quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Feliz Natal


 Ele consumira o primeiro grama ainda em casa, no banheiro, depois do banho, enquanto se encarava no espelho e repetia para si mesmo, como uma forma de aumentar sua convicção, que esse ano ninguém iria faze-lo de palhaço na frente da família. Vestira seu  melhor terno, o que sua mulher lhe dera para os eventos sociais de fim de ano .Ela dizia que já não suportava mais ser vista pela família dele como uma suburbana emergente e sem classe, que não cuida bem do marido. Que por isso, agora fazia questão de desfilar com tudo do bom e do melhor que haviam conquistado, roupas, jóias, perfumes, mesmo que fosse só mentira. Aquelas bruacas fofoqueiras, dizia ela sobre as noras, iam ter que engolir a seco seu próprio veneno. E para completar o espírito natalino, havia comprado ótimos e caros presentes para mostrar a sua infinita generosidade a aquelas pessoas que ela sabia que não gostavam dela.
    A mulher de Ronaldo, Ines, carrega desde o casamento uma magoa enorme das noras e da sogra que fizeram de tudo para Ronaldo desistir, afirmando que ela não tinhas os dotes corretos para uma boa dona de casa, que não era uma mulher carinhosa para formar uma família feliz. Desde então se refere secretamente a elas como conspiradoras de brinco de pérolas, quando está somente na presença do marido. Por esse e outros motivos, envolvendo outras intrigas de festas natalinas passadas, para Ines é imperdoável nessa data tão bonita, demostrar qualquer tipo de fraqueza, dúvida, medo ou necessidades perto da gente da família de Ronaldo. A única missão dela nesse evento é mostrar como foi capaz de formar uma boa família, e o quanto é feliz. E para isso vale de tudo. Até dividir em cinco vezes um terno caro para o marido, e em oito vezes um colar e brincos para ela.
    Ronaldo, a mulher e as filhas chegam a casa do patriarca da família para a ceia de natal. O clima é sempre o mesmo, afabilidade falsas, elogios exagerados e risadas forçadas, tudo para disfarçar a natural tensão viva e pulsante no ambiente. Pois a família Braga  era também uma empresa, e por isso os irmão eram também sócios. Ronaldo por sua vez sempre achava que os irmãos mais novos tramavam para tirar-lhe parte da empresa, para roubar-lhe parte dos lucros. Esses fizeram faculdade na área de economia e administração, enquanto Ronaldo aprendera tudo sobre negócios com o pai e na prática, sem diploma nem nada. E apesar de se saber competente, sempre se sentia inferiorizado pelo falta do tal diploma, e sabia que os irmãos adoravam coloca-lo em situações constrangedoras frente ao pai, utilizando conceitos e jargões que ele desconhecia.  Ver os irmãos explicarem ao pai, como doutores que eram, sobre as atuais condições econômicas do Brasil, e falar sobre os investimentos na bolsa de valores, acendia em seu peito a inveja, que lhe ardia as entranhas.
    As mesas postas no jardim lateral da casa acomodavam os convidados, entre elas os garçons serviam bebidas e tira gostos antes da ceia. O pai e a mãe de Ronaldo eram pessoas simples, vindas do interior e já muito idosas para se preocuparem com requinte e luxo, mas para os irmãos e noras, isso era indispensável, o raciocino é mais ou menos o mesmo que o de Ines. Ronaldo transitava entre os diferentes núcleos da família para se mostrar presente, portando um grande copo de whisky, que lhe servia de apoio, uma espécie de  lubrificante social, um objeto fetiche. Participava ativamente com todo tipo de opinião e observação exdrúxula nas conversas maçantes dos parentes que só via uma vez por ano. Com os irmãos falava de negócios, uma conversa cansativa e exagerada, com gritos e gargalhadas, repleta de subtextos, induções, frases dúbias, acusações brincalhonas e ironias afiadas. Ronaldo sabia que cada evento familiar como o natal, era no fundo uma batalha cruel pelos elogios do patriarca da família, que não só deu-lhes a vida, como de uma forma ou de outra era o responsável por mante-la até os dias de hoje, afinal cada filho só tinha seu ganha pão por conta da empresa do velho. Ronaldo se incomodava com as máscaras, a dele não lhe caia bem, se sentia sempre na emergência de ser descoberto, acusado de falsário, corrupto, mentiroso, sovina. A tensão o sufocava, sabia bem que qualquer palavra mal calculada poderia criar desconforto, gerar fofocas ou mesmo discussões, como já acontecera em natais passados.
    Há três anos atrás, ele discutira feio com um dos irmãos, Cláudio, e quase que tudo acaba em barraco. A discussão começou de forma fútil, por um maço de cigarros, mas terminara em acusações e insultos. Se não fosse a bronca do pai, talvez até saísse na mão com  irmão. Em outro natal ainda mais antigo, mas marcado na memória, sua esposa se ofendera com uma piadinha feita por sua mãe, e o natal terminará mais cedo. Ines enfurecida  simplesmente recolheu as crianças  puxou-o pelo casaco e se retirou bruscamente  antes da ceia ser posta. Muita, paciência, tempo e hipocrisia foram necessárias para se criar essa película frágil de aparente confortabilidade e paz no natal.
    Ines depois de misturar vinho tinto  e calmantes, mantinha uma cara de paisagem e um sorriso frouxo em quanto ouvia as noras contarem vantagens de suas viagens internacionais.  E ora ou outra se enchia de entusiasmos para contar algumas pequenas mentiras sobre sua profissão ou de forma distraída degradar algum aspecto das histórias das outras.  Já Ronaldo se botava inquieto, nervoso, as vezes ouvia alguns tipos de comentários que o faziam delirar de ódio por dentro, não suportava a arrogância dos irmão e as patetices de sua esposas tagarelas e fúteis. O olhar do pai, sempre reprovador, ele trazia da infância, evitava qualquer confronto com o velho, sabia que frente a família qualquer discordância com ele poderia esmagar sua moral, e nenhum argumento seu, por mais racional que fosse seria considerado. Ele não teria chance, seria humilhado, por isso deveria evitar qualquer tipo de embate. Toda essa situação lhe desconfortava, ele bebia, fumava um cigarro após o outro. Sorria sem graça,  por dentro irado, com os comentários insistentes da mãe e das tias sobre sua compulsão com a nicotina, o cheiro ruim que deixa no seu cabelo, problema do câncer, e o mal que pode fazer as crianças. Sempre infantilizado como se fosse incapaz de tomar decisões coerentes. As vezes até fingia que não era com ele para não dar uma boa resposta. Mas o que  mais lhe incomodava esse ano, eram os comentários maldosos  as piadinhas ácidas, que lembravam um calote que ele tomou na compra de um terreno, e que lhe deu um prejuízo considerável, fora a vergonha de servir como exemplo de trouxa no mundo dos negócios.  Cada vez que ouvia uma dessas piadas sentia o suor escorrer-lhe da testa, e em sua cabeça imagens de violência brotavam como em um filme de ação. Quanto sentia os joelhos tremerem, disfarçadamente ia ao banheiro, e pelo nariz tragava mais um grama posta na chave do carro. Mesmo inibido tentava de todas as formas ser sociável e se fazer ouvir.
    A ceia é posta, e inicia-se a comilança desenfreada, a abundância da comida é pura  excentricidade, e o desperdício fenomenal. Em poucas horas a  noite termina em uma estranha normalidade, presentes são entregues,  cumprimentos de feliz natal ecoam pela noite, e reina a "pax romana" na casa. Ronaldo volta  a seu apartamento. Sua mulher deitasse meio bêbada, com cara de quem ficou satisfeita com  a bela execução da farsa, o figurino preparado para sua família e o cumprimento de seu papel de boa mãe e esposa contente. Ronaldo inquieto e angustiado, sem sono passa a noite assistindo o canal de compras, assombrado por estranhos fantasmas de sua má consciência.
    Na manhã seguinte acorda assustado, depois de dormir poucas horas um sono desassossegado, com os gritos insistentes de sua mulher reclamando que estavam atrasados. Sabe bem que quando a ceia é na casa de sua família, o almoço do dia seguinte tem de ser na casa da família da mulher. Ele então descontente, mas conformado  se prepara  como sempre, cheirando na pia do  banheiro, depois do banho, para mais uma etapa do natal feliz de sua família. E olhando fixo para o espelho, ironicamente cumprimenta-se dizendo; "feliz natal Ronaldo"!

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Arte de Protesto?

A arte em suas múltiplas funções sociais ao longo da história assumiu muitas vezes o papel de instrumento de protesto. Independente da linguagem adotada a arte pode sempre servir como uma forma de critica, seja na pintura, no desenho, na música ou na poesia, algo que mecha com as estruturas e valores de uma sociedade, que desconforte e faça pensar ou mesmo que escandalize.
    Exemplos históricos não nos falta. No inicio do século XIX  Daumier foi preso por ridicularizar o imperador francês com  sua caricatura Gargântua, no mesmo século e na mesma França décadas depois, Baudelaire foi multado e teve os exemplares de seu livro Flores do Mal apreendidos pela lei. A antiarte desenvolvida pelos Dadaísta no inicio do século XX  era tipicamente uma arte de protesto radical, que mais tarde foi herdada pelo movimento Fluxos, já na década de 60. A luta por liberdade dentro de uma sociedade burguesa e conservadora era o mote que movia a criatividade desses artistas revolucionários e rebeldes. Daí surgiam todos os tipos de afronta aos “bons costumes”, performances e happening eram os novos instrumentos de ação político-artística, feito em lugares públicos, o objetivo era afetar as pessoas diretamente, tira-las de sua aparente confortabilidade, chocar, chamar a atenção, invocar a dúvida e a critica. Não podemos esquecer do Brasil nesse contexto, em plena ditadura militar os artistas queriam mais é protestar, canções e peças teatrais tentavam levar a critica ao governo até o público.
    Mas frente a atual situação socio-política e artística do mundo globalizado a pergunta que surge ao se pensar em arte de protesto é, como faze-la? Em um contexto onde tudo se torna produto e moda, e onde em meio a diversidade, o conformismo e a quotidianidade as pessoas estão totalmente anestesiadas e preparadas para ignorar complemente qualquer coisa que aparentemente as desconforte ou simplesmente encara-las com uma normalidade mórbida. Hoje em dia a força das mídias se ampliaram tanto que mais do que nunca, guerras, misérias e atentados se tornaram reality shows que se pode ver enquanto se toma uma coca-cola no sofá. A enorme diversidade proposta pela globalização e distribuída  pela Internet  parece tornar tudo convencional. O grande paradoxo de nossos tempos é mesmo a globalização internetica, que torna a própria diversidade um padrão. Como protestar sem cair no clichê e ser absorvido pelo sistema onde tudo se torna mesmice?
    Na abertura de uma exposição em grande museu brasileiro, em meio ao coquetel com mesa de quitutes e vinho em um clima formal de artista, especialistas e estudantes de arte, uma mulher surge com cara de zangada, e sem pronunciar uma só palavra arranca rapidamente todas as vestes, se colocando nua, e num pulo sobe sobre a mesa de quitutes e começa a se lambuzar bizarramente neles. Ela chuta com certa ira os copos, pratos e bandejas, fazendo uma bagunça. Depois da cena de poucos minutos ela sai andando entre os convidados, que a pesar do aparente espanto continuaram a comer e beber e até esboçaram algumas palmas para a artista performance tão “ousada” e “rebelde” (assim como a boa e vela  juventude dos  anos 60 e 70!). As pessoas acharam que tudo foi só mais um show como os da TV! Os “intelectuais” e “artistas’ presentes acharam lindo a jovem artista se expressando! Os mais desenformados  apreciaram suas belas formas femininas e riram da bagunça! O que aconteceu com o protesto, com desconforto e com a critica?! Será que se tornou impossível em nossa sociedade tocar verdadeiramente as pessoas através da arte? Será impossível criticar as coisas sem parecer ou um fundamentalista radical ou um piegas? Será possível fazer alguma coisa realmente criativa em meio a massificação globalizada? Dentro das relações de poder que estratégias devemos tomar para não sermos engolidos pelo sistema, pela mesmice e pelo conformismo? Concerteza não podem ser as mesmas estratégias das décadas passas! A nostalgia de uma época de engajamento social tem levado a atual juventude a cair em clichês, não que hoje falte coisas a serem criticadas, o problema é que o mundo já não é bipolar, já não há vilão e herói, já não há ditadura (pelo menos não tão descarada como antes), e por isso a crítica na arte precisa ser refazer, e ser mais delicada e minuciosa do que foi em outras épocas. Por fim, a verdade é que a tal performance até chegou a chocar algumas pessoas, claro que não os convidados, que devidamente alimentados saíram como se nada tivesse acontecido, mas sim os garçons  que tiveram que limpar tudo e recolher todos os cacos de vidro do chão. Esses devem ter se queixado: “Os artistas fazem arte e a bagunça quem limpa é a gente!” 
  

