domingo, 24 de junho de 2012

As ilusões da felicidade nas ruínas do inevitável



Era um belo dia de fim de semana, não me lembro bem da hora, mas também pouco importa, pois lá dentro as luzes fazem o papel de um sol que nunca se põe, por isso é sempre manhã ensolarada. As pessoas caminham felizes pelos corredores, com as mãos sempre ocupadas de pacotes e sacolas de presentes, como se fosse sempre véspera de natal ou um eterno dia de aniversário. Nos cruzamentos dos corredores, simulações de praças com banquinhos, fontes e jardins, com plantas de plástico, mais verdes que o verde, pois nunca mudam de cor, mais vivas que a vida, posto que são insensíveis a morte. Nesse pseudo urbanismo tudo foi artificialmente melhorado, ou camuflado, não há espaço para sujeira ou depredação, excluiu-se tudo de detestável que ocupa a cidade real e triste lá fora, não há mendigos ou pombos imundos compondo o ambiente, tudo é muito asséptico como um hospital particular e forçadamente confortável. Ali todo o esforço tende a ser minimizado para a melhor apreciação e acesso aos produtos, amplos estacionamentos subterrâneos, metros e metros de escadas rolantes, elevadores de vidro com uma bela vista panorâmica para as enormes estruturas internas como as de um labirinto. A paisagem é exuberante, painéis de alta tecnologia cobrem quase todas as paredes trazendo aos olhos as mais incríveis imagens do mundo,em luz e som, como um sonho hollywoodiano, pessoas bonitas e saudáveis esbanjando felicidade e riqueza sem peso de consciência, dúvida ou temor. A vida virtual e as verdades virtuais. Não há espaço para infelicidade quando tudo que se precisa esta as mãos por preços razoáveis, com descontos no cartão em até trezentas mil vezes. A infinitude das vitrines, como um portal, anunciam a possibilidade de um mundo melhor, ou pelo menos mais belo. Roupas coloridas da última moda em Paris, aparelhos eletrônicos japoneses que prometem fazer de tudo um pouco para servir indiscriminadamente a seus mestres como escravos perfeitos. Sanduíches e doces a se oferecer promíscuos e obesos, tão suculentos, inflando a fome insaciável dos olhos. São todos, na verdade, os arautos que nos convidão a conhecer o interior das lojas templos para buscarmos neles a completude que nos falta, o tesouro perdido. Além disso o vidro das vitrines tem ma espécie de efeito mágico sobre mim, ele permite ver através dele ao mesmo tempo que projeta meu reflexo no interior da loja. Deslocamento! E como se eu já tivesse lá! Quando olho uma roupa, por exemplo, não vejo só a roupa no manequim, vejo a roupa em mim, e por um instante eu já estou vestindo aquilo que desejo, como se aquilo tivesse sido feito exatamente para mim, e por isso já me pertencesse por direito, quando volto a mim desse sonho acordado, sinto meu desejo cão feroz, e um vazio infindo em meu peito, como se parte de mim tivesse sido capturada. Caminho sem rumo, extasiado pela enorme quantidade de informação visual que me transpassa e me livra das preocupações pessoais, minha atenção mantem-se alerta, pois a cada corredor, a cada andar, surge de repente uma nova imagem de pura felicidade, que me atrai como um imã, luzes que me hipnotizam, sons que me embalam guiando sem que eu percebe meu próprio caminhar, e assim, sem noção de tempo, entro de loja em loja como quem visita um parque de diversões. Compro o que posso, o que meu dinheiro permiti, mas o curioso é que parece que desejo mais ainda o que não posso ter, e esses objetos de desejo, mesmo não os possuindo, perduram em mim quando me vou, e depois me fazem voltar, por isso sempre volto, pois algo parece sempre me faltar. Me sento em um banquinho da praça para conferir meus cupons de compra, sinto uma sensação de leveza, como se estivesse meio bêbado. Minha atenção e brutalmente quebrada por um grito de puro pavor, viro a cabeça e de relance, no canto do olho vejo um vulto que cai a poucos metros de mim. Mesmo sem saber o que estava acontecendo já sou tomado por sentimento de medo, mas ainda estou muito confuso. Percebo imediatamente um tumulto se formando na praça. Vejo expressões de medo nas pessoas alvoroçadas, algumas parecem fugir de algo que as enoja. Olho para o chão e vejo que um estranho liquido vermelho escuro escore em um filete até meu sapato. Me abaixo e toco levemente com o dedo o liquido, que é viscoso e quente. Me surpreendo, enojado quando percebo que é sangue. Me levanto rapidamente, o medo em meu interior só aumenta como uma balão inchando, preste a explodir. Sou logo contagiado pelo pavor das pessoas ao meu redor, ainda sem entender bem o porque. Aproximo-me de um grupo de seguranças que faz uma roda tentando afastar as pessoas, que por algum motivo se aproximavam curiosas para ver algo. Também curioso me aproximo, e o terror brota em meus olhos! Vejo estatelado no chão, envolto por uma enorme poça de sangue, um corpo humano desfigurado. Os membros entortados , uns sobre os outros como se fossem de um boneco de pano. A imobilidade total indicava a morte. Apavorado, e possuído por um sentimento ainda inominável frente a morte, sinto meus olhos se encherem de lágrimas, os joelhos começam a tremer incontroláveis, sobe-me pela espinha um frio glacial, e sinto o estomago revirar por dentro. Jogo as sacolas e cupons de compra no chão, esqueço-os, eles perderam completamente o valor. Toda a felicidade anestesiante esvaíram-se como poeira por meu poros. Seco, murcho! Reencontro-me comigo mesmo, e me vejo solitário frente ao inevitável incompreensível, sem amparo, sem destino. Das profundezas emerge a angústia primitiva. O medo em sólidos calcificados me paralisa. Mesmo querendo correr para longe, como muitos fizeram (pois a morte se anunciava feito doença), me mantive ali, e tudo ao meu redor se transformou em ruínas. Eu também irei...

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