domingo, 7 de fevereiro de 2010

Almoço

O almoço deve ser o ritual mais sagrado da família cristã ocidental brasileira. Pois independente dos verdadeiros sentimentos e da união dos membros, eles sempre se reúnem diariamente e na mesma hora ao redor da mesa, em prol do bem mais essencial da vida, o alimento. É a fome do corpo a grosso modo que une os indivíduos da família ao redor da mesa, é claro que por detrás disso existe outros símbolos, metáforas para sentimentos mais subtis e silenciosos, que se escondem no interior da banalidade dos gestos cotidianos, mas que por serem mais subtis não são menos concretos do que a comida que se coloca nos pratos e nas bocas. Há uma leve tensão no ar, que se desenrola ao som dos garfos e facas que arranham os fundos dos pratos, os copos que batem o fundo na mesa, as mandíbulas que mastigam a comida calando a boca e dando voz ao silêncio que narra o ambiente pesado de fuligem sem precisar de palavras. Os olhos se entre cruzam disfarçados evitando a frontalidade do encontro rosto a rosto. Os assuntos são poucos, quase nenhum, espaçados e desconexos, se dão muito mais por nervosismo e constrangimento do que por sinceridade. Só a criança a mesa traz assuntos sinceros. Inocente e despreocupado o garoto discursa sobre sua vida simples e profunda aos quatro cantos, ora ou outra ouvindo uma reprovação adulta: "“mastiga menino!”. O patriarca sentado na ponta da mesa em seu lugar cativo, milenarmente reservado pela tradição dos antepassados, observa a família como seu reino, sua justificativa na Terra, ignorando a decadência de seu poder, fingindo-se sereno e altivo. E assim prossegue a farsa muda, como um ritual religioso onde se alimentam o corpo e a alma. O corpo de carne e pão, a alma de amor e ódio. E é isso que nutri os laços paradoxais da família, as raízes mais profundas e negras.

Um comentário:

Silvério da Rocha e Silva disse...

Caro Ataulfo

Conforme nossas reflexões fílmicas e outras angútias já discorridas, acredito que seja este um bom exemplo de fragmentação do tempo e da banalidade cotidiana tão presentes em nossas vidas. Poderíamos conseguir um registro visual deste momento para nosso ensaio... no melhor estilo paparazo. Abraços Silvério