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Nostalgia do não-Ser

As vezes ouso das profundezas obscuras do Ser, ecos de vozes do além, que ecoam clamando por tempos imemoriais, tempos antigos provindos de antes dos tempos, que reclamam a nostalgia do não Ser. De que falam esses espíritos estranhos e sem rosto, que brotam das rachaduras da existência como um antigo e inominável mal?  Como posso traduzir uma linguagem sem palavras de gritos sem som e desejos sem vontade?  Não sei o que são, mas sei que existem no fundo dos meus olhos e espreitam silenciosos os labirintos de minha alma insólita esperando a hora incerta e abstrata donde salta o Lobo. A saudade do que não foi, e do que um dia voltará. Saudade sem nome, sem encontro ou despedida. Saudade do insondável principio fim. O que existe antes da vida é o mesmo que depois dela?! É daí que vem minha mórbida saudade ancestral! Como uma parte tão minúscula pode desejar um Todo tão incompreensível que o olhar nem alcança? O outro lado do Ser me chama, mas como responder se minha memória curta perdeu o caminho de volta para Deus? ...
Não é a Morte que desejo, mas seu irmão de essência o Êxtase!

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Sobre a morte ou minha vida sem mim:



A morte é sem duvida um dos maiores medos humanos, ela traz a tona a percepção da temporalidade, da transitoriedade e da finitude da vida. Pensar na morte leva necessariamente a se perguntar de que vale realmente estar vivo. Mas é exatamente por estar intrinsecamente ligada ao problema da vida, que o problema da  morte é tão complexo e paradoxal. Ambos os termos são correlativos e inseparáveis, são opostos complementares, não se pode pensar uma coisa sem pensar a outra, mesmo que indiretamente.  A forma como  interpretamos a morte influencia a forma como interpretamos a vida e vice e versa. E por isso, me parece que esse duplo problema da vida e da morte é no fundo a origem e a finalidade de todo o conhecimento, de toda a filosofia, de toda a ciência, de toda a espiritualidade e de toda a arte. Pois parece que de uma forma ou de outra, tudo que o homem cria esta impregnado de vontade de tentar resolver esse problema, de tentar provar para nós mesmo que a vida pode vir a ter algum valor positivo mesmo frente a inviabilidade da morte.     
    O filme de  Isabel Coixet, intitulado “Minha Vida Sem Mim” é mais uma das inumeráveis obras de arte que abordam essa problemática como ponto central de sua trama. O titulo do filme, sagaz e sugestivo, até carregado de um certo tom de humor negro, é na verdade o resumo do argumento filosófico  desenvolvido através da narração da história de Ann. Uma jovem mãe de família, com uma vida cotidiana atarefada e cheia de responsabilidades ante o marido e as duas filhas pequenas, morando no quintal da casa da mãe e trabalhando como faxineira,  levando assim uma vida dura e simples, mas que ainda guardava uma última revelação trágica do destino. Ann com apenas 23 anos descobre de repente que tem um câncer que a matará em mais ou menos 3 meses. Toda a história se desdobra sobre os resultados dessa triste revelação na vida de Ann. Descobrir a própria morte, e é engraçado falar assim pois a morte é nossa única certeza absoluta, provoca modificações profundas na postura, nas escolhas e nos valores de Ann. Aparentemente nada muda nas praticas cotidianas da garota, ela continua dedicada ao trabalho e a família, o que mudam são os valores que guiam essas praticas e sua postura ética frente a vida.
    De um filme como esse, que trata de um tema tão profundo, pode-se tirar muitas interpretações, muitas discussões. Pretendo analisar alguns das atitudes tomadas por Ann frente a morte, e assim tentar esclarecer a opinião expressada pela diretora do filme, pensando a morte (e portanto na vida) de uma forma serena e realista, mas sem negar-lhe a beleza trágica e melancólica. Primeiramente, Ann decide não contar seu drama para ninguém. Essa atitude que superficialmente pode ser vista pelo prisma de um certo egoísmo ou mesmo conformismo, ganha na minha opinião um  tom diferente, quase épico.  Me parece que a morte nos garante uma referencia solida para valorarmos a vida, exatamente porque sabemos que ela sempre chega uma hora e que é inevitável. Dessa forma, podemos chegar a algumas conclusões lógicas. Se a vida é finita devemos dar a ela prioridades, valores distintos a nossos desejos e escolhas, e se o tempo urge, isso nos obriga a cada vez mais tentar resumir a vida as coisas mais necessárias e essenciais, a se desfazer de toda futilidade, a dispensar tudo que pode ser dispensado, a simplificar tudo que pode ser simplificado, a buscar a vida menor de que fala a poesia de Drummond. Em uma cena do filme, a personagem faz compras em um shopping enquanto pensa consigo mesma: “ tudo aqui serve para nos afastar da morte, aqui ninguém esta pensado na morte”. Ao enfrentar sua preparação para a morte ( o que teoricamente todos nós deveríamos fazer a cada dia), Ann percebe como as pessoas gostam de se iludir para fingir que a morte não existe, ou que esta muito distante, é uma forma corriqueira de fugirmos ao desespero e ao pavor. O silêncio de Ann parece refletir uma postura estóica e altiva, pois a morte nos leva a nos depararmos mesmo com a solidão, que não pode ser negada se não aceita, ela parece querer evitar toda e qualquer tipo de perda de tempo, como lamentações, preocupações e sofrimento antecipados e desnecessários, pois em nada podem mudar a realidade da morte. Há nisso também uma forte  dose de generosidade, pois a partir  do momento que nos convencemos de que a morte vem para todos, não há porque afligirmos os outros com nossa morte, pois eles terão a deles. Essa generosidade se mistura a uma certa doçura de espírito da personagem, ela controla o próprio medo e desespero da morte  para poupar os outros de sofrimentos inúteis, assim ela aceita corajosamente o caminho solitário e doloroso de sua própria liberdade. 
     Alavancada de sua vida cotidiana onde tudo parecia muito solido e certo, Ann passa a ver as coisas de uma perspectiva mais ampla, isso leva-a a mudar seus valores. Sua primeira atitude é escrever em um caderno as coisas que ela quer fazer antes de morrer. Analisarei três dessas coisas que me parecem ter uma grande importância simbólica no filme. A primeira é gravar fitas de aniversário para suas  filhas até os dezoito anos e para outras pessoas próximas (seu marido, sua mãe, seu amante). Por traz dessa delicada, atenciosa e  singela atitude existe uma ética de afirmação da vida. E é ai que aparece claramente a sugestão vinda do titulo. Ann descobriu e aceitou que a vida continuara sem ela, que tudo continuara funcionando como sempre funcionou mesmo sem ela estar por aqui. As fitas simbolizam uma afirmação da vida, pois Ann demostra com elas que se importa com a vida mesmo depois que morrer, que se importa mesmo sabendo que sem ela tudo continuará, e por isso quer deixar algo para as pessoas que  ama, e que sabe que terão de continuar a viver sem ela.    
    Outro ponto em sua lista de coisas a fazer antes de morrer, era reencontrar seu pai que a anos ela não via porque estava preso em uma penitenciaria.  Falo sobre esse ponto porque imagino que normalmente se pensa que ao nos depararmos com a morte certa, passamos a  nos importar só com o presente, com o instante agora, não acredito que seja bem assim. Na verdade parece que a morte pode provar o quanto a vida é inútil, porém do ponto de vista contrario ela também pode provar que a vida é sagrada e única e por isso dentro dela tudo é valido, tudo deve ser aproveitado, pois bem ou mal tudo acabará por fim. Ann seguindo a segunda interpretação, busca o reencontro com o pai como uma forma de redimir o passado aceitando até mesmo a ausência do pai, mais uma forma de se valorizar a vida, de aceitar mesmo as coisas ruins que a vida lhe proporciona, como um pai bandido  e indiferente. Afinal de contas a vida continuara sem ela, e não há motivo para permitir magoas ou ressentimentos tolos de coisas passadas.
    Por ultimo destaco da lista de Ann o desejo que ela tinha de se apaixonar novamente, e isso não tem nada haver com traição, pois ela demostrava amar muito o marido, mas isso é diferente de paixão. A paixão é como o calor inicial que acende o amor, é um impulso primário poderoso e desconcertante, intenso e inexplicável racionalmente. É o que nos lança ao desconhecido (Outro), ao estranho, a descoberta de si mesmo no outro, a revelação da identidade dentro da diferença. Mesmo amando o marido Ann quer sentir uma ultima vez o impacto da paixão, pois somente esse sentimento parece, mesmo que por um breve instante, destruir o abismo que separa os sujeitos dando a sensação de que podemos ser um só ser, de que realmente podemos compartilhar com o próximo algo de verdadeiro e real, mesmo que intangível e indizível.
    O filme apesar do clima dramático é levemente romanceado por uma serie de coincidências que ajudam Ann a cumprir com seu desejos antes de morrer. Isso juntamente com a personalidade doce, quase infantil de Ann, e sua resignada melancolia, pintam o tema pesado e desconfortante do filme com uma leve tom  poético, triste porém esperançoso. O que até me faz lembrar de uma máxima nietzscheana que diz que devemos afirmar a vida mesmo em seus aspectos mais tenebrosos. Haverá aspecto mais tenebroso na vida que seu fim? “ Minha Vida Sem Mim”, é um exemplo de que para aceitarmos a vida temos de aceitar a morte. Como diz Epicuro: “ Não existe nada de terrível na vida para quem esta perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver”.  O filme consegue ser emocionante, sem ser piegas, sensível, sem ser bobo, profundamente filosófico sem ser excessivamente serio, além de ter uma linda trilha sonora.  E principalmente, por ele  levar inevitavelmente as  lágrimas, mas  não pela vida que a jovem Ann vai perder, mas pela vida que ela soube encontrar.

