sábado, 29 de janeiro de 2011

A Casa Onírica

     Uma casa pode ser analisada em seu espaço geométrico por um arquiteto, levando em consideração suas constituições físicas, mas também é possível analisar uma casa em seus valores oníricos, através das imagens poéticas que constituem o espaço poético. Nisso consiste a pesquisa fenomenológica de Gaston Bachelard. Ele se serve de imagens poéticas invocadas pela literatura, para sondar os valore de intimidade do espaço interior do ser humana. A fenomenologia de Bachelard voltasse para a imaginação, e busca nela a linguagem que identifica a casa onírica. Ele vê a casa como um corpo de imagens, que podem se afirmar e se negar, mas sempre remetem ao mais  intimo do ser.
“Esses valores de abrigo são tão simples, tão profundamente arraigados no inconsciente, que vamos encontra-lo mais facilmente por uma simples evocação do que por uma discrição minuciosa. A nuança, então, exprime a cor. A palavra de um poeta, tocando o ponto exato, abala as camadas profundas do nosso ser”.(A Poética do Espsço, p.32)
    O filosofo busca um sentido quase que metafísico para o verbo “habitar”. Afinal, a quanto nossa espécie habita esse pequeno planeta do sistema solar, e quantas formas diversas criamos para habita-lo, para criar no mundo hostil nosso lugar cativo, nosso cantinho?  Na canção feita por Arnaldo Antunes e Marisa Monte, “Cantinho Escondido”, o lugar ao qual remete a letra, é um lugar no interior dos homens, nas lembranças imemoriais, nos sonhos, nos devaneios. Um lugar carregado de valores de intimidade e acolhimento.

“Dentro de cada pessoa
Tem um cantinho escondido
Decorado de saudade
Um lugar pro coração pousar
Um endereço que freqüente sem morar
Ali na esquina do sonho com a razão
No centro do peito, no largo da ilusão”
    Bachelard através da analise de uma percepção estética provocada por uma imagem poética, desenvolve seu pensamento ontológico sobre a morada humana, sobre o espaço da imaginação, que se desdobra tornando-se um cosmos intimo.
“Porque a casa é nosso canto no mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo. Vista intimamente, a mais humilde moradia não é bela?” (Idem, p.24)
    A casa é uma imagem que traz a integração, a centralização dos pensamentos, lembranças e sonhos dos seres humanos. Sem ela afirma o filosofo, seriamos seres dispersos. A casa, tem valor de proteção, abriga contra as tempestade do céu e da alma. Na letra da música citada, a casa é o cantinho escondido, escondido exatamente porque é dentro, o lugar importa menos do que o valor de intimidade dado ao lugar, que na verdade pode ser qualquer lugar. Por isso a casa onírica, o cantinho no mundo, nós carregamos sempre conosco, pois é nosso corpo e alma.
“Eu posso até mudar
Mas onde quer que eu vá
O meu cantinho há de ir”

    Aos poucos Bachelard vai desenhando, como um poeta-arquiteto, os espaços da casa onírica. Primeiro fala de sua verticalidade, dividindo-a em dois pólos opostos, o sótão e o porão. Um é a racionalidade e o outro a irracionalidade, um leva a pensamentos claros, o outro a lembras obscuras, fantasmas escondidos. Para subir e para descer a casa necessita-se de escadas. As que sempre sobem para o sótão podem levar as mais distante e tranqüila  solidão. As escadas intermediárias são a área familiar, comum, conhecida, facilmente transitável. Já as escadas que sempre descem, levando ao porão, essas enterram em suas profundezas escuras angústias e medos.
    Em outra canção escrita por Arnaldo Antunes, a casa surge ora como nossa morada frente ao universo, sendo tão grande quanto o planeta, cabendo rio e mar dentro dela. Ora como sendo nosso próprio corpo, morada móvel e transitória enquanto seres mortais. E nas duas imagens poéticas pode-se sentir o mesmo valor de intimidade, de segurança e de pertenceimento, por isso o refrão afirma que em ambos os pontos de vista, a nossa casa é em todo lugar, pois sempre estamos nela.

“Na nossa casa amor-perfeito é mato
E o teto estrelado também tem luar
A nossa casa até parece um ninho
Vem um passarinho pra nos acordar
Na nossa casa passa um rio no meio
E o nosso leito pode ser o mar
A nossa casa é onde a gente está
A nossa casa é em todo lugar
A nossa casa é de carne e osso
Não precisa esforço para namorar
A nossa casa não é sua nem minha
Não tem campainha pra nos visitar
A nossa casa tem varanda dentro
Tem um pé de vento para respirar
A nossa casa é onde a gente está
A nossa casa é em todo lugar”
    Ao final desse capitulo Bachelard fala da imagem da “casa do eremita”. Imagem essa que para ele é primordial, representa o mais profundo estado de meditação e interiorizarão do ser humano. Afinal o eremita é o sujeito que se isola, fugindo ao trato social,  com fins contemplativos e espirituais. Em sua cabana ele se fecha ao mundo externo e se abre a seu próprio universo, aceitando inclusive a pobreza de sua morada.
“A cabana do eremita é um tema que dispensa variações. A partir da mais simples evocação, a repercussão fenomenológica   apaga as ressonâncias medíocres. A cabana do eremita é uma gravura que sofreria de um excesso de pitoresco. Deve receber sua verdade da intensidade de sua essência, a essência do verbo habitar. Logo, a cabana é a solidão centralizada. Na terra das lendas, não há cabana média. O geógrafo pode bem trazer-nos, de suas longínquas viagens, fotografias de aldeias de cabanas. Nosso passado de lendas transcende tudo o que foi visto, tudo o que vivemos pessoalmente. A imagem nos conduz. Vamos à solidão extrema. O eremita está só diante de Deus. A cabana do eremita é o antítipo do mosteiro. Em torno dessa solidão centrada irradia um universo que medita e ora, um universo fora do universo. A cabana não pode receber a menor riqueza deste mundo. Tem uma feliz intensidade de pobreza. A cabana do eremita é uma gloria da pobreza. De despojamento em despojamento, ela nos dá acesso ao absoluto do refúgio” (Idem, p.49).
    Tendo como exemplo interpretativo para a filosofia da poesia de Bachelard essas duas letras de músicas populares brasileiras contemporâneas (sabendo que entre a canção e a poesia existe um laço ancestral de irmandade), fica claro que o filosofo busca entre varias imagens poéticas a possibilidade de encontrar uma espécie de arquétipo junguiano (psicanalista muito citado por Bachelard) que represente os valores  ancestrais e inconscientes do verbo habitar, da significação subjetiva e imaginaria da casa, da intimidade profunda que remete ao ser do homem.

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