sábado, 18 de setembro de 2010

Não exijo nada de ninguém, aceito de bom grado o que me vem, e desprezo tudo que me falta.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Figura e Corpo


Para refletir  sobre processo criativo de Francis Bacon, mediados  pela analise de Deleuze, e ao mesmo tempo relaciona-lo a problemas da estética contemporânea que me chamam atenção,  acredito que devemos começar pelo inicio do processo, o que Deleuze chamou de, “a pintura antes de pintar...” O que isso quer dizer? É ilusão acreditar que o pintor pinta por sobre uma tela em branco, a tela nunca esta em branco afirma o filosofo. Ela esta sempre repleta de imagens virtuais, provindas de toda a história da arte, de toda a cultura, de todas as imagens que vagueiam na mente do pintor, que se mostram ao seu redor, na cidade, no ateliê. A isso chama-se de clichê, imagens pré-concebidas  que geram percepções pré-frabricadas. Se levarmos em conta as condições atuais das técnicas de produção e reprodução de imagens, perceberemos que   em nenhum outra período da humanidade nossos olhos estiveram tão sobrecarregados de cores, formas, e informações. Basta pensarmos na televisão com suas muitas propagandas, na Internet, nas revistas, nos outdoors, vitrines de shoppings, panfletos, a febre consumista de máquinas digitais fotográficas e de vídeo, tudo isso gerou um universo visual amplo e poluído. Cabe frente a tal banalizarão das imagens a pergunta; como a pintura, uma arte essencialmente visual, reage a esse realidade? A tentativa para um possível reposta a essa questão, tão cara a atualidade de Bacon quanto a nossa, me parece estar ligada ao entendimento de como Bacon constrói suas Figuras, seguindo um caminho oposto ao do Abstracionismo e do Expressionismo abstrato, mais próximo a proposta de Cézzane da constante luta contra os clichês, da pintura da sensação.
    O processo criativo de Bacon inicia-se com a limpeza da tela dos clichês, para isso ele se serve de marcas livres, traços-linhas e manchas-cores, postos aleatoriamente por sobre a tela para destruir a figuração nascente e permitir o nascimento da Figura. Essas marcas não-represetativas que só dizem respeito a mão do pintor, surgem ao acaso, mas não um acaso inútil, mas sim um acaso manipulável, um acaso que aponta para possibilidades, que gera sugestões.
“Ora, é na manipulação, quer dizer, na reação das marcas manuais sobre o conjunto visual que o acaso torna-se pictural ou se integra ao ato de pintura. Daí a obstinação de Bacon, apesar da incompreensão de seus interlocutores, em lembrar que só existe acaso manipulado e acidente utilizado” (Deleuze) .
    A esse processo pré-pintura se deu o nome de diagrama, uma espécie de esboço inicial, onde o pintor se permite ao irracional, ao inconsciente, ao gesto puramente manual, a livre expressão do que ainda não tem forma ou nome , do que libertará a Figura da figuração, da narração e da ilustração, o impacto da sensação na carne, no corpo. A partir desse ponto podemos pensar no como Bacon cria uma via própria para o problema da não figuração. Ele recusa o puro código pictural dos abstracionistas, que é para ele deveras cerebral, e ainda corre o risco de se tornar uma simples codificação simbólica do figurativo. Recusa também a total irracionalidade dos expressionistas abstratos, que faziam o que Deleuze chamou de pintuira-catástrofe ou pintura-diagrama. Nesse caso o diagrama acaba por tomar conta de toda a tela e se tornando a própria pintura, de certa forma a sensação é atingida, mas permanece em um estado de confusão. Bacon afirma a importância do diagrama, mas também a importância de se controlar o diagrama e mante-lo em uma certa região do quadro, utiliza-lo em certos momentos da pintura.
“O diagrama é uma possibilidade de fato, e não o fato em si mesmo. Nem todos os dados figurativos devem desaparecer, e, sobretudo, uma nova figuração,  a da Figura, deve surgir do diagrama, conduzindo a sensação ao claro e ao preciso”(Deleuze) .  
    Frente ao entendimento do diagrama como técnica, processo ou instrumento de pintura, podemos agora pensar melhor na luta contra os clichês no atual contexto da banalização da imagem. Me parece que a pintura de Bacon é uma reação, consciente ou inconsciente,  a tal banalização. Interpreto como uma resposta da pintura a uma sociedade do espetáculo, que cada vez mais utiliza-se da imagem como uma fachada para discursos indutivos que de uma forma ou de outra estão comprometido ideologicamente e economicamente com o consumo. A propaganda, a publicidade, o marketing, se serviram largamente dos estudos de linguagem desenvolvidos pelas vanguardas artísticas da modernidade em prol de interesses distintos. Por isso é fácil  encontrar hoje propagandas de TV que são quase filmes de Spielberg,  vitrines de lojas que são quase instalações fotográficas, outdoors que em perspectiva  parecem falar diretamente para você. Toda essa nova manipulação das imagens para fins objetivos dissimulados, produz diversas resposta de artistas que também trabalhem com imagens. Respostas não só no sentido de ir contra ou negar, mas também  resposta no sentido de  interação, de  reverberação de efeitos, de exploração de novas áreas descobertas.