sábado, 18 de setembro de 2010

Não exijo nada de ninguém, aceito de bom grado o que me vem, e desprezo tudo que me falta.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Figura e Corpo


Para refletir  sobre processo criativo de Francis Bacon, mediados  pela analise de Deleuze, e ao mesmo tempo relaciona-lo a problemas da estética contemporânea que me chamam atenção,  acredito que devemos começar pelo inicio do processo, o que Deleuze chamou de, “a pintura antes de pintar...” O que isso quer dizer? É ilusão acreditar que o pintor pinta por sobre uma tela em branco, a tela nunca esta em branco afirma o filosofo. Ela esta sempre repleta de imagens virtuais, provindas de toda a história da arte, de toda a cultura, de todas as imagens que vagueiam na mente do pintor, que se mostram ao seu redor, na cidade, no ateliê. A isso chama-se de clichê, imagens pré-concebidas  que geram percepções pré-frabricadas. Se levarmos em conta as condições atuais das técnicas de produção e reprodução de imagens, perceberemos que   em nenhum outra período da humanidade nossos olhos estiveram tão sobrecarregados de cores, formas, e informações. Basta pensarmos na televisão com suas muitas propagandas, na Internet, nas revistas, nos outdoors, vitrines de shoppings, panfletos, a febre consumista de máquinas digitais fotográficas e de vídeo, tudo isso gerou um universo visual amplo e poluído. Cabe frente a tal banalizarão das imagens a pergunta; como a pintura, uma arte essencialmente visual, reage a esse realidade? A tentativa para um possível reposta a essa questão, tão cara a atualidade de Bacon quanto a nossa, me parece estar ligada ao entendimento de como Bacon constrói suas Figuras, seguindo um caminho oposto ao do Abstracionismo e do Expressionismo abstrato, mais próximo a proposta de Cézzane da constante luta contra os clichês, da pintura da sensação.
    O processo criativo de Bacon inicia-se com a limpeza da tela dos clichês, para isso ele se serve de marcas livres, traços-linhas e manchas-cores, postos aleatoriamente por sobre a tela para destruir a figuração nascente e permitir o nascimento da Figura. Essas marcas não-represetativas que só dizem respeito a mão do pintor, surgem ao acaso, mas não um acaso inútil, mas sim um acaso manipulável, um acaso que aponta para possibilidades, que gera sugestões.
“Ora, é na manipulação, quer dizer, na reação das marcas manuais sobre o conjunto visual que o acaso torna-se pictural ou se integra ao ato de pintura. Daí a obstinação de Bacon, apesar da incompreensão de seus interlocutores, em lembrar que só existe acaso manipulado e acidente utilizado” (Deleuze) .
    A esse processo pré-pintura se deu o nome de diagrama, uma espécie de esboço inicial, onde o pintor se permite ao irracional, ao inconsciente, ao gesto puramente manual, a livre expressão do que ainda não tem forma ou nome , do que libertará a Figura da figuração, da narração e da ilustração, o impacto da sensação na carne, no corpo. A partir desse ponto podemos pensar no como Bacon cria uma via própria para o problema da não figuração. Ele recusa o puro código pictural dos abstracionistas, que é para ele deveras cerebral, e ainda corre o risco de se tornar uma simples codificação simbólica do figurativo. Recusa também a total irracionalidade dos expressionistas abstratos, que faziam o que Deleuze chamou de pintuira-catástrofe ou pintura-diagrama. Nesse caso o diagrama acaba por tomar conta de toda a tela e se tornando a própria pintura, de certa forma a sensação é atingida, mas permanece em um estado de confusão. Bacon afirma a importância do diagrama, mas também a importância de se controlar o diagrama e mante-lo em uma certa região do quadro, utiliza-lo em certos momentos da pintura.
“O diagrama é uma possibilidade de fato, e não o fato em si mesmo. Nem todos os dados figurativos devem desaparecer, e, sobretudo, uma nova figuração,  a da Figura, deve surgir do diagrama, conduzindo a sensação ao claro e ao preciso”(Deleuze) .  
    Frente ao entendimento do diagrama como técnica, processo ou instrumento de pintura, podemos agora pensar melhor na luta contra os clichês no atual contexto da banalização da imagem. Me parece que a pintura de Bacon é uma reação, consciente ou inconsciente,  a tal banalização. Interpreto como uma resposta da pintura a uma sociedade do espetáculo, que cada vez mais utiliza-se da imagem como uma fachada para discursos indutivos que de uma forma ou de outra estão comprometido ideologicamente e economicamente com o consumo. A propaganda, a publicidade, o marketing, se serviram largamente dos estudos de linguagem desenvolvidos pelas vanguardas artísticas da modernidade em prol de interesses distintos. Por isso é fácil  encontrar hoje propagandas de TV que são quase filmes de Spielberg,  vitrines de lojas que são quase instalações fotográficas, outdoors que em perspectiva  parecem falar diretamente para você. Toda essa nova manipulação das imagens para fins objetivos dissimulados, produz diversas resposta de artistas que também trabalhem com imagens. Respostas não só no sentido de ir contra ou negar, mas também  resposta no sentido de  interação, de  reverberação de efeitos, de exploração de novas áreas descobertas.


Um dos pontos centrais na produção de Bacon que levanta interessantes questões, é sua visão sobre o corpo, suas formas de interpretar esteticamente o corpo humano em pintura. O corpo é a Figura, o corpo apreendido em sua crueza, em sua essência animal, como massa de carne sangüínea e nervosa, viva e pulsante, como nossa ligação intrínseca com a natureza, ou na definição de Deleuze, nosso devir-animal.  Bacon como retratista não pinta rostos, o rosto é a organização de expressões em uma definição espacial, ele pinta cabeças, como sendo parte integrante do corpo. “...a pintura de Bacon constitui uma zona de indiscernibilidade, de indecidibilidade entre o homem e o animal” (Deleuze). Talvez seja exatamente essa fato apontado por Deleuze que gera um forte estranhamento nas obras de Bacon, a dificuldade criada de se distinguir até onde o que se vê  é um corpo humano ou um simples carcaça animal. Um tema recorrente nas pinturas de Bacon é a crucificação, exatamente porque ela mostra a carnalidade do corpo, é no corpo que o “fato” se concretiza, que a sensação se prolifera, é no corpo que parece se revelar ao pintor o drama da vida, latente porém sempre rumo a morte. “Sempre fui muito tocado pelas imagens de abatedouros e de viandas, e  para mim elas estão estreitamente ligado a tudo que é Crucificação ... É claro, nós somos viandas, somos carcaças em potencial. Se eu vou a um açougue, sempre me surpreende não estar lá, no lugar do animal”(Entrevitsa com Bacon) . O tema da crucificação se desenvolve em Bacon entre o tom espiritual e o profano.
    Em sua busca pela sensação, que se da pelo corpo e no corpo, Bacon segue os rumos abertos por Cézanne, este dizia que a natureza está no interior, o corpo assim se torna chave para o Ser das coisas.
“A lição de Cézanne vai além dos impressionistas: não é no jogo livre ou desencarnado da luz e da cor (impressões) que está a Sensação, mas no corpo, mesmo que no corpo de uma maça. A cor está no corpo, a sensação, está no corpo, e não no ar. A sensação é o que é pintado. O que está pintado no quadro é o corpo, não enquanto representado como objeto, mas enquanto vivido como experimentado determinada sensação”(Deleuze) .
    Se considerarmos a arte associada a outros campos de conhecimento como sendo uma espécie de  metáfora epistemológica da sociedade, podemos dizer que a interpretação de Bacon sobre o corpo vem de certa forma de uma problemática fenomenológica sobre o assunto. Merleau-Ponty explora bem o tema em sua ontologia da pintura, quebrando a dicotomia sujeito objeto, mostrando o corpo como ponto de partida para todas as nossas percepções do mundo, negando-lhe a interpretação de ser só mais um   objeto frio entre outros, mero instrumento ou máquina, ele afirma o corpo como sendo nossa verdadeira ponte dos sentidos para o Ser do mundo, é com ele e por ele que  o mundo dos fenômenos se abre para nós, e nós nos postamos junto dele.  Para Merleau-Ponty a pintura sempre buscou desvelar o visível no invisível, e esse enigma esta ligado ao fato de nosso corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível, é como se pudéssemos ver as coisas por fora, mas também senti-las por dentro.
“Visível e móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está preso no tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas, dado que vê e se move, ele mantém as coisas em círculos a seu redor, elas são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo mesmo do corpo”(M.Merleau-Ponty)  .
    É mais ou menos isso que Bacon busca, perceber os objetos e corpos em sua materialidade, em sua carnalidade e imanência, libertar as forças que se escondem no invisível, mas por dentro. É isso que seria o que Deleuze chama de pintar as forças. Forças essas que agem constantemente sobre nosso corpo, forças de deformação, contração e expansão, tensão, pressão, dissipação, temperatura, estiramento etc. A grande problemática perseguida por Bacon é como transmitir essas forças para uma tela mantendo nelas a vivacidade quase explosiva que elas tem no corpo?


“Quando o corpo visível enfrenta, como um lutador, as potências do invisível, ele apenas lhes dá sua visibilidade. É nessa visibilidade que o corpo luta ativamente, afirma uma possibilidade de triunfar que não possuía enquanto essas forças permaneciam invisíveis no interior de um espetáculo que nos privava de nossas forças e nos desviava”(Deleuze) .
    A sensação é o impulso gerado pelo contado do corpo com os objetos (seja lá qual for o tipo de contato), ela reverbera pelo corpo como em ondas, assumindo diferentes níveis, ordens, domínios, formando seqüências moventes.  Por isso as figuras de Bacon ora se contraem ora se expandem, a sensação é mestra em deformação, a sensação captada da ao quadro uma espécie de movimento estático, sabemos que a figura está parada, mas seu corpo vibra retorcendo-se, como se quisesse escapar de si mesmo.
“Cada quadro, cada Figura, é uma seqüência movente ou uma série. Cada sensação está em diversos níveis, em diferentes ordens ou em vários domínios. De modo que não há sensação de diferentes ordens, mas diferentes ordens de uma mesma sensação. É próprio da sensação envolver uma diferença de nível constitutiva, uma pluralidade de domínios constituintes”(Deleuze) .
    Mas Bacon parece ir além das questões fenomenológicas, querendo revelar uma dimensão mais profunda obscura, caótica e violenta da sensação no corpo. Daí o corpo passa  a não ser mais entendido como organismo, partes distintas e determinadas que formam um todo, mas sim como um órgão em si, indeterminado e cheio de potencialidades para transformação. Deleuze então surge com o conceito do “corpo sem orgãos”, retirado  de Artaud. O corpo massa disforme de carne e nervo, propicia a deformações provocado pela onda de sensações que vibram provocadas pelas forças que agem sobre nós. Não faltam orgãos ao “corpo sem orgãos”, mas sim organismo, os possíveis orgãos surgem de acordo com as sensações, com a necessidade ou intensidade das forças.
“Em suma, é a pintura que descobre a realidade material do corpo, com seu sistema de linhas-cores e seus órgão polivalente, o olho. Nosso olho incansável e no cio, dizia Gauguin. A  aventura da pintura é que somente o olho pôde se encarregar da existência material, da presença material: até mesmo para uma maça”(Deleuze).

