segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Reflexões na ponta de um cigarro


      Ah a fumaça do cigarro! Fluindo por entre meus lábios, de matéria tão leve quanto a palavra que flui pelo mesmo orifício, vácuo etéreo, palavra fumaça. Quando fumo, sinto esvanecer de mim todos os pensamentos, antes tão pesados com sua carga de angústia, agora,  leves pairando pelo ar, dançando abstratos e efêmeros. Sinto o vazio do corpo ocupado pela fumaça tragada, preenchido, inflado, comportado.  Em seguida, o retorno do vazio provocado pela baforada. Oco novamente, casca abandonada.
    A fumaça simboliza a leveza, e esse é o principio do fumar. Fumo quando me sinto deveras cheio. Depois do almoço, estômago lotado. Depois da leitura, espirito carregado. Depois do dialogo, palavras e ouvidos saturados. Fumo para me esvaziar, descarregar seja lá o que carrego, sentir o movimento que leva ao vazio. A saída do ocupante, a libertação do espaço ocupado, o nada novamente. E o que vira para novamente ocupar-me? Outra tragada, de fumaça, de bebida ou de esperança, quem sabe tragarei sonhos e ilusões! Trago a mim mesmo e ao outro, sou tudo e logo sou nada, entra e sai, vai e volta.
    O fumar também simboliza o tempo, a passagem gradual dos minutos dentro de cada cigarro, a repetição do gesto, da mão a boca, da boca a mão, o eterno retorno. Fumo para abstrair a  cruel ditadura do tempo que oprime. Pois quem fuma, mesmo sem tempo encontra tempo para fumar, e em pequenos fragmentos do cotidiano criam brechas temporais, dispõem-se do tempo funcional e obrigatório para a presença rápida de um cigarro libertador. Acende, traga, sopra...acende, traga, sopra... acende, traga, sopra. Assim se repetem em poucos minutos um tempo infindo, uma duração incalculável, que zomba do tempo dos relógios, pois nesse breve instante só a fumaça dita o tempo. A fumaça, sempre tão misteriosa, enigma da matéria, fronteira tênue entre o existente e o desistente.
    O cigarro torna-se espelho, objeto de reflexão, ponte, portal, válvula de escape do pensamento. Cada cigarro é como uma pergunta sem resposta, e que importa mesmo as resposta? Se cabe a inteligência sempre questionar as resposta em um espiral sem fim! Fumo e penso, penso e fumo, como se os dois exercícios se interpusessem no mesmo movimento lento e ritmado, de corpo e alma. Quando trago profundo a fumaça do cigarro sinto a vida que me invade e anima meu corpo. Sinto a mucosa que reveste minha boca, minha garganta, os alvéolos pulmonares  se expandindo. Sinto mesmo o ato da respiração como coisa essencial. Quase sempre nos esquecemos que antes de todos os problemas vem a respiração. Por ser um movimento repetitivo e involuntário na maior parte do tempo, não nos damos conta de que ele acontece sempre, ininterrupto, maquinal, indispensável, orgânico, vida. As vezes percebemos melhor as coisas pelo seu negativo, sua falta ou desarmonia. Quando corremos muito e nos cansamos, sentimos a respiração ofegante, percebemo-la pela falha, pela falta. Quando caminhamos e temos uma pedra no sapato, sentimos sem cessar o contorno do pé, pelo desconforto, pela intromissão estranha. Assim a fumaça do cigarro me lembra que respiro, que vivo mesmo sem querer, que penso mesmo sem saber para que.
    Fumar e pensar! Acaba um cigarro, acende-se um outro, igual ao primeiro, igual ao último, sempre igual a todos. Pensar e fumar! Tal como uma metáfora, um cigarro se finda pelo mesmo fogo que garante seu propósito. Quanto mais forte trago, mais prazer tenho e mais rápido se acaba. Como a vida, que quanto mais intensa mais próxima da morte. Sim a vida, que consome-se a si mesma e por isso  tem como sentido a morte. Assim como o cigarro que tem como sentido a fumaça, ou seja, seu próprio desfalecimento.  Por isso fumo a vida como a um cigarro, sempre concentrado na brasa, que é minha maior força e o principio de minha decadência. E o que há além do cigarro que fumo? Do instante que passa? Da vida que levo? Não sei... por isso fumo, fumo para esperar, para acalmar, para contemplar e tentar apaziguar a angústia da espera do que vem, porque algo sempre vem, mesmo sem se saber o que vem...

Um comentário:

Anônimo disse...

"mesmo sem tempo encontra tempo para fumar, e em pequenos fragmentos do cotidiano criam brechas temporais, dispõem-se do tempo funcional e obrigatório para a presença rápida de um cigarro libertador"#adorei tantas partes!!! mas essa em especial me flagrou! tà LINDO... mesmo, mesmo, mesmo... tem que reunir tudo um dia e fazer um livro eu quero demais esse livro.