Um dos pontos centrais na produção de Bacon que levanta interessantes questões, é sua visão sobre o corpo, suas formas de interpretar esteticamente o corpo humano em pintura. O corpo é a Figura, o corpo apreendido em sua crueza, em sua essência animal, como massa de carne sangüínea e nervosa, viva e pulsante, como nossa ligação intrínseca com a natureza, ou na definição de Deleuze, nosso devir-animal.  Bacon como retratista não pinta rostos, o rosto é a organização de expressões em uma definição espacial, ele pinta cabeças, como sendo parte integrante do corpo. “...a pintura de Bacon constitui uma zona de indiscernibilidade, de indecidibilidade entre o homem e o animal” (Deleuze). Talvez seja exatamente essa fato apontado por Deleuze que gera um forte estranhamento nas obras de Bacon, a dificuldade criada de se distinguir até onde o que se vê  é um corpo humano ou um simples carcaça animal. Um tema recorrente nas pinturas de Bacon é a crucificação, exatamente porque ela mostra a carnalidade do corpo, é no corpo que o “fato” se concretiza, que a sensação se prolifera, é no corpo que parece se revelar ao pintor o drama da vida, latente porém sempre rumo a morte. “Sempre fui muito tocado pelas imagens de abatedouros e de viandas, e  para mim elas estão estreitamente ligado a tudo que é Crucificação ... É claro, nós somos viandas, somos carcaças em potencial. Se eu vou a um açougue, sempre me surpreende não estar lá, no lugar do animal”(Entrevitsa com Bacon) . O tema da crucificação se desenvolve em Bacon entre o tom espiritual e o profano.
    Em sua busca pela sensação, que se da pelo corpo e no corpo, Bacon segue os rumos abertos por Cézanne, este dizia que a natureza está no interior, o corpo assim se torna chave para o Ser das coisas.
“A lição de Cézanne vai além dos impressionistas: não é no jogo livre ou desencarnado da luz e da cor (impressões) que está a Sensação, mas no corpo, mesmo que no corpo de uma maça. A cor está no corpo, a sensação, está no corpo, e não no ar. A sensação é o que é pintado. O que está pintado no quadro é o corpo, não enquanto representado como objeto, mas enquanto vivido como experimentado determinada sensação”(Deleuze) .
    Se considerarmos a arte associada a outros campos de conhecimento como sendo uma espécie de  metáfora epistemológica da sociedade, podemos dizer que a interpretação de Bacon sobre o corpo vem de certa forma de uma problemática fenomenológica sobre o assunto. Merleau-Ponty explora bem o tema em sua ontologia da pintura, quebrando a dicotomia sujeito objeto, mostrando o corpo como ponto de partida para todas as nossas percepções do mundo, negando-lhe a interpretação de ser só mais um   objeto frio entre outros, mero instrumento ou máquina, ele afirma o corpo como sendo nossa verdadeira ponte dos sentidos para o Ser do mundo, é com ele e por ele que  o mundo dos fenômenos se abre para nós, e nós nos postamos junto dele.  Para Merleau-Ponty a pintura sempre buscou desvelar o visível no invisível, e esse enigma esta ligado ao fato de nosso corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível, é como se pudéssemos ver as coisas por fora, mas também senti-las por dentro.
“Visível e móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está preso no tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas, dado que vê e se move, ele mantém as coisas em círculos a seu redor, elas são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo mesmo do corpo”(M.Merleau-Ponty)  .
    É mais ou menos isso que Bacon busca, perceber os objetos e corpos em sua materialidade, em sua carnalidade e imanência, libertar as forças que se escondem no invisível, mas por dentro. É isso que seria o que Deleuze chama de pintar as forças. Forças essas que agem constantemente sobre nosso corpo, forças de deformação, contração e expansão, tensão, pressão, dissipação, temperatura, estiramento etc. A grande problemática perseguida por Bacon é como transmitir essas forças para uma tela mantendo nelas a vivacidade quase explosiva que elas tem no corpo?