Bibliografia: David Sylvester. ENTREVISTAS COM FRANCIS BACON /Gilles Deleuze.  FRANCIS BACON – LÓGICA DA SENSAÇÃO / Maurice Merleau-Ponty. O OLHO E O ESPÍRITO.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

A verdadeira filosofia busca o cru da vida mas não se contenta com ele

     A filosofia moderna ocidental no auge de seu pensamento racional, que traz uma fria lucidez, encontrou seu extremo oposto e complementar, o irracional. Em sua busca pela essência da vida, a filosofia descobriu que a existência humana, fora a parte originalmente animal,  é repleta de mentiras, farsas, ilusões, representações, que mesmo surgindo do contato direto com os fenômenos da realidade nunca poderá captura-la ou explica-la complemente. A consciência humana, nosso principal instrumento de sobrevivência ante a Natureza, tem como maior força sua capacidade de dissimulação e de invenção, ela é para nós como os chifres do touro ou as garras do leão. Assim sendo,  fundamentalmente a humanidade independente do contexto social, histórico e cultural, nunca passou de um grande formigueiro frente ao universo. Somos meros pedaços de carne boiando no caos, micro organismos astutos que sobrevivem mesmo na constante imanência da sublevação das forças da Natureza, que em um suspiro pode nos destruir, apesar das ilusões de controle e soberania que o alto desenvolvimento tecnológico tem nos provocado nos últimos tempos. A existência humana é portanto, gratuita, inútil e complemente desprovida de objetivo ou valores próprios. Um dos filósofos mais intempestivos da história do ocidente afirma em um aforismo que, o erro  acerca da vida é necessário à vida, assim  diz ele: “Toda crença no valor e na dignidade da vida se baseia num pensar inexato; é possível somente porque a empatia com a vida e o sofrimento universais da humanidade é pouco desenvolvido no indivíduo(...) Quem sabe ter em mira sobretudo as exceções, quero dizer, os talentos superiores e as almas puras, quem toma o seu surgimento como objetivo de toda a evolução do mundo e se alegra com seu agir, pode acreditar no valor da vida, porque não enxerga os outros homens; portanto, pensa inexatamente. Do mesmo modo  quem considera todos os homens, mas neles admite apenas um gênero de impulsos, os menos egoístas, desculpando os homens no que toca aos outros impulsos: pode também esperar alguma coisa da humanidade como um todo, e assim acreditar no valor da vida: portanto, também nesse caso por inexatidão do pensar(...) pois no conjunto a humanidade não tem destino nenhum, e por isso, considerando todo o seu percurso, o homem não pode nela encontrar consolo e apoio , mas sim desespero.  Se ele vê, em tudo o que faz, a falta de objetivo último dos homens, seu próprio agir assume a seus olhos caráter de desperdício” (Nietzsche). Esse em fim, é o cru da vida!
    O rumo tomado por essa forma de pensar pode levar homens lúcidos demais ao desespero, ao niilismo e a mais profunda melancolia, o desperdício de suas ações é inaceitável a sua sensibilidade. E ai que a filosofia inconformada com os resultados do pensamento racional, ultrapassa suas barreiras, alia-se ao devaneio e ao sonho,  fundindo-se a poesia, não mais contendo-se ao exercício especulativo e tornando-se ato criador . Só ai que a vida, esse fenômeno efêmero e vazio, pode vir a ganhar algum valor, ético, estético e poético, tornando-nos pouco mais que bichos, pouco menos que deuses, somos Humanos, e a vida é nossa criação, nossa arte, nosso jogo, nosso brinquedo. E parafraseando o filósofo já citado, digo que a arte serve para tornar a vida suportável, pois a sensibilidade humana não pode concordar sem protestos com o terrível e avassalador destino dos seres.
 

terça-feira, 10 de agosto de 2010

O Outro


Quem sou eu? Corpo, alma, sonho, desejo, ou simplesmente um reflexo tênue  no fundo dos olhos alheios? Sou eu o desacordo entre o que penso e o que sinto, ou o que pensão e sentem de mim?
Minha pífia personalidade é como uma sombra por sobre a desfalecente luz do crepúsculo, que a qualquer momento pode desaparecer deixando o Vazio que ecoa no silêncio da noite obscura e profunda...  
Quem sou eu se não o Outro? Meu oposto semelhante, que me exige e assombra. Prova material de minha existência externa, espelho que me revela, opaco, translúcido ou invisível, que me encanta e aterroriza como o canto de sereias que esconde o naufrágio.
O que querem de mim os olhos vorazes que me cobram, as bocas sedentas que me invocam, as mãos impiedosas que me agarram e repelem?
O que são essas sombras que me povoam, esses reflexos disformes, essas imagens inconsistentes? Serão simulacros do meu pequeno e insípido Ser, ou do grande Ser do mundo, fantasmas da imaginação, cacos de memórias perdias, Tempo compactado ou disperso? Tudo o que não sei, tudo o  que busco desesperadamente saber!
Quem é o Outro? O que quer ele de mim?! ...O que quer...ele? de mim...

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Os tempos da melancolia


    É comum no mundo da arte, encontramos pintores ou poetas que sofrem desse antigo mal do espírito, a melancolia. Ou será ela um estado excepcional de sensibilidade que enriquece a produção artística? A palavra melancolia se associa facilmente a tristeza, apatia, tédio, desalento, meditação, morte, mas afinal o que é esse sentimento misterioso, como ele se deu na história dos homens, como ele se da hoje?
    As teorias pré-modernas ou pré-freudianas que tratam da melancolia a definiam como uma espécie de mal-estar que denunciava o desajuste de alguns membros de uma determinada sociedade as condições do laço social. O melancólico da Antigüidade até o Romantismo  era representado como alguém que perdeu seu lugar frente a sua  versão imaginário do Outro. Consumido em ruminações, arrependimentos, dúvidas e investigações, o melancólico se sente deslocado de seu mundo e de seus semelhantes, e busca uma solução para o enigma do que o Outro espera dele.
    Na Antigüidade, Hipócrates atribuía o caráter excepcional do melancólico ao excesso de bile negra, responsável pela predominância dos ventos sobre outros elementos que compõem o corpo (teoria dos 4 humores). Isso explicava a inconstância, o abatimento e a predisposição a “sair de si”  que apresentava o melancólico. Para Aristóteles todos os homens que exceleram em qualquer domínio eram melancólicos. Ocorre que pela volubilidade do caráter do melancólico, sua capacidade de “tornar-se outro”, que predispõem à arte poética por seu talento para a mímese, faz  dele um indivíduo instável, que oscila perigosamente entre a genialidade e a loucura  (estados da alma  que só se diferenciam por grau).
    Na Idade Média a melancolia associava-se ao pecado capital da acídia, mais tarde substituída pela preguiça. Para Tomás de Aquino a acídia era o enfraquecimento da vontade o que prejudicava a resistência do  homem diante das tentações do diabo.
    Só no Renascimento a melancolia readquire um certo prestigio. De acordo com o pensamento antropocentrico, o homem era convidado a encontrar em si mesmo a medida de suas próprias escolhas e construir seu lugar no universo. A melancolia vinha então da angústia diante da escolha e da descoberta de si. Ao mesmo tempo o desenvolvimento científico do período  renascentista levou a um desencantamento do mundo e a um ceticismo agudo que também pode levar ao abatimento melancólico do homem que busca resposta sobre o universo, mas não as encontra.
    No Romantismo o sentimento de melancolia atinge seu auge, pois era o próprio símbolo da genialidade e sensibilidade romântica.  Visto também como uma desarmonia entre o homem e o mundo, desta vez voltado para a perda de uma união idílica com a natureza e a eterna busca por completude amorosa com Outro. 
    Enfim na Modernidade a melancolia assume a imagem do poeta Charles Baudelaire, que em suas poesias intituladas “Spleen” denunciava o tédio e o vazio da vida burguesa nas grandes metrópoles industriais, o isolamento em meio as multidões, o individualismo e a perda dos laços sociais. Parente da doce melancolia romântica, o spleen  conjuga gozo e desencanto, misantropia e gosto estético pelo mal. Somente depois das teorias de Freud é que a melancolia passou a ser vista como um distúrbio psíquico ligado ao complexo de castração, afastando-se de vez das representações ligadas ao sublime e a genialidade. Hoje a melancolia é associada a depressão, entre doença e sintoma social, o que se sabe é que sua ocorrência tem crescido e que as tentativas de combate-la também, criando-se envolta do tema um grande mercado de consumo, desde livros de auto-ajuda, religiões de todos os tipos, antigas ou recentes e medicamentos e terapias.
    Destaco duas questões que me intrigam sobre a melancolia. A primeira retoma a proposta estética de Baudelaire, presente em Flores do Mal. Assim dizia o poeta em seu prefácio: “Há muito já que poetas ilustres partilharam entre si as províncias mais floridas do domínio poético. Pareceu-me divertido, e tanto mais agradável quanto mais difícil era a tarefa, extrair a beleza do Mal” Enfim perdura a questão, o mal, o melancólico, o tenebroso, podem ser fontes do belo? A resposta e sem duvida difícil e polemica, e por isso tal reflexão nunca se esgota com o tempo, ao contrario, enriquece-se com seu passar. Quanto a mim encontrei o que necessitava nas páginas de Baudelaire! E sempre que torno a le-las sinto todo meu mal se transmutar.
    A segunda  questão é uma problemática mais contemporânea, e de cunho sociológico, que envolve a nossa forma de lidar com o tempo e nossa busca desesperada pela felicidade. Em uma sociedade do espetáculo e do consumo, onde o que predomina é o imperativo do gozo, do prazer intenso e instantâneo, da felicidade proposta em cada propaganda de TV e compacta em cada mercadoria banal, ainda há espaço para se sentir melancólico, ou tudo que se relaciona a tristeza é visto como anomalia e deve ser extirpado o quanto antes com drogas antidepressivas? O homem contemporâneo em seu regime industrial de alta produtividade e sua febre consumista terá ainda tempo para pensar nas tristezas da vida, nas perdas , e na morte, ou mesmo  para se questionar no que consiste a   verdadeira felicidade? Antes de tudo o tempo do melancólico, seja em qualquer época, é um tempo muito mais lento e subjetivo do que o tempo do relógio e do trabalho, será que podemos nos dispor desse tempo dos dias de hoje?

