quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A Queda


   Na entrada do café ela corria livre e despreocupada, como se nada no mundo fosse mais importante do que correr e nada pudesse impedi-la de faze-lo. Era ela, em sua prática lúdica e desinteressada, rainha de todo seu universo, como pouco conhece, tudo o que tem já é demais, e assim, correr e saltar  lhe pareciam a maior façanha já vista, e ela se deleitava quase em êxtase nesses movimentos tão simples. Parecia desbravar mundos infinitos ao descobrir a força das pernas que produz velocidade e o impulso dos joelhos que lançam o corpo em saltos curtos pelo ar. Descobrir as próprias pernas é como descobrir um novo continente ou mesmo planeta, para quem a pouco viera do Nada, que é o Tudo!
    Era apenas uma garotinha de uns 3 ou 4 anos, vigiada de longe pela mãe. Mesmo pequenina parecia chamar a atenção de todos, nem tanto por suas formas graciosas quando por sua infinita e ingênua  ousadia e sua alegria pueril, intensa e efêmera, a qual só é possível atingir quando não se carrega lembranças demais ou esperanças a mais, impossível para a maioria dos adultos que estão seguros de mais em seus conceitos petrificados ou amedrontados de mais por sua falta de conceitos. A criança livre das amarras do super-eu controlador e delimitador, corre inconseqüente, e como tudo que é muito livre, beira sempre a própria destruição. 
    É interessante como a simples imagem de crianças pequenas  provocam instantaneamente em espíritos mais sensíveis uma forte sensação de compaixão. A compaixão entendida como uma espécie de identificação intima com o sofrimento alheio, nos dizeres de Schopenhauer.  No caso de uma criancinha o que traz a compaixão não é exatamente o sofrimento, mas sim a precariedade da vida que nela se revela, tão intensa e ao mesmo tempo tão frágil.     A garotinha corria de uma lado para o outro, por entre as pernas dos passantes, sem nenhuma noção segura de espaço ou tempo, ela simplesmente corria sem parar, sem saber porque ou para que, ela corria e a sensação momentânea a bastava complemente, a pura experiência livre de conhecer o mundo e a si mesma. Ela corria por sobre incertas e pequeninas pernas desajeitadas, o corpo erguido em um instável equilíbrio, cambaleava tortuoso, os movimentos escapavam inteiramente de suas orbitas, e ainda assim ela corria. E a todos que a olhavam era clara a sensação da queda, menos para ela mesma, que corria e corria. A mãe angustiada, tentava para-la, mas o que são palavras de precaução frente a experiência insólita da vida que se apresenta nova e única?! E enfim o que é a queda, se não parte efetiva da condição humana(lembremos o mito bíblico da expulsão do homem do Éden, ou o mito poético de Milton que narra a queda de Lucifer, pai da humanos)?! Como Ser que sai da perfeição do Uno para a incompletudo do particular. Queda e ascensão depois da queda! O projeto falho, mas insistente,  de um Deus consciente!  Nos esquecemos as vezes, ou fingimos esquecer, que a vida é frágil e incerta, que no fundo estamos sempre correndo em uma corda bamba, tão desamparados quanto uma criancinha, talvez por isso, ao vermos uma, expressamos um leve sorriso no canto da boca. Ela nós lembra a precariedade da vida, mas também nos mostra que mesmo improvável a vida segue em suas possibilidades e impossibilidades, em seus absurdos, em seus milagres.  
    Toda a correria da jovem caloura da  existência, termina com um encontrão em pernas estranhas.  A queda, o susto, a dor, o choro, o consolo, o recomeço. Mesmo não sendo mais criança, essa lógica da experiência e do aprendizado ainda me assustam, e as vezes ainda choro! Mas  não podemos parar de correr, e ai vale muito a lição do capoeira, que como diz a canção: “se um dia ele cai, cai bem”.
     

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