“Quando o corpo visível enfrenta, como um lutador, as potências do invisível, ele apenas lhes dá sua visibilidade. É nessa visibilidade que o corpo luta ativamente, afirma uma possibilidade de triunfar que não possuía enquanto essas forças permaneciam invisíveis no interior de um espetáculo que nos privava de nossas forças e nos desviava”(Deleuze) .
    A sensação é o impulso gerado pelo contado do corpo com os objetos (seja lá qual for o tipo de contato), ela reverbera pelo corpo como em ondas, assumindo diferentes níveis, ordens, domínios, formando seqüências moventes.  Por isso as figuras de Bacon ora se contraem ora se expandem, a sensação é mestra em deformação, a sensação captada da ao quadro uma espécie de movimento estático, sabemos que a figura está parada, mas seu corpo vibra retorcendo-se, como se quisesse escapar de si mesmo.
“Cada quadro, cada Figura, é uma seqüência movente ou uma série. Cada sensação está em diversos níveis, em diferentes ordens ou em vários domínios. De modo que não há sensação de diferentes ordens, mas diferentes ordens de uma mesma sensação. É próprio da sensação envolver uma diferença de nível constitutiva, uma pluralidade de domínios constituintes”(Deleuze) .
    Mas Bacon parece ir além das questões fenomenológicas, querendo revelar uma dimensão mais profunda obscura, caótica e violenta da sensação no corpo. Daí o corpo passa  a não ser mais entendido como organismo, partes distintas e determinadas que formam um todo, mas sim como um órgão em si, indeterminado e cheio de potencialidades para transformação. Deleuze então surge com o conceito do “corpo sem orgãos”, retirado  de Artaud. O corpo massa disforme de carne e nervo, propicia a deformações provocado pela onda de sensações que vibram provocadas pelas forças que agem sobre nós. Não faltam orgãos ao “corpo sem orgãos”, mas sim organismo, os possíveis orgãos surgem de acordo com as sensações, com a necessidade ou intensidade das forças.
“Em suma, é a pintura que descobre a realidade material do corpo, com seu sistema de linhas-cores e seus órgão polivalente, o olho. Nosso olho incansável e no cio, dizia Gauguin. A  aventura da pintura é que somente o olho pôde se encarregar da existência material, da presença material: até mesmo para uma maça”(Deleuze).

Bibliografia: David Sylvester. ENTREVISTAS COM FRANCIS BACON /Gilles Deleuze.  FRANCIS BACON – LÓGICA DA SENSAÇÃO / Maurice Merleau-Ponty. O OLHO E O ESPÍRITO.