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O soberano

Um dia desses qualquer, sentei-me em um boteco desses que ficam na parte de traz da comercial das superquadras. Era um lugar pequeno, simples e com um estética undergroud de abandono e imundice. Porém, as mesas postas em baixo de uma marquise, ficavam de frente para a uma área bucólica, um grande jardim repleto de belas arvores, o que criava uma paisagem calma e agradável. Poucas mesas estavam ocupadas, de um lado um casal, do outro um grupo de velhinhos jogando cartas, mas não pude deixar de reparar em uma mesa ao fundo, no canto, a figura de um homem sentado sozinho. Era um senhor de barba grisalha, grandes óculos quadrados e uma boina tipo francesa.  Em cima de sua mesa uma garrafa de cerveja e um copo com uma generosa dose de cachaça, de cor amarelo escuro como um veneno forte. O homem fumava um cigarro como se fosse um imortal para quem o tempo não existe. As longas e profundas tragadas que cobriam seu semblante de fumaça dando-lhe um ar misterioso, denunciavam o prazer e a dedicação a ação. Os olhos por de traz das lentes pareciam dois peixinhos dourados perdidos em um aquário. Ele mirava resignado o Nada, e voltava toda a sua atenção para o além do além, para o vago, o abstrato. Tudo ao seu redor eram inúteis banalidades, e sua solidão parecia infinita. A face rija não transparecia paixão ou desespero. O homem era pura melancolia. E imerso nessa melancolia ele parecia um soberano, altivo, nobre e intocável, como se nada nem ninguém pudesse abalar seu humor introspectivo. Ele ergueu como que uma torre de marfim, e isolado nas alturas observava o mundo dos homens como se fosse um enorme formigueiro, tão belo quanto insignificante.
    Não sei dizer bem o porque, mas não conseguia parar de olha-lo, algo em sua imagem invocava em minha alma sentimentos obscuros, enigmáticos, insondáveis. Ao contrario do que se pode pensar, sua brutal indiferença a tudo  não me dava a impressão de prepotência, mas sim de um recolhimento integro e sensível, de quem corajosamente encara de frente suas tristezas e coroa sua fragilidade como o que há de mais humano, diferentemente do que o mundo hoje prega. Isso despertou em mim uma profunda compaixão, mas compaixão não no  sentido de piedade, pois em sua imensa dignidade ele não merecia isso, mas sim compaixão no sentido de identificação com a dor alheia, como quem reconhece um irmão de sofrimento. Pois na verdade todos sofremos de uma forma ou de outra, a diferença é que para uns isso é como uma chaga que deve ser coberta, escondida, ignorada, renegada, para outros mais sóbrios sobre a existência, o sofrimento é um preço a ser pago inevitavelmente por se ter uma vida sensível, um mal que não impede que dele brotem flores. Por um instante pensei em aborda-lo, quem sabe dizer-lhe algo ou apenas cumprimenta-lo, mas não. Preferi o silêncio que poupa da tolice. Há coisas que devem ser guardas em segredo, no fundo dos olhos, para preservarem sua beleza rara. Como as bolas de sabão, delicadas a visão e avessas ao toque.
    Em verdade, devo dizer que tudo que vi despretensiosamente naquele velho homem singelo, não poderia ter visto se não fosse tudo um reflexo de mim mesmo.

terça-feira, 13 de julho de 2010

O lugar da Arte

Convenço-me não sem duvidar, de que a Arte é a única coisa que pode preencher o imenso vazio que sinto em meu peito. Vazio esse que nasce dos primórdios da origem do Desejo. A Arte em seu sentido metafísico, diretamente ligado a condição humana, aliada da consciência em sua missão de dissimular a vida, e ao mesmo tempo da inconsciência em sua missão de guardar os mistérios da vida.  Somente ela pode realmente acalentar  meu coração, aquecer minha alma e incitar-me a mover, a fazer, a criar. A dar valor as coisas externas por saber que no fundo as coisas em si não tem valor nenhum, que a vida, esse presente grandioso e irônico dos Deuses, é na verdade gratuita e inútil. E só resta sonhar, cultivar ilusões, que  nunca são totalmente falsas, pois sempre carregam um dose de verdade e realidade. A arte que externaliza o interno e internaliza o externo em um constante processo dialético entre o indivíduo e seu mundo, transformando  para o homem o universo estranho e hostil, em  seu infinito particular. A Arte antídoto contra o Desespero, manto da beleza que cobre o horror da Morte, palavra iluminada contra a escuridão do Nada. Assim entendo a Arte, e como diz o poeta; “a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver”.
    Cabe a um homem sóbrio dedicar-se a uma atividade inútil, e sabendo-a inútil pratica-la com amor e sem pesar, como se nada mais importasse (e não importa!). Nisso consiste a saga do artista, seja qual for sua arte, cientista ou pintor, agricultor, pedreiro ou operário, gênio, louco ou comum, pois no fundo toda atividade essencialmente humana é a principio artística, porque tudo que se faz com Verdade se faz com Arte, e a verdade é a arte de bem mentir.
     Assim sendo, porque não enganar-me?  Fazendo da minha vida uma pintura, opera ou filme, onde eu finja ser grande poeta, e tal como um ator esquizofrênico que entalha as próprias máscaras, representar a tragédia de minha existência, mesmo que eu seja o único espectador solitário de mim mesmo, mesmo que minhas palavras nunca saiam desse quarto, nunca encontrem a luz do sol da realidade, nunca soem aos ouvidos de gente.  Queria que todo o meu Medo, Solidão, Angustia e Melancolia, explodisse em Beleza eterna e vingadora!

sábado, 5 de junho de 2010

A poética do espaço de Van Gogh


O quarto é pequeno, estreito e simples, desprovido de qualquer tipo de ornamento espalhafatoso que chame a atenção ou se destaque de seu contexto. Os poucos móveis e objetos parecem cada um ocupar seu devido lugar, inertes na eternidade. Os quadros postos na parece por sobre a cama demonstram um cuidado singelo e significativo a estética de um espaço que se propõem aprazível, mesmo sendo rústico. Em um deles, na cabeceira da cama, se vê uma paisagem campestre calma e reconfortante, com destaque central a uma arvore, talvez uma oliveira.  Em outros dois quadros se vê o retrato de um homem de barba e cabelos ruivos e uma mulher loira. Quem sabe sejam um casal de amantes, esposo e esposa, ou talvez uma lembrança de um amor perdido, alguém que partiu, ou ainda uma imagem meramente simbólica, de um amor esperado e não encontrado, de um futuro imaginado que guarde o amor vindouro. As portas e janelas do quarto estão fechadas, por elas não passa nenhuma luz. O quarto esta como que isolado do mundo externo, fechado sobre si mesmo ele constitui um universo a parte, independente das conturbações do mundo lá fora, ele permanece calmo, fixo, intocável, impenetrável e profundamente  íntimo. Que segredos íntimos da alma de um homem pode guardar um quarto, em seus cantos ou gavetas, por debaixo do travesseiro ou da cama, ou quem sabe em um cofre ou passagem secreta? O espaço de uma intimidade não pode ser medido geometricamente, independente de sua altura ou largura ele é sempre profundo em sua vontade de aconchego e proteção. O quarto possui cores diversas e vibrantes, o que evita de tornar seu espaço mórbido ou soturno, apesar do tom de melancólico (tristeza resignada) de solidão e isolamento. As cores parecem concordar plenamente entre si, uma se apoiando na presença da outra, nada se destaca de mais ou de menos. O vermelho escarlate do cobertor parece que ainda guarda um pouco do calor do corpo de quem ali se deitou outrora, e convida ao observador a também se deitar ali para uma boa noite de sono. Se o dono do quarto já se foi, o quarto como entidade espacial parece ainda adormecido, perdido em sonhos distantes e tranqüilos. E o sonho, do quarto e do dono do quarto, parecem ser o principal constituinte da aura dessa pequena morada do Ser, que vive, dorme e habita o espaço.
    Nesse quadro feito por Vincent Van Gogh, por volta de setembro de 1889 na província francesa de Saint-Rémy,  retrata o quarto que foi sua morada por algum tempo dentro do hospício de Saint-Paul-de-Mausole. O fato de sabermos que era o quarto de um hospício cria um forte contraste ou paradoxo entre o ar de intimidade e acolhimento que a obra traz e a realidade um tanto quanto cruel de um hospício. Conhecendo a biografia de Van Gogh, sabemos que sua vida não teve grandes sucessos e reconhecimento. Ele nunca conseguiu se sustentar, dependendo sempre do irmão e vivendo em muitas situações de dificuldade financeira. Além disso teve constantes distúrbios mentais ao longo da vida, crises de loucura, tentativas de suicídio. Tudo isso levou-o a internar-se por conta própria em um hospício. Mas se Van Gogh era assim tão perturbado a ponto de se internar, porque ele retrata o quarto de sua “prisão” com tamanha intimidade, conforto e uma simplicidade aconchegante, se ali ele estava exatamente por causa de seus sofrimentos?
    A obra de Van Gogh se destaca na história da arte por marcar o inicio do processo de independência da representação artista frente ao  compromisso em retratar a “realidade” externa como ela é. As cores e as formas na obra de Van Gogh não mais se prendem as convenções da realidade socialmente compartilhada,  e das correntes artísticas acadêmicas, elas seguem livremente os sentimentos, emoções e estados de espírito pelos quais o pintor passa. Isso nos ajuda a pensar um pouco sobre a obra em questão.  A realidade pessoal vivida por Van Gogh nesse período era delicada e perigosa. Ele estava na imanência de sofrer  um surto de loucura derradeiro, ele temia seu futuro incerto. Mas sua arte sempre foi sua muleta, sua esperança, seu amor. Van Gogh buscava em sua arte a utopia de uma vida melhor. A criação de um espaço pictórico contribuía para a constituição de um espaço imaginário que ajudava a amenizar a dor da vida.  Van Gogh encontrou no hospício de Saint-Paul-de-Mausole, que no passado fora um mosteiro agostinho do século XII,  um lugar de isolamento, proteção e meditação. Pensando dessa forma entendemos um pouco os motivos do artistas ao criar em sua pintura do quarto uma versão afável de um espaço que a principio era opressivo. 
    Em uma carta enviada ao irmão Théo, Van Gogh descreve o quadro:
“Desta vez trata-se simplesmente de  meu quarto, só que aqui a cor é que tem que fazer a coisa e, emprestando através de sua simplificação um estilo maior às coisas, sugerir o descanso ou o sono em geral. Enfim, a visão do quadro deve descansar a cabeça, ou melhor, a imaginação. As paredes são de um violeta pálido. O chão é de lajotas vermelhas. A madeira da cama e das cadeiras é de um amarelo de manteiga fresca, o lençol e os travesseiros, limão-verde bem claro. O cobertor, vermelho escarlate. A janela verde. A mesinha, laranja, a bacia, azul. As portas, lilás. E pronto – nada mais neste quarto com os postigos de janela fechados. O efeito dos móveis também deve exprimir um descanso inviolável(...) Amanhã eu também trabalharei nele o dia inteiro, mas você pode ver como a concepção é simples. As sombras, próprias e projetadas, foram suprimidas; foi colorido com tintas planas e chapadas como os crepons. ” .
O descanso, o sono, a imaginação, são palavras que se destacam na carta de Van Gogh. Ele sabia que a arte é um livre exercício de imaginação, sabia da força das cores, e sabia que o que precisava naquela situação em que se encontrava era de descanso.
    O filosofo Gaston Bachelard ao tratar sobre as imagens do espaço poético,  afirma que quando tomamos uma nova morada, aplicamos a ela nossas lembranças de todas as moradas que já tivemos, principalmente de nossa morada da infância, o aconchego do primeiro lar. Assim vivemos projeções de felicidade e  proteção. Ao que parece, Van Gogh buscou ao longo da vida na arte uma forma de estar no mundo, de habita-lo em toda a sua intimidade, mesmo frente a uma sociedade que o oprimia e rejeitava. A imagem do quarto pintada por Van Gogh remete-me a imagem poética citada por Bachelard, sobre a cabana do eremita.
“A cabana do eremita é um tema que dispensa variações. A partir da mais simples evocação, a repercussão fenomenológica   apaga as ressonâncias medíocres. A cabana do eremita é uma gravura que sofreria de um excesso de pitoresco. Deve receber sua verdade da intensidade de sua essência, a essência do verbo habitar. Logo, a cabana é a solidão centralizada. Na terra das lendas, não há cabana média. O geógrafo pode bem trazer-nos, de suas longínquas viagens, fotografias de aldeias de cabanas. Nosso passado de lendas transcende tudo o que foi visto, tudo o que vivemos pessoalmente. A imagem nos conduz. Vamos à solidão extrema. O eremita está só diante de Deus. A cabana do eremita é o antítipo do mosteiro. Em torno dessa solidão centrada irradia um universo que medita e ora, um universo fora do universo. A cabana não pode receber a menor riqueza deste mundo. Tem uma feliz intensidade de pobreza. A cabana do eremita é uma gloria da pobreza. De despojamento em despojamento, ela nos dá acesso ao absoluto do refúgio” .
    O quadro de Van Gogh constitui um espaço pictórico e imaginário que remete a imagem poética citada na passagem de Bachelard, que também  pode ser aplicada a outros quadros de Van Gogh, como por exemplo as cenas das casas de camponeses no interior da Holanda e da França que ele tanto gostava de pintar. Casas cheias de simplicidade material e integridade de espírito. O quarto representa simplicidade e até pobreza do espaço, mas por outro lado revela a busca de um lar perdido, de uma morada segura e confortável, ao mesmo tempo que demostra a situação de carência, solidão e recolhimento de Van Gogh diante do mundo.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

