sexta-feira, 23 de julho de 2010

Os tempos da melancolia


    É comum no mundo da arte, encontramos pintores ou poetas que sofrem desse antigo mal do espírito, a melancolia. Ou será ela um estado excepcional de sensibilidade que enriquece a produção artística? A palavra melancolia se associa facilmente a tristeza, apatia, tédio, desalento, meditação, morte, mas afinal o que é esse sentimento misterioso, como ele se deu na história dos homens, como ele se da hoje?
    As teorias pré-modernas ou pré-freudianas que tratam da melancolia a definiam como uma espécie de mal-estar que denunciava o desajuste de alguns membros de uma determinada sociedade as condições do laço social. O melancólico da Antigüidade até o Romantismo  era representado como alguém que perdeu seu lugar frente a sua  versão imaginário do Outro. Consumido em ruminações, arrependimentos, dúvidas e investigações, o melancólico se sente deslocado de seu mundo e de seus semelhantes, e busca uma solução para o enigma do que o Outro espera dele.
    Na Antigüidade, Hipócrates atribuía o caráter excepcional do melancólico ao excesso de bile negra, responsável pela predominância dos ventos sobre outros elementos que compõem o corpo (teoria dos 4 humores). Isso explicava a inconstância, o abatimento e a predisposição a “sair de si”  que apresentava o melancólico. Para Aristóteles todos os homens que exceleram em qualquer domínio eram melancólicos. Ocorre que pela volubilidade do caráter do melancólico, sua capacidade de “tornar-se outro”, que predispõem à arte poética por seu talento para a mímese, faz  dele um indivíduo instável, que oscila perigosamente entre a genialidade e a loucura  (estados da alma  que só se diferenciam por grau).
    Na Idade Média a melancolia associava-se ao pecado capital da acídia, mais tarde substituída pela preguiça. Para Tomás de Aquino a acídia era o enfraquecimento da vontade o que prejudicava a resistência do  homem diante das tentações do diabo.
    Só no Renascimento a melancolia readquire um certo prestigio. De acordo com o pensamento antropocentrico, o homem era convidado a encontrar em si mesmo a medida de suas próprias escolhas e construir seu lugar no universo. A melancolia vinha então da angústia diante da escolha e da descoberta de si. Ao mesmo tempo o desenvolvimento científico do período  renascentista levou a um desencantamento do mundo e a um ceticismo agudo que também pode levar ao abatimento melancólico do homem que busca resposta sobre o universo, mas não as encontra.
    No Romantismo o sentimento de melancolia atinge seu auge, pois era o próprio símbolo da genialidade e sensibilidade romântica.  Visto também como uma desarmonia entre o homem e o mundo, desta vez voltado para a perda de uma união idílica com a natureza e a eterna busca por completude amorosa com Outro. 
    Enfim na Modernidade a melancolia assume a imagem do poeta Charles Baudelaire, que em suas poesias intituladas “Spleen” denunciava o tédio e o vazio da vida burguesa nas grandes metrópoles industriais, o isolamento em meio as multidões, o individualismo e a perda dos laços sociais. Parente da doce melancolia romântica, o spleen  conjuga gozo e desencanto, misantropia e gosto estético pelo mal. Somente depois das teorias de Freud é que a melancolia passou a ser vista como um distúrbio psíquico ligado ao complexo de castração, afastando-se de vez das representações ligadas ao sublime e a genialidade. Hoje a melancolia é associada a depressão, entre doença e sintoma social, o que se sabe é que sua ocorrência tem crescido e que as tentativas de combate-la também, criando-se envolta do tema um grande mercado de consumo, desde livros de auto-ajuda, religiões de todos os tipos, antigas ou recentes e medicamentos e terapias.
    Destaco duas questões que me intrigam sobre a melancolia. A primeira retoma a proposta estética de Baudelaire, presente em Flores do Mal. Assim dizia o poeta em seu prefácio: “Há muito já que poetas ilustres partilharam entre si as províncias mais floridas do domínio poético. Pareceu-me divertido, e tanto mais agradável quanto mais difícil era a tarefa, extrair a beleza do Mal” Enfim perdura a questão, o mal, o melancólico, o tenebroso, podem ser fontes do belo? A resposta e sem duvida difícil e polemica, e por isso tal reflexão nunca se esgota com o tempo, ao contrario, enriquece-se com seu passar. Quanto a mim encontrei o que necessitava nas páginas de Baudelaire! E sempre que torno a le-las sinto todo meu mal se transmutar.
    A segunda  questão é uma problemática mais contemporânea, e de cunho sociológico, que envolve a nossa forma de lidar com o tempo e nossa busca desesperada pela felicidade. Em uma sociedade do espetáculo e do consumo, onde o que predomina é o imperativo do gozo, do prazer intenso e instantâneo, da felicidade proposta em cada propaganda de TV e compacta em cada mercadoria banal, ainda há espaço para se sentir melancólico, ou tudo que se relaciona a tristeza é visto como anomalia e deve ser extirpado o quanto antes com drogas antidepressivas? O homem contemporâneo em seu regime industrial de alta produtividade e sua febre consumista terá ainda tempo para pensar nas tristezas da vida, nas perdas , e na morte, ou mesmo  para se questionar no que consiste a   verdadeira felicidade? Antes de tudo o tempo do melancólico, seja em qualquer época, é um tempo muito mais lento e subjetivo do que o tempo do relógio e do trabalho, será que podemos nos dispor desse tempo dos dias de hoje?

