvens marcham lentamente, avançando sobre os raios do  sol. E seus corpos de leveza lançam na Terra as sombras do tempo que pesam no coração.