A melancolia


A melancolia é uma espécie de tristeza resignada. Sem objeto fixo, sentimento ou lembrança que a retenha ou represente, é totalmente abstrata. Provem de tempos imemoriais , de primitivas tristezas tão profundas quanto as raízes do Ser. E de tão antiga já não se manifesta como estranhamento ou desconforto, é sim como um desalento acanhado e sóbrio de quem mira a existência sem pesar, mas com a fatídica percepção de que tudo é vão. Há nisso uma beleza triste, como a de quem se cansa de ser feliz e deixa a alma descansar em paz, contemplando o ínfimo infinito no olhar perdido para o além.

domingo, 2 de maio de 2010

Impressões de uma viagem



Por conta de minha graduação na universidade e afim de evitar comemorações exacerbadas e festanças desmedidas entre familiares e amigos, o que iria me constranger, pois a universidade muito mais do que um diploma me ampliou o senso critico mostrando-me o quanto minha conquista era importante e ínfima frente aos infinitos e tortuosos caminhos o conhecimento. Preferi optar então por uma singela viagem, que muito melhor do que uma festa me serviria de retiro espiritual, uma oportunidade para refletir sobre as incertezas de meu futuro e sondar a fundo meus mais secretos desejos e sonhos.
Escolhi, não por acaso, a bela cidade de Ouro Preto. Muitos motivos poderiam elucidar minha escolha tão certeira, entre os mais destacáveis posso escolher dois; meu singular gosto por cidades históricas que guardam em sua arquitetura as marcas do tempo como prêmios, e mais parecem museus a céu a aberto; e minha constante e incansável busca e apreensão de valores estéticos e identitários que possam constituir minha alteridade, e portanto, nada melhor que regressar as raízes mineiras de minha família, e buscar no interior desse estado a alma de meus antepassados que muito falam sobre mim. Além de tudo o ar de cidade pequena acalma os nervos e convida ao devaneio. E mesmo repleta de ladeiras íngremes que dificultam a locomoção, aquelas calçadas de paralelepípedo foram a passarela de meu exercício de flâneur.
Tomei um ônibus e a viajem apesar de relativamente curta, não foi das mais confortáveis. Mas ao som de Milton Nascimento preparei meus sentidos para o que me esperava por entre aqueles morros misteriosos de Minas Gerais. Cheguei logo ao amanhecer, o sol anda tímido surgia por entre os morros exuberantes que cercam a cidade. Respirei fundo aquele ar fresco com sabor de novidade e partir para o primeiro reconhecimento da cidade que se me apresentava bela e misteriosa com suas muitas historias escondidas em cada pedra da rua, cada telhado de casa, em cada janela e em cada porta que pareciam dar para um passado distante e ao mesmo tempo presente. As ruas ainda estavam imersas por um leve névoa, o que criava uma atmosfera européia, que se completava com o frio que fazia, muito além do que estou acostumado. Ser forasteiro em uma cidade e saber que absolutamente ninguém ali sabe quem sou ou de onde venho, por isso ninguém exige ou espera nada de mim, isso me dava uma grande sensação de liberdade, pois nenhum verdade factual me aprisionava, pois até mesmo meu nome eu poderia reinventar se assim me apraze-se. As músicas de Milton ditavam o ritmo de minhas andanças pela cidade, e mesmo descobrindo uma novidade a cada passo não demorou muito para me sentir totalmente a vontade naqueles espaços, é claro que a estética barroca da cidade muito contribuiu para essa profunda identificação de minha parte, e cada igreja ou casarão que eu me deparava me deslumbrava em uma novo êxtase estético.
Me hospedei em um pequeno e aconchegante quarto de uma estalagem simples com o nome de alguma santa, toda a cidade exala uma forte ar de religiosidade e espiritualidade. A estalagem era próxima ao centro histórico da cidade o que facilitava minha locomoção, e além disso era em um típico casarão antigo, com longos e estreitos corredores fantasmagóricos de tábuas rangedeiras. Meu quarto tinha uma simpática escrivaninha, onde anotava diariamente minhas experiências e percepções sobre a cidade, seus habitantes e a sobre mim mesmo.
Os dias em Ouro Preto se sucediam sem a comum descontinuidade que sinto em minha vida urbana cotidiana, pelo contrário, lá cada dia parecia completar o anterior em uma seqüência construtiva, e aos poucos a cidade foi se desenhado em minha memória e constituindo minha narração. Passei os dias a visitar calmamente os museus e igrejas, com longas pausas para conhecer os bares, restaurantes e cafés mais simples, onde degustei avidamente da magnifica culinária mineira, que conheço bem desde o berço e nunca me enjoou. Sempre acompanhado do livro do desassossego, selecionei os mais tranqüilos e isolados lugares para leituras e devaneios (o parque Horto dos Contos era um de meus favoritos), a beleza natural das paisagens de Minas, os morros verdes e o céu límpido e azul cheio de uma luz exuberante e fria contribuíram muito. Passava longas e imperceptíveis horas sentado nos bancos das igrejas barrocas, a adorar a obra de Aleijadinho e seus contemporâneos. O barroco que é a primeira manifestação artística da modernidade que se livra das estreiteza da racionalidade renascentista e aponta para o infinito indefinível, me abalava com suas construções sublimes. Eu me punha a refletir sobre como um símbolo religioso, um altar ou uma coluna entalhada de anjos, podia ao mesmo tempo tocar o divino e flertar tão avidamente com o profano, isso é o barroco, a latente contradição humana, a batalha entre o corpo e a alma, entre Deus e o Diabo no coração do homem! Isso também marcava a vida e a obra de Antônio Francisco Lisboa, mulato, mas filho da nobreza, arquiteto e escultor divino, mas amaldiçoado e deformado por um destino trágico.
Toda a cidade estava muito movimentada por conta do festival de inverno, que envolvia muitas atrações culturais, concertos musicais , peças teatrais etc. Conheci o aconchegante e estilístico teatro de Ouro Peto, onde assisti a apresentação da orquestra municipal. Na praça Tiradentes conferi de perto uma peça sobre a passagem de Ulisses na ilha dos ciclopes, uma encenação magnifica, com figurinos impecáveis e um tom de teatro popular da idade media que me arrancou lagrimas de emoção. O museu da inconfidência chamou minha atenção para esse interessante episódio político-social da história do Brasil, os ideais da revolução francesa, as conspirações planejadas nas casas de intelectuais e artista, a identidade cultural de um país em formação, tudo isso encheu minha imaginação. Logo tive acesso a obra de Cecília Meireles que narra poeticamente a inconfidência, o que desenvolveu em meu espírito uma grande apreço pela história de Minas Gerais, e por mais que eu saiba que o símbolo de Tiradentes foi forjado na época da proclamação da republica por questões político-ideologicas, ainda assim o ideal dos inconfidentes considerado em seu devido contexto histórico revela o que a alma humana tem de mais sincero e profundo, a busca incansável por Liberdade. Simplesmente me cativou! E agora faz parte do que sou ou penso que sou.
Caminhar por aquelas ruas era como voltar no tempo, eu quase podia ver os escravos em seus afazeres diários. E apesar de não ser religioso, e até me considerar anti-clerical, não poso deixar de considerar a imensa beleza das igrejas que ultrapassa os dogmas opressores da instituição católica, e em seu interior convidam a reflexão e a contemplação. Me impressiona cada vez mais o poder da arte e sua presença irredutível na vida dos homens em todas as épocas. Através dela se pode falar de tudo, política, ideologia, ciência, religião, história, filosofia, tudo cabe nela. A arte barroca de Ouro Preto conta com detalhe a vida e a sensibilidade do homem mineiro do século XVIII e XIX, esta lá para quem tiver olhos para ver. Desbravar as ruas e esquinas de Ouro Preto foi como desbravar os recônditos de minha alma, foi como relembrar vidas que não vive, mas que poderia ter vivido, e agora vivi, pelo menos na imaginação. E afinal não é disso que se nutri a história?! Findo minha narração com a frase estampada na bandeira de Minas Gerais por influencia dos inconfidentes. Frase essa que desde que a li pela primeira vez passou a guiar meu ideal de sonhador e de incansável buscador do infinito: “Libertas quase sera tamien” (liberdade ainda que tardia) tirada dos versos de Virgílio por Alvarenga Peixoto.


