sábado, 5 de junho de 2010

A poética do espaço de Van Gogh


O quarto é pequeno, estreito e simples, desprovido de qualquer tipo de ornamento espalhafatoso que chame a atenção ou se destaque de seu contexto. Os poucos móveis e objetos parecem cada um ocupar seu devido lugar, inertes na eternidade. Os quadros postos na parece por sobre a cama demonstram um cuidado singelo e significativo a estética de um espaço que se propõem aprazível, mesmo sendo rústico. Em um deles, na cabeceira da cama, se vê uma paisagem campestre calma e reconfortante, com destaque central a uma arvore, talvez uma oliveira.  Em outros dois quadros se vê o retrato de um homem de barba e cabelos ruivos e uma mulher loira. Quem sabe sejam um casal de amantes, esposo e esposa, ou talvez uma lembrança de um amor perdido, alguém que partiu, ou ainda uma imagem meramente simbólica, de um amor esperado e não encontrado, de um futuro imaginado que guarde o amor vindouro. As portas e janelas do quarto estão fechadas, por elas não passa nenhuma luz. O quarto esta como que isolado do mundo externo, fechado sobre si mesmo ele constitui um universo a parte, independente das conturbações do mundo lá fora, ele permanece calmo, fixo, intocável, impenetrável e profundamente  íntimo. Que segredos íntimos da alma de um homem pode guardar um quarto, em seus cantos ou gavetas, por debaixo do travesseiro ou da cama, ou quem sabe em um cofre ou passagem secreta? O espaço de uma intimidade não pode ser medido geometricamente, independente de sua altura ou largura ele é sempre profundo em sua vontade de aconchego e proteção. O quarto possui cores diversas e vibrantes, o que evita de tornar seu espaço mórbido ou soturno, apesar do tom de melancólico (tristeza resignada) de solidão e isolamento. As cores parecem concordar plenamente entre si, uma se apoiando na presença da outra, nada se destaca de mais ou de menos. O vermelho escarlate do cobertor parece que ainda guarda um pouco do calor do corpo de quem ali se deitou outrora, e convida ao observador a também se deitar ali para uma boa noite de sono. Se o dono do quarto já se foi, o quarto como entidade espacial parece ainda adormecido, perdido em sonhos distantes e tranqüilos. E o sonho, do quarto e do dono do quarto, parecem ser o principal constituinte da aura dessa pequena morada do Ser, que vive, dorme e habita o espaço.
    Nesse quadro feito por Vincent Van Gogh, por volta de setembro de 1889 na província francesa de Saint-Rémy,  retrata o quarto que foi sua morada por algum tempo dentro do hospício de Saint-Paul-de-Mausole. O fato de sabermos que era o quarto de um hospício cria um forte contraste ou paradoxo entre o ar de intimidade e acolhimento que a obra traz e a realidade um tanto quanto cruel de um hospício. Conhecendo a biografia de Van Gogh, sabemos que sua vida não teve grandes sucessos e reconhecimento. Ele nunca conseguiu se sustentar, dependendo sempre do irmão e vivendo em muitas situações de dificuldade financeira. Além disso teve constantes distúrbios mentais ao longo da vida, crises de loucura, tentativas de suicídio. Tudo isso levou-o a internar-se por conta própria em um hospício. Mas se Van Gogh era assim tão perturbado a ponto de se internar, porque ele retrata o quarto de sua “prisão” com tamanha intimidade, conforto e uma simplicidade aconchegante, se ali ele estava exatamente por causa de seus sofrimentos?
    A obra de Van Gogh se destaca na história da arte por marcar o inicio do processo de independência da representação artista frente ao  compromisso em retratar a “realidade” externa como ela é. As cores e as formas na obra de Van Gogh não mais se prendem as convenções da realidade socialmente compartilhada,  e das correntes artísticas acadêmicas, elas seguem livremente os sentimentos, emoções e estados de espírito pelos quais o pintor passa. Isso nos ajuda a pensar um pouco sobre a obra em questão.  A realidade pessoal vivida por Van Gogh nesse período era delicada e perigosa. Ele estava na imanência de sofrer  um surto de loucura derradeiro, ele temia seu futuro incerto. Mas sua arte sempre foi sua muleta, sua esperança, seu amor. Van Gogh buscava em sua arte a utopia de uma vida melhor. A criação de um espaço pictórico contribuía para a constituição de um espaço imaginário que ajudava a amenizar a dor da vida.  Van Gogh encontrou no hospício de Saint-Paul-de-Mausole, que no passado fora um mosteiro agostinho do século XII,  um lugar de isolamento, proteção e meditação. Pensando dessa forma entendemos um pouco os motivos do artistas ao criar em sua pintura do quarto uma versão afável de um espaço que a principio era opressivo. 
