quinta-feira, 15 de julho de 2010

O soberano

Um dia desses qualquer, sentei-me em um boteco desses que ficam na parte de traz da comercial das superquadras. Era um lugar pequeno, simples e com um estética undergroud de abandono e imundice. Porém, as mesas postas em baixo de uma marquise, ficavam de frente para a uma área bucólica, um grande jardim repleto de belas arvores, o que criava uma paisagem calma e agradável. Poucas mesas estavam ocupadas, de um lado um casal, do outro um grupo de velhinhos jogando cartas, mas não pude deixar de reparar em uma mesa ao fundo, no canto, a figura de um homem sentado sozinho. Era um senhor de barba grisalha, grandes óculos quadrados e uma boina tipo francesa.  Em cima de sua mesa uma garrafa de cerveja e um copo com uma generosa dose de cachaça, de cor amarelo escuro como um veneno forte. O homem fumava um cigarro como se fosse um imortal para quem o tempo não existe. As longas e profundas tragadas que cobriam seu semblante de fumaça dando-lhe um ar misterioso, denunciavam o prazer e a dedicação a ação. Os olhos por de traz das lentes pareciam dois peixinhos dourados perdidos em um aquário. Ele mirava resignado o Nada, e voltava toda a sua atenção para o além do além, para o vago, o abstrato. Tudo ao seu redor eram inúteis banalidades, e sua solidão parecia infinita. A face rija não transparecia paixão ou desespero. O homem era pura melancolia. E imerso nessa melancolia ele parecia um soberano, altivo, nobre e intocável, como se nada nem ninguém pudesse abalar seu humor introspectivo. Ele ergueu como que uma torre de marfim, e isolado nas alturas observava o mundo dos homens como se fosse um enorme formigueiro, tão belo quanto insignificante.
    Não sei dizer bem o porque, mas não conseguia parar de olha-lo, algo em sua imagem invocava em minha alma sentimentos obscuros, enigmáticos, insondáveis. Ao contrario do que se pode pensar, sua brutal indiferença a tudo  não me dava a impressão de prepotência, mas sim de um recolhimento integro e sensível, de quem corajosamente encara de frente suas tristezas e coroa sua fragilidade como o que há de mais humano, diferentemente do que o mundo hoje prega. Isso despertou em mim uma profunda compaixão, mas compaixão não no  sentido de piedade, pois em sua imensa dignidade ele não merecia isso, mas sim compaixão no sentido de identificação com a dor alheia, como quem reconhece um irmão de sofrimento. Pois na verdade todos sofremos de uma forma ou de outra, a diferença é que para uns isso é como uma chaga que deve ser coberta, escondida, ignorada, renegada, para outros mais sóbrios sobre a existência, o sofrimento é um preço a ser pago inevitavelmente por se ter uma vida sensível, um mal que não impede que dele brotem flores. Por um instante pensei em aborda-lo, quem sabe dizer-lhe algo ou apenas cumprimenta-lo, mas não. Preferi o silêncio que poupa da tolice. Há coisas que devem ser guardas em segredo, no fundo dos olhos, para preservarem sua beleza rara. Como as bolas de sabão, delicadas a visão e avessas ao toque.
    Em verdade, devo dizer que tudo que vi despretensiosamente naquele velho homem singelo, não poderia ter visto se não fosse tudo um reflexo de mim mesmo.

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