segunda-feira, 26 de abril de 2010

Sobre mentira e verdade

Porque os seres humanos mentem? E o que afinal é a mentira? Será ela somente o oposto da verdade? Parece-me que não, pois assim seriam muito fácil identifica-la, pois sempre teríamos apenas duas opções (maniqueísmo). Mas é a verdade o que é? Sabemos não ser apenas o oposto da mentira, é parece-me também não ser una (como pode-se vir a pensar), visto que se modifica ao longo do tempo e em meio as diversas culturas. Assim tanto a verdade como a mentira podem ser múltiplas, e só se opõem em relação a circunstancia em que estão postas. Esse seria o mais comum raciocínio relativista, uma típico sofismar, que por mais antigo que seja essa pratica, me parece muito presente no pensamento contemporâneo. Mas o que é o conhecimento se não um sofismar com fé?
Se pararmos para pensar na constituição histórica do pensamento contemporâneo resumidamente podemos voltar até o Renascimento. Quem eram os homens renascentistas? Homens que saindo de um período de forte controle dogmático (não que isso não ocorra em outras épocas, e mesmo hoje), mas ainda imbuídos de uma poderosa fé religiosa se voltaram para a Razão, e reinterpretando ela dos antigos deram-lhe o posto de Deus da Modernidade. Mas como todo pensamento trás em seu próprio âmago a semente de sua contradição, junto com a fé na razão veio em contra partida o chamado ceticismo, a razão estremada que leva a descrença extremada. Pois ao mesmo tempo que o pensamento racional explica as coisas ele aumenta em nós a propensão a duvidar das coisas .O maior teórico do racionalismo moderno, René Descartes, em seu Discurso do Método, cria sua máxima “penso, logo existo”, antes de tudo partindo da total descrença em qualquer explicação. Daí afirma um de seus contemporâneos, Pascal: “Dois excessos: excluir a razão, e não admitir se não a razão”. Tudo o que primordialmente herdamos desses homens renascentistas foram exatamente dois excessos, unidos formando uma poética e rica contradição; a gloria da razão o infinito da não-razão(imaginação).
Lendo os ensaios de outro instigaste homem renascentista, Michel de Montaigne, percebesse seu profundo conhecimento do pensamento dos antigos gregos, e sua enorme capacidade para expressar os costumes de seu próprio tempo e classe (ele era de uma família de burgueses que ascenderam a nobreza no século XVI). Ao falar sobre o mentiroso afirma ele: “Se, como a verdade, tivesse a mentira só uma face, eu a poderia ainda admitir, pois bastaria considerar certo o contrário do que dissesse o mentiroso; mas há cem mil maneiras de exprimir o reverso da verdade e o campo de ação da mentira não comporta limites. Os pitagoristas tinham para eles que, o bem é coisa certa e delimitada, o mal incerto e infinito”(Os pensadores - Montaigne I). Percebe-se que ao mesmo tempo que ele utiliza o pensamento lógico racionalista, ele se serve de uma noção quase metafísica sobre a verdade e sobre o bem. Ah como me brilha nos olhos a imagem da contradição, latente, mesmo que em germe em todo pensamento profundo! Mas a beleza desse pensamento esta mesmo no fato de que Montaigne afirma a existência da verdade em relação única com quem a diz, ou seja, em um sentido subjetivo, como verdade interna, por isso em outro trecho do ensaio ele define a mentira como; “ ...mentir é falar contra a própria consciência.” A mentira parece assim muito mais um desacordo com sigo mesmo do que um ato de ignorância.
Mas é claro que a relação entre mentira e verdade nunca mais foi a mesma depois das poderosas marteladas filosóficas de Nietszche, que provocaram um abalo decisivo, que constituiu o que hoje se tem de mais sofisticado na filosofia. Mas esse abalo não separou as duas, pelo contrario, as uniu tal qual gêmeos que se interpretam um ao outro para confundir a mãe e acabam confundindo a sí mesmos. Ele nos mostrou como a aparente oposição das duas só as torna mais próximas. E no fundo de toda verdade se esconde uma mentira e vise e versa. “...as verdades são ilusões das quais esqueceu que elas assim o são” (Nietszche– Sobre verdade e mentira). Mas uma ilusão não é uma mentira, no sentido de não-verdade, mais me parece uma meia-verdade, assim como uma meia-mentira. Talvez fique melhor entende-la como uma distorção, para não nos tornarmos radicalmente cépticos em relação ao conhecimento, pois mesmo sabendo que ele não é um instrumento divino e perfeito, de muito serviu e serve aos humanos, seja na construção de instrumentos que facilitam a vida, seja no próprio processo de sua criação e contemplação. Claro que como amante da filosofia não posso eu pregar pela destruição total do conhecimento, mas melhor do que isso prego por sua reinterpretação. Conhecimento não é mais sinônimo de busca pela verdade, mas sim de criação da verdade. Conhecimento é arte! E isso que venho percebendo em cada livro, cada quadro, cada filme ou peça que assisto.
Poderíamos pensar então que Nietszche descorda de Montaigne, que estão falando de coisas diferentes. Não para mim! Pois para mim eles se completam, ou melhor, me completam. O primeiro destrui a metafísica da verdade, o segundo admitiu a verdade interior.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Ensaio literário: Clarice e a Natureza

“Não ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias. Eles às vezes clamam do longe de muitas gerações e eu não posso responder senão ficando desassossegada. É o chamado” (A descoberta do mundo, p.337).

Clarice Lispector tanto em sua vida particular quanto em sua obra literária reflete um peculiar interesse, mistura de respeito e assombro, sobre a natureza da vida animal. É só nos lembrarmos da barata do livro A paixão segundo G.H, que se torna personagem importante ao servir de ponto de partida para a epifania de G.H, que ao deparasse com o inseto, criatura não humana, adentra uma profunda reflexão existencial sobre o que é o humano. As baratas surgem novamente em uma crônica chamada Cinco relatos de um tema, mas que de acordo com a própria autora também poderia se chamar Como matar baratas. Além das baratas há na obra de Clarice constantes referências a cães, como no livro infantil Quase de verdade, onde quem fala é seu cão Ulisses e na crônica intitulada Bichos onde Clarice lembra com saudades de seu cão italiano Dilermando. Não poderia me esquecer de citar o lugar, talvez privilegiado, da galinha nos escritos de Clarice. Essa surge tomando diferentes significações e assumindo diferentes metáforas no conto O ovo e a galinha, mas também em sua simplicidade animal em contos como Uma galinha e Uma história de tanto amor. Nesse breve ensaio tentarei analisar o discurso literário de Clarice Lispector buscando interpretar sua visão sobre a natureza animal como forma de se perceber os limites do universo humano frente a grandiosidade da Natureza entendida como ente divino e fonte de toda a vida.
É inegável o poder que Clarice delegava a visão, ao olhar. Em muitos de seus escritos seus personagens passam por momentos de revelação apenas com a visão de alguma coisa que as toca profundamente, seja uma pessoa (no caso do conto Amor), um vegetal (no caso do conto A imitação da rosa) ou um animal (no caso da já citada A Paixão segundo G.H). Sendo assim Clarice inicia a crônica Bichos com as seguintes palavras:
“Às vezes me arrepio toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão deles. Pareço ter certo medo e horror daquele ser vivo que não é humano e que tem os nossos mesmos instintos, embora mais livres e mais indomáveis. Um animal jamais substitui uma coisa por outra, jamais sublima como nós somos forçados a fazer. E move-se, essa coisa viva! Move-se independente, por força mesmo dessa coisa sem nome que é a Vida” (A Descoberta do mundo, p.332).
Nesse trecho é possível perceber o poder revelador do olhar, além disso Clarice afirma seu horror em lidar com o não humano, mas que mesmo assim compartilha algo primitivo e originário conosco, os instintos. Os instintos são nossa parte animal, e que de acordo com Freud em seu artigo O mal-estar na civilização, foram duramente reprimidos em favor do desenvolvimento sociocultural da civilização. O tema da oposição entre Cultura e Natureza está presente na obra de Clarice, os animais simbolizam de forma ambígua tanto a nostalgia quanto a repulsa das origens humanas na natureza.
“ No romance de nossa escritora, a barata, presença ativa, fascinante e destrutiva, opõe-se à da mulher que a vê. Essa oposição geradora de conflito constitui, pela maneira como se resolve – a ruptura com o mundo humano - , um caso-limite da oposição geral entre Natureza e Cultura a que nos referimos. O inseto desempenha nesse conflito um papel de mediador. (...) É um mediador e um emissário a serviço da natureza selvagem que absorverá G.H durante o êxtase” (Benedito Nunes, O drama da linguagem, p.131).

Mas assim como a experiência de G.H envolve um despersonalização, uma ruptura com o mundo humano definido pela linguagem, envolve também a percepção da vida como algo mais amplo que o humano, que ultrapassa os limites da inteligibilidade. Se o universo humano pode ser vasto o universo não humano é sem dúvida muito mais, e é isso que surge nas entrelinhas da crônica As águas do mar:
“Ai está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos” (A descoberta do mundo, p.470).

Clarice nos fala que tanto o mar quanto a mulher são em suas essências ininteligíveis, porém o que torna o humano o mais ininteligível dos seres vivos é a pergunta que esse faz sobre si mesmo. Para mim isso simboliza a questão da consciência reflexiva, instrumento da mente humana que possibilita indagar-se e assim criar representações sobre si mesmo, que se multiplicam e entrelaçam com o tempo tornando a existência humana cada vez mais complexa e relativamente afastando-nos da Natureza. Quanto mais os seres humanos desenvolvem sua linguagem, sua cultura, seus conhecimentos, mais se tornam livres, podendo escolher e agir diferenciadamente dentro da Natureza. E ao mesmo tempo, paradoxalmente, se tornam prisioneiros de suas próprias invenções afastando-se de seus desígnios instintivos. E na mesma crônica ainda podemos ler: “Porque é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga” (A descoberta do mundo, p.470). Os animais estão sempre de acordo com seus instintos e seu meio ambiente, por isso ontologicamente falando tem seu Ser completo, não há em sua existência conflito, insatisfação ou busca. Ao contrário, o ser humano é incompleto, designado na filosofia sartriana como ser-para-si ele tem como missão de vida inventar-se a si mesmo.
“Os animais gozam no mundo de Clarice Lispector, de uma liberdade incondicional, espontânea, originária, que nada – nem mesmo a domesticação degradante de uns, nem a aparência frágil e indefesa de outros – seria capaz de anular. Se o reino que eles formam está, conforme observamos linhas atrás, firmemente assentado na própria Natureza, é porque se acham integrados ao ser universal de que não se separam e de que guardam a essência primitiva, ancestral e inumana” (Benedito Nunes, O drama da linguagem).

Em sua perspectiva sobre a Natureza Clarice demostra uma visão humanistica oposta a de filósofos renascentistas como Francis Bacon, um dos fundadores do pensamento científico moderno, que interpretava a Natureza como uma fonte inesgotável da qual o homem como mestre devia servir-se. Em sua visão Clarice não desqualifica o ser humano, mas não o considera mestre da Natureza, e sim uma pequena parte dela, e que para ela deve regressar uma hora, visão essa que se aproxima muito mais de um humanismo nietszcheano. Em uma de suas crônica intitulada Doçura da terra, fica clara essa imagem da Natureza, que inclusive pode ser comparada ao provérbio bíblico que diz, “do pó vieste e para o pó retornarás”.
“De algum modo tudo é feito de terra. Um material precioso. Sua abundância não o torna menos raro de sentir – tão difícil é realmente sentir que tudo é feito de terra. Que unidade. E porque não o espírito também? Meu espírito é tecido pela terra mais fina. A flor não é feita de terra? E pelo fato de tudo ser feito de terra – que grande futuro inesgotável nós temos. Um futuro impessoal que nos excede. Como a raça nos excede. Que dom nos fez a terra separando-nos em pessoas – que dom nós lhe fazemos não sendo senão terra. Nós somos imortais. E eu estou emocionada e cívica” (A descoberta do mundo, p.172).

Mesmo com toda a produção de conhecimento, com a ciência moderna e toda a sua alta capacidade de manipulação e exploração da Natureza, hoje vivemos no mundo uma crise ambiental, aquecimento global, poluição das águas e do ar, desmatamento de florestas etc. Isso nos chama a atenção para a necessidade de uma mudança de perspectiva frente à Natureza, pois dependemos dela e de sua preservação, sendo impossível controlá-la totalmente. Clarice já mostrava uma sensibilidade para com a Natureza e a certeza de uma ligação com ela que não pode ser rompida, e antes outros já pregavam a mesma idéia.
“O homem vive da natureza, isto é, a natureza é seu corpo, e tem que manter com ela um diálogo ininterrupto se não quiser morrer. Dizer que a vida física e mental do homem está ligada à natureza significa simplesmente que a natureza está ligada a si mesma, porque o homem dela é parte” (Marx, 1975: 328).

