quarta-feira, 31 de março de 2010

Ensaio literário: Clarice e a Natureza

“Não ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias. Eles às vezes clamam do longe de muitas gerações e eu não posso responder senão ficando desassossegada. É o chamado” (A descoberta do mundo, p.337).

Clarice Lispector tanto em sua vida particular quanto em sua obra literária reflete um peculiar interesse, mistura de respeito e assombro, sobre a natureza da vida animal. É só nos lembrarmos da barata do livro A paixão segundo G.H, que se torna personagem importante ao servir de ponto de partida para a epifania de G.H, que ao deparasse com o inseto, criatura não humana, adentra uma profunda reflexão existencial sobre o que é o humano. As baratas surgem novamente em uma crônica chamada Cinco relatos de um tema, mas que de acordo com a própria autora também poderia se chamar Como matar baratas. Além das baratas há na obra de Clarice constantes referências a cães, como no livro infantil Quase de verdade, onde quem fala é seu cão Ulisses e na crônica intitulada Bichos onde Clarice lembra com saudades de seu cão italiano Dilermando. Não poderia me esquecer de citar o lugar, talvez privilegiado, da galinha nos escritos de Clarice. Essa surge tomando diferentes significações e assumindo diferentes metáforas no conto O ovo e a galinha, mas também em sua simplicidade animal em contos como Uma galinha e Uma história de tanto amor. Nesse breve ensaio tentarei analisar o discurso literário de Clarice Lispector buscando interpretar sua visão sobre a natureza animal como forma de se perceber os limites do universo humano frente a grandiosidade da Natureza entendida como ente divino e fonte de toda a vida.
É inegável o poder que Clarice delegava a visão, ao olhar. Em muitos de seus escritos seus personagens passam por momentos de revelação apenas com a visão de alguma coisa que as toca profundamente, seja uma pessoa (no caso do conto Amor), um vegetal (no caso do conto A imitação da rosa) ou um animal (no caso da já citada A Paixão segundo G.H). Sendo assim Clarice inicia a crônica Bichos com as seguintes palavras:
“Às vezes me arrepio toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão deles. Pareço ter certo medo e horror daquele ser vivo que não é humano e que tem os nossos mesmos instintos, embora mais livres e mais indomáveis. Um animal jamais substitui uma coisa por outra, jamais sublima como nós somos forçados a fazer. E move-se, essa coisa viva! Move-se independente, por força mesmo dessa coisa sem nome que é a Vida” (A Descoberta do mundo, p.332).
Nesse trecho é possível perceber o poder revelador do olhar, além disso Clarice afirma seu horror em lidar com o não humano, mas que mesmo assim compartilha algo primitivo e originário conosco, os instintos. Os instintos são nossa parte animal, e que de acordo com Freud em seu artigo O mal-estar na civilização, foram duramente reprimidos em favor do desenvolvimento sociocultural da civilização. O tema da oposição entre Cultura e Natureza está presente na obra de Clarice, os animais simbolizam de forma ambígua tanto a nostalgia quanto a repulsa das origens humanas na natureza.
“ No romance de nossa escritora, a barata, presença ativa, fascinante e destrutiva, opõe-se à da mulher que a vê. Essa oposição geradora de conflito constitui, pela maneira como se resolve – a ruptura com o mundo humano - , um caso-limite da oposição geral entre Natureza e Cultura a que nos referimos. O inseto desempenha nesse conflito um papel de mediador. (...) É um mediador e um emissário a serviço da natureza selvagem que absorverá G.H durante o êxtase” (Benedito Nunes, O drama da linguagem, p.131).

Mas assim como a experiência de G.H envolve um despersonalização, uma ruptura com o mundo humano definido pela linguagem, envolve também a percepção da vida como algo mais amplo que o humano, que ultrapassa os limites da inteligibilidade. Se o universo humano pode ser vasto o universo não humano é sem dúvida muito mais, e é isso que surge nas entrelinhas da crônica As águas do mar:
“Ai está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos” (A descoberta do mundo, p.470).

Clarice nos fala que tanto o mar quanto a mulher são em suas essências ininteligíveis, porém o que torna o humano o mais ininteligível dos seres vivos é a pergunta que esse faz sobre si mesmo. Para mim isso simboliza a questão da consciência reflexiva, instrumento da mente humana que possibilita indagar-se e assim criar representações sobre si mesmo, que se multiplicam e entrelaçam com o tempo tornando a existência humana cada vez mais complexa e relativamente afastando-nos da Natureza. Quanto mais os seres humanos desenvolvem sua linguagem, sua cultura, seus conhecimentos, mais se tornam livres, podendo escolher e agir diferenciadamente dentro da Natureza. E ao mesmo tempo, paradoxalmente, se tornam prisioneiros de suas próprias invenções afastando-se de seus desígnios instintivos. E na mesma crônica ainda podemos ler: “Porque é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga” (A descoberta do mundo, p.470). Os animais estão sempre de acordo com seus instintos e seu meio ambiente, por isso ontologicamente falando tem seu Ser completo, não há em sua existência conflito, insatisfação ou busca. Ao contrário, o ser humano é incompleto, designado na filosofia sartriana como ser-para-si ele tem como missão de vida inventar-se a si mesmo.
“Os animais gozam no mundo de Clarice Lispector, de uma liberdade incondicional, espontânea, originária, que nada – nem mesmo a domesticação degradante de uns, nem a aparência frágil e indefesa de outros – seria capaz de anular. Se o reino que eles formam está, conforme observamos linhas atrás, firmemente assentado na própria Natureza, é porque se acham integrados ao ser universal de que não se separam e de que guardam a essência primitiva, ancestral e inumana” (Benedito Nunes, O drama da linguagem).

