segunda-feira, 15 de março de 2010

Superquadra

Na área da escala residencial, na superquadra da cidade moderna, observando um pequeno recorte de realidade perdida no banal, olho ao longe... Há um prédio residencial, em sua frente um pequeno campo verde com um parquinho infantil de areia ao lado, equipado com balanço e escorregador. Ali se desenrola silenciosa toda uma dinâmica social. Existem bancos públicos espalhados separadamente ao redor do local. Em um deles estão as domesticas e babas que trabalham para as famílias que moram no prédio. Elas descem com os animaizinhos da casa, os cachorrinhos e as criancinhas, os quais não hás pertencem, mas a função de cuidar deles é delegada a elas.O porquê de tal fenômeno, responsabilidade familiares terceirizadas, parece obvio frente as exigências do mundo capitalista do século XXI, porém não me cabe aqui discuti-las. Com cada coisa em seu lugar, cachorrinhos no campo de grama, criancinhas no parquinho, elas se reúnem em um banco e começa a conversa... Uma comenta com as outras duas sobre o novo porteiro do bloco C. Todas concordam de que ele é do tipo bonitão, mas cafajeste... Enquanto uma relembra o último capitulo da novela lamentando não poder ter um final feliz como o da protagonista, a outra comenta sobre os despudores da vizinha do 403 que se encontra com o amante todas as quartas-feiras quando o marido sai com os amigos para assistir futebol ( ou pelo menos é isso que ele afirma).
Poucos metros ao lado, em outro banco, estão vários adolescentes da escola pública matando aula de matemática, afinal o que são os números ante a inconsciente ânsia de vida da juventude. Eles riem alto e contam piadinhas machistas e preconceituosas sobre loiras e gays, tentando claramente afirmar suas ainda débeis identidades sexuais masculinizadas. Atravessando a superquadra uma jovem caminha vagarosamente com sua avozinha de mais de noventa anos. A anciã lembra seus anos de juventude com nostalgia, contando-os como se assim pudesse revivê-los, a memória do passado é tudo para quem já não consegue imaginar o futuro. Sua jovem neta a acompanha, fingindo se interresar pelo assunto da velha, talvez por um peso moral já que ela paga seus estudos com a aposentadoria da avó. Enquanto caminha, a jovem flerta com dois rapazes que estão sentados nos banquinhos mais afastados próximo a uma arvore do outro lado do campo de grama, ela pensa consigo mesma:
- Será que toda a malhação deu resultado? Será que estou tão bonita como a Juliana Paes? E essa maldita celulite que não me larga?! Será que um daqueles rapazes gostaria de tomar uma cerveja? Será que gostaram de mim? Os dois rapazes no banco afastados fumam “disfarçadamente” um cigarro de cânhamo que é hipocritamente proibido só no papel pelo conservadorismo de nossa sociedade. Eles conversam exaltados sobre a derrota do Flamengo no jogo de ontem. Um deles discursava tal qual falasse sobre paz mundial, sobre a importância do Zé no ataque da equipe, quando seu amigo chama sua atenção para a “gostosa” que esta passando.
No parquinho brincam dois garotinhos, e mais ou menos uns quatro ou cinco anos, um deles resolve num impulso mostrar seu pênis ao outro garoto, sexualidade infantil afirmaria Freud, talvez sinais de homossexualismo na infância. Isso meu simplório olhar não pode responder, só especular. Com um carrinho de supermercado, passa embaixo do bloco, uma apreçada dona de casa que acaba de fazer compras para o almoço do dia. Seu carrinho e carregado por um funcionário do supermercado, um tipo moreno, alto e magro, com grandes óculos de lentes grossas e cara de entediado, ele parece disposto a atropelar a senhora com o carinho só para proporcionar algo de diferente em seu cotidiano maçante, afinal de que vale um empreguinho simplório e mal pago se as contas e prestações em casa só aumentam?! A dona de casa só consegue se preocupar com o tempero do feijão, o qual o marido já reclamou no dia anterior, errar novamente seria para ela o inicio de uma nova crise de depressão.
Em baixo do bloco parado, sentado em uma cadeira de rodas, com semblante apreciativo e olhar perdido esta um velinho de fisionomia decrépita. O enfermeiro contratado para cuidar dele, figura muito semelhante em sua função com a das domesticas e babas com seus cachorrinhos e criancinhas, lê uma revista reacionária e massificante, dessas de grande circulação no país, quase que se esquecendo de verificar a cada dez minutos se o moribundo senhor ainda respira. O velhinho, com uma mão agarrada a Vida e a outra a Morte parece lançado em um peculiar estado de consciência, seu olhar para transpassar as imagens da matéria e vislumbrar calmamente a metafísica do mundo. Será esse mundo gerido por um Deus, uma consciência epifenômena? Será como uma máquina divina e eterna com seus mecanismos e regras? Será tudo fruto da Natureza, força incontrolável, caótica e imoral? Não se sabe o que o pobre velhinho vê, se mais ou menos do que eu! A verdade é que cansado de ver e impossibilitado de falar ele solta leve e quase imperceptivelmente um vago e debochado sorriso de canto de boca, como quem já não mais suporta a existência trágico-comica dos seres humanos e fechando os olhos entrega-se ao sono, irmão da morte. Para ele o Tempo parece não mais existir, enquanto para meus olhos o Tempo só se multiplica fragmentando-se no espaço, sempre continuo e passageiro...

Nenhum comentário: