Quando a garrafa começa a apitar, tiro o café do fogo. Encho uma xícara azul até a borda. O cheiro forte do café me invade as narinas e parece se espalhar por meu corpo, sinto meus poros respirarem café. Busco na prateleira um pote de açúcar. Encho bem uma pequena colher, e vou lentamente mergulhando-a no café. Aprecio o branquinho do açúcar se desfazer no negro do café, e os movimentos ondulantes da superfície liquida formarem círculos que se chocam nas bordas da xícara como as ondas do mar nas pedras. Nesse exato momento me lembro instantaneamente, como que se a lembrança fosse invocada pelo movimento, da Liberdade Azul de Kieslowski. E me senti tal como Julie, lembrando de seu olhar melancólico, perdido no tempo, doce e frio. Parecia que o filme voltara a passar em milha frente, bem ali na mesa da cozinha. O torrão de açúcar, branco e puro, o café negro e misterioso, a dissolução, a morte, o nada, o medo, o sublime... Toca o telefone!
Busco na pilha de roupas amontoadas no armário um casaco, o dia esta cinza e chuvoso, preciso ir ao supermercado. Desço o prédio pelo elevador, e ao chegar no térreo, saio e passo por um senhor, ele entra e eu saio do elevador. Por um milésimo de segundo nos cruzamos, e nos entre olhamos estranhos. Seus olhos pareciam me atravessar-me. Murmuro sorumbático um bom dia, mesmo sem ter certeza do horário. Ele não responde. Não sei bem se não me ouviu ou si nem sequer percebeu minha existência. Será que já me tornei um fantasma em vida?! Sombra de mim mesmo?! Na rua caminho ouvindo o piano de Debussy. E ao atravessara as ruas e jardins, observo as vitrines das lojas, vejo as pessoas que caminham apreçadas, e me sinto tal como um flâneur baudelairiano, vagando pelas entranhas da cidade que pulsa vida sem se dar conta disso, um safari urbano na floresta de pedras, um passei contemplativo no museu do cotidiano. As figuras humanas que passam por mim tem semblantes muito diverso. Atravesso uma multidão de ninguéns, almas distantes, separadas como ilhas no oceano infinito dos desencontros. Vidas dispersas, que não percebem o quanto estão unidas pelo avesso. “Quem não sabe povoar sua solidão também não sabe estar só na oculpadíssima multidão”. Tento olhar no fundo dos olhos dos passantes, para ver se é possível num único olhar captar a essência do instante na primeira percepção, e chegar como que por um atalho do cerne da Coisa em Si. Falsa fenomenologia! As pessoas são universos vastos, como o céu e o mar. Em mim mesmo estou cansado de me perder! A música embala meus passos, e as ruas parecem não ter fim...
Entediado com a vida, busco na literatura e no vinho a desculpa para a existência desnecessária. Taça cheia sobre a escrivaninha, velho romance de Dostoiévski nas mãos. E o tempo-espaço se deslocam , expandem e desdobram dentro das paredes do meu quarto. A vida mesquinha e desprezível fica longe, alçado que sou pele literatura a pura consciência que conhece. A cabeça de anjo sem corpo que observa atenta os mínimos detalhes das vidas dos seres humanos, se embolando entre si, dando nós no destino. O vinho liberta e incita a imaginação e o devaneio, sensibiliza o corpo e o espírito para a contemplação apreciativa, entorpece a razão e as convenções enganadoras. E das páginas do livro sorvo vidas que não são minhas, aumentando assim meu próprio viver, agrupando a minhas histórias outras histórias que passam a ser a mesma, mas sempre diferente, sempre reescrita e por escrever. A literatura é um labirinto metafísico que se afasta da vida real no mesmo movimento que se aproxima dela. Tiro os olhos do livro e pela janela miro ao longe as pessoas que passam. Parecem elas menos reais do que as do livro, ao longe parecem corpos mecânico sem vida, pré-programadas. É no microscópio da literatura que o homem se abre se revela e se desdobra em mil espaços sem fim...
Cai a chuva lá fora. O som das gotas massageia meus ouvidos. Sentado na poltrona me masturbo lentamente. A garrafa de vinho acabou e sinto meu corpo aquecido por dentro, como se o vinho ascendesse a lareira da alma. Me lembro do Foucault falando sobre o onanismo no século XVIII. O poder perpassando as forças do prazer, do corpo, do sexo, da vida. Afinal eu poderia ser um lunático ou contraventor, realmente de perto ninguém e normal, nisso ele concordava com o Caetano. Mas no fundo mesmo, o onanismo é o símbolo da auto-suficiência e do amor próprio. Em pensamentos busco ela, a que não sei o nome, a figura distante dos meus sonhos, a musa moribunda e ideal dos poemas românticos, os lábios de Brigitte Bardot, as mulheres que já tive e as que nunca terei. Deliro, derreto na poltrona, não há mais antes nem depois, o tempo se fundiu as coisas, enfim se tornou a pele quente e macia das coisas, pulsando e escorrendo pelo espaço. Me esvaio em prezares mórbidos e já não anseio por nenhuma ação, fato ou acontecimento. Chama-me o não-Ser, a total inércia, a eternidade. A Terra parou e somente eu posso faze-la se mover com meu mover, mas não quero. Me estendo no espaço e acendo um cigarro... Tocam a campainha! Deve ser o porteiro trazendo a corresponderia. Que me importa! Não espero mais nada de ninguém, nem vou atender...
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