Em sua perspectiva sobre a Natureza Clarice demostra uma visão humanistica oposta a de filósofos renascentistas como Francis Bacon, um dos fundadores do pensamento científico moderno, que interpretava a Natureza como uma fonte inesgotável da qual o homem como mestre devia servir-se. Em sua visão Clarice não desqualifica o ser humano, mas não o considera mestre da Natureza, e sim uma pequena parte dela, e que para ela deve regressar uma hora, visão essa que se aproxima muito mais de um humanismo nietszcheano. Em uma de suas crônica intitulada Doçura da terra, fica clara essa imagem da Natureza, que inclusive pode ser comparada ao provérbio bíblico que diz, “do pó vieste e para o pó retornarás”.
“De algum modo tudo é feito de terra. Um material precioso. Sua abundância não o torna menos raro de sentir – tão difícil é realmente sentir que tudo é feito de terra. Que unidade. E porque não o espírito também? Meu espírito é tecido pela terra mais fina. A flor não é feita de terra? E pelo fato de tudo ser feito de terra – que grande futuro inesgotável nós temos. Um futuro impessoal que nos excede. Como a raça nos excede. Que dom nos fez a terra separando-nos em pessoas – que dom nós lhe fazemos não sendo senão terra. Nós somos imortais. E eu estou emocionada e cívica” (A descoberta do mundo, p.172).

Mesmo com toda a produção de conhecimento, com a ciência moderna e toda a sua alta capacidade de manipulação e exploração da Natureza, hoje vivemos no mundo uma crise ambiental, aquecimento global, poluição das águas e do ar, desmatamento de florestas etc. Isso nos chama a atenção para a necessidade de uma mudança de perspectiva frente à Natureza, pois dependemos dela e de sua preservação, sendo impossível controlá-la totalmente. Clarice já mostrava uma sensibilidade para com a Natureza e a certeza de uma ligação com ela que não pode ser rompida, e antes outros já pregavam a mesma idéia.
“O homem vive da natureza, isto é, a natureza é seu corpo, e tem que manter com ela um diálogo ininterrupto se não quiser morrer. Dizer que a vida física e mental do homem está ligada à natureza significa simplesmente que a natureza está ligada a si mesma, porque o homem dela é parte” (Marx, 1975: 328).

Em outra passagem da crônica Bichos, Clarice fala novamente do assombro que sente na presença dos animais, que se configuram como uma espécie de símbolo que invoca no humano sua própria animalidade, tal chamado da Natureza animal pode ser uma experiência assustadora e ao mesmo tempo um processo de autoconhecimento.
“Ter bicho é uma experiência vital. E a quem não conviveu com um animal falta um certo tipo de intuição do mundo vivo. Quem se recusa à visão de um bicho está com medo de si próprio. Mas às vezes me arrepio vendo um bicho. Sim, às vezes sinto o mudo grito ancestral dentro de mim quando estou com eles: parece que não sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho, e me confundo toda, fico ao que parece com medo de encarar meus próprios instintos abafados que, diante dos bichos, sou obrigada a assumir, exigentes como são, que se há de fazer, pobres de nós” (A descoberta do mundo , p334).

A galinha aparece repetidas vezes na obra de Clarice como já citado, no conto Uma história de tanto amor, a narradora conta a história de uma garotinha que de tanto observar as galinhas conhecia-as intimamente e amava-as. A garota cuidava de suas duas galinhas de estimação como se fossem gente, dando-lhes inclusive remédios para o fígado, afim de prevenir que elas adoecessem, já que passavam o dia comendo porcarias do chão.
“A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandezas inerentes à própria espécie” (A descoberta do mundo, p.123).

Em determinado momento da narração as galinhas são devoradas pela família da garota, que fica muito magoada com o acontecido. Sua mãe então lhe explica que quando comemos os bichos nós os tornamos mais parecidos conosco, guardando-os dentro de nós. Tal explicação convence a garota, que futuramente arruma outra galinha de estimação, chamada Eponina, mas desta vez não hesita em comê-la.
“Mas a menina não esquecera o que sua mãe o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinha feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, em um ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens” (A descoberta do mundo, p.124/125).

Apesar de toda a sua sensibilidade para com a natureza animal, Clarice parece aceitar o fato de que toda a vida se alimenta de morte e vice e versa. Os animais em sua condição natural fazem parte de uma cadeia alimentar e o ser humano não esta fora disso, por isso não há violência ou opressão alguma em comer animais (mantendo é claro o devido respeito as formas de vida, coisa que nem sempre é considerada na cruel indústria da carne). É interessante repararmos na analogia que esse trecho faz com o ritual cristão de comer a hóstia, que representa o corpo e o sangue de Cristo compartilhado por seus irmãos. Algumas tribos indígenas antropofágicas no Brasil também assumiam um ritual parecido, onde comiam os inimigos em uma cerimônia, afim de incorporar suas habilidades. Assim sendo parece que Clarice considera o alimento de origem animal uma forma de incorporarmos a própria Natureza. A galinha morre para dar a vida a quem a come, em um ritual pagão sagrado, que envolve o amor como forma de associação, união, fusão dos seres.

Um comentário:

Lívia Azzi disse...

Este reflexivo ensaio é tão belo e indagador quanto os textos de Clarice. Há muito intuo profunda reflexão filosófica na literatura de Lispector, entretanto não conseguia estabelecer analogia porque preciso conhecer mais... Obrigada por compartilhar essa linda abertura.