quinta-feira, 26 de março de 2009

OS ESPELHOS



"O que é um espelho? Não existe a palavra espelho — só espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos. — Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? Não são precisos muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem intensa e insistente adin-finitum, liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos, os reflexos dessa dura água. — O que é um espelho? Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. — Esse vazio crista¬lizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. — E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. De onde também voltaria vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho. — A sua forma não importa: nenhuma forma con¬segue circunscrevê-lo e alterá-lo, não existe espelho quadrangular ou circular: um pedaço mínimo é sempre o espelho todo: tira-se a sua moldura e ele cresce assim como a água se derrama. — O que é um espelho? é o único material inventado que é natural.
Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isencão de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para den¬tro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da pró¬pria imagem — então percebeu o seu mistério. Para isso há-de se surpreendê-lo sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha.
Devo ter precisado de minha própria delicadeza para não atravessá-lo com a própria imagem, pois espelho em que eu me veja sou eu, mas espelho vazio é que é o espelho vivo. Só uma pessoa muito delicada pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio, essa pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: Vi o espelho propriamente dito.
E descobri os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro alto bloco de gelo. Em outro instante, este muito raro — e é preciso ficar de espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para poder captar esse instan¬te — nesse instante consegui surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Depois, apenas com preto e branco, recapturei sua luminosidade arco-irisada c trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturei também, num arrepio de frio, uma de suas ver¬dades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso enten¬der a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água".
(Clarice Lispector)
Esse texto não é de minha autoria, mas sinto do fundo de minha alma que eu poderia te-lo escrito. Sei que ele fala sobre mim e para mim! Por isso digo sem orgulho ou modestia, que esse texto e tão dela quanto meu. Muito obrigado Clarice!!!