Em outra passagem da crônica Bichos, Clarice fala novamente do assombro que sente na presença dos animais, que se configuram como uma espécie de símbolo que invoca no humano sua própria animalidade, tal chamado da Natureza animal pode ser uma experiência assustadora e ao mesmo tempo um processo de autoconhecimento.
“Ter bicho é uma experiência vital. E a quem não conviveu com um animal falta um certo tipo de intuição do mundo vivo. Quem se recusa à visão de um bicho está com medo de si próprio. Mas às vezes me arrepio vendo um bicho. Sim, às vezes sinto o mudo grito ancestral dentro de mim quando estou com eles: parece que não sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho, e me confundo toda, fico ao que parece com medo de encarar meus próprios instintos abafados que, diante dos bichos, sou obrigada a assumir, exigentes como são, que se há de fazer, pobres de nós” (A descoberta do mundo , p334).

A galinha aparece repetidas vezes na obra de Clarice como já citado, no conto Uma história de tanto amor, a narradora conta a história de uma garotinha que de tanto observar as galinhas conhecia-as intimamente e amava-as. A garota cuidava de suas duas galinhas de estimação como se fossem gente, dando-lhes inclusive remédios para o fígado, afim de prevenir que elas adoecessem, já que passavam o dia comendo porcarias do chão.
“A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandezas inerentes à própria espécie” (A descoberta do mundo, p.123).

Em determinado momento da narração as galinhas são devoradas pela família da garota, que fica muito magoada com o acontecido. Sua mãe então lhe explica que quando comemos os bichos nós os tornamos mais parecidos conosco, guardando-os dentro de nós. Tal explicação convence a garota, que futuramente arruma outra galinha de estimação, chamada Eponina, mas desta vez não hesita em comê-la.
“Mas a menina não esquecera o que sua mãe o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinha feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, em um ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens” (A descoberta do mundo, p.124/125).

Apesar de toda a sua sensibilidade para com a natureza animal, Clarice parece aceitar o fato de que toda a vida se alimenta de morte e vice e versa. Os animais em sua condição natural fazem parte de uma cadeia alimentar e o ser humano não esta fora disso, por isso não há violência ou opressão alguma em comer animais (mantendo é claro o devido respeito as formas de vida, coisa que nem sempre é considerada na cruel indústria da carne). É interessante repararmos na analogia que esse trecho faz com o ritual cristão de comer a hóstia, que representa o corpo e o sangue de Cristo compartilhado por seus irmãos. Algumas tribos indígenas antropofágicas no Brasil também assumiam um ritual parecido, onde comiam os inimigos em uma cerimônia, afim de incorporar suas habilidades. Assim sendo parece que Clarice considera o alimento de origem animal uma forma de incorporarmos a própria Natureza. A galinha morre para dar a vida a quem a come, em um ritual pagão sagrado, que envolve o amor como forma de associação, união, fusão dos seres.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Mensagem para ela(eu)

Quem é Clarice? e quem sou eu? como ser Clarice? como não ser Clarice? como ser...?e o outro como é? o que ele me diz? é como espelho, como verso e como prosa(?!) É pura literatura(,)o espelho, como é ler Clarice e pensar Clarice? é possível não ser Clarice? ser a si mesmo e o outro também?! olhar em seus olhos é ver a mudez da palavra que ela diz mesmo sem dizer(!) quem é Clarice então? será que descobrindo quem ela é posso saber quem sou eu? Ela é G.H, é Rodrigo S.M, ou quem sabe Macabeia? é Ana, é Laura, é...(?!) Também eu posso ter muitos nomes, pois o meu mesmo já esqueci, e só vou me lembrar no dia da Morte (!!!) vejo Clarice, olho seus rostos, seus olhos, suas palavras, e sinto que vejo tanto(!), que tudo fica infinito e ai então já não vejo mais nada... ver é a pura loucura do corpo ( “ “) entro nela pelos olhos, em sua alma, sua palavras falam do silêncio, pergunto o porque disso, e ela reponde com a simplicidade de criança sabia: não sei... não sei porque, ela fala sobre a duvida com a certeza de quem não teme o inconpriencivel, pelo contrario, busca-o, olha-o com temor de respeito, e se delicia, quem me dera também ousar como ela! posso(?!) também sofro de mudez, também minha alma inquieta clama pela palavra que nunca sacia, eu sei! Ela sabia, e me disse bem baixinho para não apavorar os doutores da gramática e os crentes da vida (!) é porque a vida é para se morrer dela (quando se diz uma coisa se diz o dito ou o redito?!!!!!), ai que bom ler Clarice! olhar em seu espelho e ver a mim, a palavra! mexer em suas gavetas, seus mistérios do espírito guardados na matéria pelo tempo, bebe-los, torna-los também meus! meus segredos(!), minha Clarice! ver fotos, a juventude, a velhice, os amores, os amigos, as cartas e rabiscos ( ) ai que deleite! poesia, devaneio, sonho e realidade (<) tudo que não tenho, tudo que não sou... sentado em seu sofá (ora atencioso, ora sonolento, ora lendo, ora conversando, ora só passando(...)) ouvi-a dizer coisas, mas era sua imagem quem me falava, seus gestos diziam mais que as palavras, que bela! Será a vida um conto, que se começa a escrever e não se pode acabar, até que em determinado momento de cansaço o rasgamos cheios de raiva?! Ela me diz como é difícil de explicar essas coisas, tenho que concordar plenamente, muito difícil! é que tudo é tão incerto(!) não é Clarice? O cotidiano banal de uma dona de casa, a epifania que rompe com realidade, a vida que brota das profundezas da terra, fluida, fulgurante e perigosa (!), será que é para isso que serve a escrita? para desabrochar a rosa no peito?! Ela me disse que a escrita é a maldição que salva, a beleza dos mistérios que se resolvem se repetindo!compartilhamos nossas solidões, ela de um lado da página e eu do outro, o tempo entre nós não nos afastou e nos tocamos por um raro instante de pura beleza! Hoje sinto-me eu e ela, e sinto que posso ser tanto quanto possa me caber, como nela cabia o incabível ...

segunda-feira, 15 de março de 2010

Superquadra

Na área da escala residencial, na superquadra da cidade moderna, observando um pequeno recorte de realidade perdida no banal, olho ao longe... Há um prédio residencial, em sua frente um pequeno campo verde com um parquinho infantil de areia ao lado, equipado com balanço e escorregador. Ali se desenrola silenciosa toda uma dinâmica social. Existem bancos públicos espalhados separadamente ao redor do local. Em um deles estão as domesticas e babas que trabalham para as famílias que moram no prédio. Elas descem com os animaizinhos da casa, os cachorrinhos e as criancinhas, os quais não hás pertencem, mas a função de cuidar deles é delegada a elas.O porquê de tal fenômeno, responsabilidade familiares terceirizadas, parece obvio frente as exigências do mundo capitalista do século XXI, porém não me cabe aqui discuti-las. Com cada coisa em seu lugar, cachorrinhos no campo de grama, criancinhas no parquinho, elas se reúnem em um banco e começa a conversa... Uma comenta com as outras duas sobre o novo porteiro do bloco C. Todas concordam de que ele é do tipo bonitão, mas cafajeste... Enquanto uma relembra o último capitulo da novela lamentando não poder ter um final feliz como o da protagonista, a outra comenta sobre os despudores da vizinha do 403 que se encontra com o amante todas as quartas-feiras quando o marido sai com os amigos para assistir futebol ( ou pelo menos é isso que ele afirma).
Poucos metros ao lado, em outro banco, estão vários adolescentes da escola pública matando aula de matemática, afinal o que são os números ante a inconsciente ânsia de vida da juventude. Eles riem alto e contam piadinhas machistas e preconceituosas sobre loiras e gays, tentando claramente afirmar suas ainda débeis identidades sexuais masculinizadas. Atravessando a superquadra uma jovem caminha vagarosamente com sua avozinha de mais de noventa anos. A anciã lembra seus anos de juventude com nostalgia, contando-os como se assim pudesse revivê-los, a memória do passado é tudo para quem já não consegue imaginar o futuro. Sua jovem neta a acompanha, fingindo se interresar pelo assunto da velha, talvez por um peso moral já que ela paga seus estudos com a aposentadoria da avó. Enquanto caminha, a jovem flerta com dois rapazes que estão sentados nos banquinhos mais afastados próximo a uma arvore do outro lado do campo de grama, ela pensa consigo mesma:
- Será que toda a malhação deu resultado? Será que estou tão bonita como a Juliana Paes? E essa maldita celulite que não me larga?! Será que um daqueles rapazes gostaria de tomar uma cerveja? Será que gostaram de mim? Os dois rapazes no banco afastados fumam “disfarçadamente” um cigarro de cânhamo que é hipocritamente proibido só no papel pelo conservadorismo de nossa sociedade. Eles conversam exaltados sobre a derrota do Flamengo no jogo de ontem. Um deles discursava tal qual falasse sobre paz mundial, sobre a importância do Zé no ataque da equipe, quando seu amigo chama sua atenção para a “gostosa” que esta passando.
No parquinho brincam dois garotinhos, e mais ou menos uns quatro ou cinco anos, um deles resolve num impulso mostrar seu pênis ao outro garoto, sexualidade infantil afirmaria Freud, talvez sinais de homossexualismo na infância. Isso meu simplório olhar não pode responder, só especular. Com um carrinho de supermercado, passa embaixo do bloco, uma apreçada dona de casa que acaba de fazer compras para o almoço do dia. Seu carrinho e carregado por um funcionário do supermercado, um tipo moreno, alto e magro, com grandes óculos de lentes grossas e cara de entediado, ele parece disposto a atropelar a senhora com o carinho só para proporcionar algo de diferente em seu cotidiano maçante, afinal de que vale um empreguinho simplório e mal pago se as contas e prestações em casa só aumentam?! A dona de casa só consegue se preocupar com o tempero do feijão, o qual o marido já reclamou no dia anterior, errar novamente seria para ela o inicio de uma nova crise de depressão.
Em baixo do bloco parado, sentado em uma cadeira de rodas, com semblante apreciativo e olhar perdido esta um velinho de fisionomia decrépita. O enfermeiro contratado para cuidar dele, figura muito semelhante em sua função com a das domesticas e babas com seus cachorrinhos e criancinhas, lê uma revista reacionária e massificante, dessas de grande circulação no país, quase que se esquecendo de verificar a cada dez minutos se o moribundo senhor ainda respira. O velhinho, com uma mão agarrada a Vida e a outra a Morte parece lançado em um peculiar estado de consciência, seu olhar para transpassar as imagens da matéria e vislumbrar calmamente a metafísica do mundo. Será esse mundo gerido por um Deus, uma consciência epifenômena? Será como uma máquina divina e eterna com seus mecanismos e regras? Será tudo fruto da Natureza, força incontrolável, caótica e imoral? Não se sabe o que o pobre velhinho vê, se mais ou menos do que eu! A verdade é que cansado de ver e impossibilitado de falar ele solta leve e quase imperceptivelmente um vago e debochado sorriso de canto de boca, como quem já não mais suporta a existência trágico-comica dos seres humanos e fechando os olhos entrega-se ao sono, irmão da morte. Para ele o Tempo parece não mais existir, enquanto para meus olhos o Tempo só se multiplica fragmentando-se no espaço, sempre continuo e passageiro...