    Em uma carta enviada ao irmão Théo, Van Gogh descreve o quadro:
“Desta vez trata-se simplesmente de  meu quarto, só que aqui a cor é que tem que fazer a coisa e, emprestando através de sua simplificação um estilo maior às coisas, sugerir o descanso ou o sono em geral. Enfim, a visão do quadro deve descansar a cabeça, ou melhor, a imaginação. As paredes são de um violeta pálido. O chão é de lajotas vermelhas. A madeira da cama e das cadeiras é de um amarelo de manteiga fresca, o lençol e os travesseiros, limão-verde bem claro. O cobertor, vermelho escarlate. A janela verde. A mesinha, laranja, a bacia, azul. As portas, lilás. E pronto – nada mais neste quarto com os postigos de janela fechados. O efeito dos móveis também deve exprimir um descanso inviolável(...) Amanhã eu também trabalharei nele o dia inteiro, mas você pode ver como a concepção é simples. As sombras, próprias e projetadas, foram suprimidas; foi colorido com tintas planas e chapadas como os crepons. ” .
O descanso, o sono, a imaginação, são palavras que se destacam na carta de Van Gogh. Ele sabia que a arte é um livre exercício de imaginação, sabia da força das cores, e sabia que o que precisava naquela situação em que se encontrava era de descanso.
    O filosofo Gaston Bachelard ao tratar sobre as imagens do espaço poético,  afirma que quando tomamos uma nova morada, aplicamos a ela nossas lembranças de todas as moradas que já tivemos, principalmente de nossa morada da infância, o aconchego do primeiro lar. Assim vivemos projeções de felicidade e  proteção. Ao que parece, Van Gogh buscou ao longo da vida na arte uma forma de estar no mundo, de habita-lo em toda a sua intimidade, mesmo frente a uma sociedade que o oprimia e rejeitava. A imagem do quarto pintada por Van Gogh remete-me a imagem poética citada por Bachelard, sobre a cabana do eremita.
“A cabana do eremita é um tema que dispensa variações. A partir da mais simples evocação, a repercussão fenomenológica   apaga as ressonâncias medíocres. A cabana do eremita é uma gravura que sofreria de um excesso de pitoresco. Deve receber sua verdade da intensidade de sua essência, a essência do verbo habitar. Logo, a cabana é a solidão centralizada. Na terra das lendas, não há cabana média. O geógrafo pode bem trazer-nos, de suas longínquas viagens, fotografias de aldeias de cabanas. Nosso passado de lendas transcende tudo o que foi visto, tudo o que vivemos pessoalmente. A imagem nos conduz. Vamos à solidão extrema. O eremita está só diante de Deus. A cabana do eremita é o antítipo do mosteiro. Em torno dessa solidão centrada irradia um universo que medita e ora, um universo fora do universo. A cabana não pode receber a menor riqueza deste mundo. Tem uma feliz intensidade de pobreza. A cabana do eremita é uma gloria da pobreza. De despojamento em despojamento, ela nos dá acesso ao absoluto do refúgio” .
    O quadro de Van Gogh constitui um espaço pictórico e imaginário que remete a imagem poética citada na passagem de Bachelard, que também  pode ser aplicada a outros quadros de Van Gogh, como por exemplo as cenas das casas de camponeses no interior da Holanda e da França que ele tanto gostava de pintar. Casas cheias de simplicidade material e integridade de espírito. O quarto representa simplicidade e até pobreza do espaço, mas por outro lado revela a busca de um lar perdido, de uma morada segura e confortável, ao mesmo tempo que demostra a situação de carência, solidão e recolhimento de Van Gogh diante do mundo.