domingo, 4 de setembro de 2011

O eterno retorno, linguagem e cotidiano, a palavra poética


É fácil perceber o paradigma de Heráclito, o de que tudo está em constante movimento, por isso, tudo muda, nada permanece se não o próprio ciclo das mudanças. Basta observar as folhas que caem das árvores na calçada, apodrecem, morrem, e novamente nascem. Passando de um verde robusto, a um amarelo pálido sobre o sol, até um marrom seco e moribundo, para enfim tornar-se alimento da terra, e logo, de volta ao topo das árvores no regresso da nova estação. Ou os pêlos do rosto, que cressem desgovernados mesmo  quando insistimos em raspa-los, pois não se pode controlar totalmente o corpo, ele também tem suas leis, e se mexe, se transforma, envelhece, adoece. E os mesmos pêlos que crescem viram um dia a cair, com a mesma certeza que temos de que nos espera a Morte por detrás do horizonte. E o rosto está sempre a mudar diante do espelho, como  um mosaico que se pode remontar. Da mesma forma o planeta, sempre em um silencioso movimento transformador, de rotação, de translação, de aliteração. Os movimentos internos, o intestino do mundo, as eras geológicas, os dinossauros, depois os macacos, quem sabe logo as máquinas dos contos de  Asimov, a evolução, a involução, a mutação. O universo é marcado pelo signo da transitoriedade e da repetição. Essa lei do universo, regida implacavelmente pelo Tempo-Rei, que tudo cria e tudo devora, pode vir a ser  perturbadora aos espíritos que sobre ela se deterem em reflexão. O que fazer frente a esses ciclo de mudanças infinitas, esse Samrara vertiginoso nesse globo da morte, que apavora nossa fragilidade e efemeridade com sua monstruosidade inevitabilidade?
E eis que se fez o verbo!
    O que se ganha com a palavra é a possibilidade de se elevar a realidade das coisas e dos seres a um novo nível, onde surge um novo campo de ação. Onde nos desprendemos do instante, nos abstraímos do aqui e agora e esquecemos temporariamente a urgência da vida. A linguagem busca um certo controle sobre o real, múltiplo e desordenado. A linguagem vem de um principio organizador, catalogador, virtualizador, que tem como  função primordial a organização do trabalho coletivo. A palavra transmite grosseiramente sensações e pensamentos (na verdade ela nasceu gêmea do pensamento) através de associações e generalizações, que parecem gerar um tipo de controle sobre as coisas ao nosso redor e sobre o que podemos fazer delas sem elas saberem.  Quando digo gato, me refiro a uma  espécie com muitas singularidades e variações entre seus membros. Mas a palavra gato, ao ser pronunciada transforma todo um gênero animal diverso, em signo, que reúne uma serie de características relativamente constantes capazes de invocar pelo som da boca, através dos ouvidos, a imagem que se guarda historicamente de um gato. Pois linguagem é memória coletiva. Ao dominarmos abstratamente a imagem do gato tornando-a em palavra, podemos agora inseri-la como carta em um baralho lingüistico, que nos possibilita agir sobre o gato, sobre o real, coordenar, articular, construir, dar significado e objetivo. A boca que pela primeira vez pronunciou os primeiros sons, ainda desarticulados, prenunciou a cultura. 
    Na palavra apoiamos nossa angústia de um mundo em eterna mutação, em uma vida mareada em um vai e vem cansativo. Onde a única certeza, é que o Ser, parece nunca Ser, parece que esta sempre no que virá.  Com a linguagem governamos em um outro mundo que não o mundo que nos governa. A palavra já é simulacro, vive paralela ao real, o qual ela contem apenas em parte. E com isso erguemos nossa cultura, nossa história, nossa tradição, nossa sociedade, nossos hábitos e costumes, nosso dia a dia. Um castelo de palavras! E erguemos a cabeça todos os dias pela manhã, certos de que estamos vivos, e de que faremos no dia o que o dia necessita, tomaremos café, sempre  com duas colheres de açúcar, os dentes bem escovados, o transito matinal pela mesma avenida, as noticias repetidas no noticiário da rádio, as pessoas transitando pelas ruas, os comprimentos cordiais, ao porteiro do prédio, a secretária, ao seu Joares da padaria,  a fila do banco, as batatas fritas do almoço, a cerveja do fim de tarde, aquela mesma música cantarolada no chuveiro. Tudo para mantermo-nos distraídos do mais obvio e assustador,  que a cada passo existe sempre a possibilidade do abismo, e de que o que ficou para traz, sempre regressa diferente.
    Começamos a construção de nosso cotidiano na linguagem, nas palavras que repetimos todos os dias e que geram as mesmas situações, repetidas vezes. As palavras que guiam nosso porque e para que. Pronunciamos os signos sociais como chaves, onde portas podem se abrir ou se fechar. Nos transpassa e compõe todos os discursos acumulados da história, os discursos políticos, econômicos, estéticos, morais etc. Tudo contido como DNA da palavra.  Nos fazemos entender pela constância dos sons que produzimos, pelos significados compartilhados e registrados, pela palavra do dicionário, nas gramáticas sociais. Nas palavras mais banis, nos gestos mais despercebidos, ai vive nosso cotidiano(olhar para os dois lados da rua como uma lei sagrada) essa repetição que parece recobrir toda a realidade com uma leve película de controle e tédio. Onde tudo parece certo e necessário. Como se realmente pudéssemos controlar o fluxo da vida e alinhar o tempo em nossas categorias cognitivas de passado, presente e futuro, e saber logo o que virá, com a mesma certeza que achamos que sabemos o que se foi. A linguagem inventa o cotidiano, que cria a sensação de constância, de continuidade, de objetividade. Dissimulamos no hábito herdado e construído, a verdade terrível, de que por debaixo dessa crosta de verdades arquitetadas e provisórias, estamos montados sobre o imponderável, o impassível, como se estivéssemos tragicamente atados sobre as costas de um  tigre.
    A palavra vem então para estabilizar, para sedimentar o conhecimento sobre o mundo em mundo conhecido. Mas  a mesma palavra que sustenta nossos sistemas de crenças, também pode ela mesma subverter o próprio  sistema, quebrar a cadeia lógica, escapar as regras da gramática, e reinventar o mundo inventado. Na palavra a seta para o infinito desconhecido. Esse é a palavra poética, que ao contrario da palavra dicionarizada, técnica, instrumental, que transforma as coisas em signos vazios, blocos de significados congelados que podemos jogar de um lado para o outro em nossas frases, na hipocrisia da retórica do convencimento. É uma palavra viva, autônoma, rebelde, livre, que diz o indizível (o que nem todos podem ouvir), que busca tocar o âmago das coisas, a gosma da existência intima, que invoca no espírito o imemorial. Não a palavra-controle, mas a palavra-amplidão. As reticências que sobram em cada poesia. O sentido oculto e único que cada sujeito nela pode imprimir. Ai surge a possibilidade da linguagem, pura artificialidade, tocar levemente a superfície do real, e se constituir como parte dele, como sua extensão no coração dos homens, como ponte para o Ser. A palavra que fluí, que não é mas esta em transito, que acompanha o devir do mundo. Não a palavra no papel, estéril, mas a palavra gravida, fértil, semente de girassol, que pula do papel e corre pelo espaço a fora. A palavra bruta, palavra-som, a palavra-pensamento, a palavra-sentimento que se transubistancializa na boca do poeta em palavra-materia, palavra-carne, palavra-mundo. Palavra que navega por sobre as ondas do  tempo, na eternidade.

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