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O soberano

Um dia desses qualquer, sentei-me em um boteco desses que ficam na parte de traz da comercial das superquadras. Era um lugar pequeno, simples e com um estética undergroud de abandono e imundice. Porém, as mesas postas em baixo de uma marquise, ficavam de frente para a uma área bucólica, um grande jardim repleto de belas arvores, o que criava uma paisagem calma e agradável. Poucas mesas estavam ocupadas, de um lado um casal, do outro um grupo de velhinhos jogando cartas, mas não pude deixar de reparar em uma mesa ao fundo, no canto, a figura de um homem sentado sozinho. Era um senhor de barba grisalha, grandes óculos quadrados e uma boina tipo francesa.  Em cima de sua mesa uma garrafa de cerveja e um copo com uma generosa dose de cachaça, de cor amarelo escuro como um veneno forte. O homem fumava um cigarro como se fosse um imortal para quem o tempo não existe. As longas e profundas tragadas que cobriam seu semblante de fumaça dando-lhe um ar misterioso, denunciavam o prazer e a dedicação a ação. Os olhos por de traz das lentes pareciam dois peixinhos dourados perdidos em um aquário. Ele mirava resignado o Nada, e voltava toda a sua atenção para o além do além, para o vago, o abstrato. Tudo ao seu redor eram inúteis banalidades, e sua solidão parecia infinita. A face rija não transparecia paixão ou desespero. O homem era pura melancolia. E imerso nessa melancolia ele parecia um soberano, altivo, nobre e intocável, como se nada nem ninguém pudesse abalar seu humor introspectivo. Ele ergueu como que uma torre de marfim, e isolado nas alturas observava o mundo dos homens como se fosse um enorme formigueiro, tão belo quanto insignificante.
    Não sei dizer bem o porque, mas não conseguia parar de olha-lo, algo em sua imagem invocava em minha alma sentimentos obscuros, enigmáticos, insondáveis. Ao contrario do que se pode pensar, sua brutal indiferença a tudo  não me dava a impressão de prepotência, mas sim de um recolhimento integro e sensível, de quem corajosamente encara de frente suas tristezas e coroa sua fragilidade como o que há de mais humano, diferentemente do que o mundo hoje prega. Isso despertou em mim uma profunda compaixão, mas compaixão não no  sentido de piedade, pois em sua imensa dignidade ele não merecia isso, mas sim compaixão no sentido de identificação com a dor alheia, como quem reconhece um irmão de sofrimento. Pois na verdade todos sofremos de uma forma ou de outra, a diferença é que para uns isso é como uma chaga que deve ser coberta, escondida, ignorada, renegada, para outros mais sóbrios sobre a existência, o sofrimento é um preço a ser pago inevitavelmente por se ter uma vida sensível, um mal que não impede que dele brotem flores. Por um instante pensei em aborda-lo, quem sabe dizer-lhe algo ou apenas cumprimenta-lo, mas não. Preferi o silêncio que poupa da tolice. Há coisas que devem ser guardas em segredo, no fundo dos olhos, para preservarem sua beleza rara. Como as bolas de sabão, delicadas a visão e avessas ao toque.
    Em verdade, devo dizer que tudo que vi despretensiosamente naquele velho homem singelo, não poderia ter visto se não fosse tudo um reflexo de mim mesmo.

terça-feira, 13 de julho de 2010

O lugar da Arte

Convenço-me não sem duvidar, de que a Arte é a única coisa que pode preencher o imenso vazio que sinto em meu peito. Vazio esse que nasce dos primórdios da origem do Desejo. A Arte em seu sentido metafísico, diretamente ligado a condição humana, aliada da consciência em sua missão de dissimular a vida, e ao mesmo tempo da inconsciência em sua missão de guardar os mistérios da vida.  Somente ela pode realmente acalentar  meu coração, aquecer minha alma e incitar-me a mover, a fazer, a criar. A dar valor as coisas externas por saber que no fundo as coisas em si não tem valor nenhum, que a vida, esse presente grandioso e irônico dos Deuses, é na verdade gratuita e inútil. E só resta sonhar, cultivar ilusões, que  nunca são totalmente falsas, pois sempre carregam um dose de verdade e realidade. A arte que externaliza o interno e internaliza o externo em um constante processo dialético entre o indivíduo e seu mundo, transformando  para o homem o universo estranho e hostil, em  seu infinito particular. A Arte antídoto contra o Desespero, manto da beleza que cobre o horror da Morte, palavra iluminada contra a escuridão do Nada. Assim entendo a Arte, e como diz o poeta; “a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver”.
    Cabe a um homem sóbrio dedicar-se a uma atividade inútil, e sabendo-a inútil pratica-la com amor e sem pesar, como se nada mais importasse (e não importa!). Nisso consiste a saga do artista, seja qual for sua arte, cientista ou pintor, agricultor, pedreiro ou operário, gênio, louco ou comum, pois no fundo toda atividade essencialmente humana é a principio artística, porque tudo que se faz com Verdade se faz com Arte, e a verdade é a arte de bem mentir.
     Assim sendo, porque não enganar-me?  Fazendo da minha vida uma pintura, opera ou filme, onde eu finja ser grande poeta, e tal como um ator esquizofrênico que entalha as próprias máscaras, representar a tragédia de minha existência, mesmo que eu seja o único espectador solitário de mim mesmo, mesmo que minhas palavras nunca saiam desse quarto, nunca encontrem a luz do sol da realidade, nunca soem aos ouvidos de gente.  Queria que todo o meu Medo, Solidão, Angustia e Melancolia, explodisse em Beleza eterna e vingadora!