sábado, 22 de março de 2014

A morte do guarda-chuva

Deitado entre as sombras do esquecimento, na lama da rua próximo ao bueiro, morre o guarda-chuva imerso em solidão. Em um canto de abandono, entoado na escuridão, lamenta o saudoso guarda-chuva, um tempo antigo, de símbolo e função. Se antes, seu mecanismo primitivo de abrir e fechar nas mãos humanas guardava a a ilusão de proteção, agora desamparado por seu criador, degrada-se a matéria, definha-se a memória. Sua nobre missão, de erguer suas abas-asas negras contra o firmamento em pranto, impondo-lhe valente resistência, já não vigora, já não atende, já não abriga ninguém a não ser sua própria decadência. Pobre guarda-chuva, desapropriado de seu destino, apenas na companhia sombria de ratos e urubus, que já lhe roeram os restos de esperança e lhe rasgaram os tecidos do sonho, revelando em sua bruta materialidade, a crueza de coisa, coisa entre coisas. E agora também coisa sem por que, sem para que, só para si, em si, sem nada. Em seu cabo corroído pelo tempo, ainda resta o ar de bom burguês, as lembranças de seu constante flanar pela cidade, como bengala ou estandarte de transeunte. Passa a madrugada vazia, a noite não quer dispersar, mais densa, mais negra, ela parece se congelar em imagem, em estampa texturizada, grossa, dura, eterna. O guarda-chuva ali, imóvel, cravado na noite, parte da paisagem de solidão, despedido, dispensado, desprovido de objetivo, alforriado de obrigação. Transformou-se em objeto selvagem, perdeu sua humanidade, sua lógica doméstica, seu lugar determinado no mundo. Morre o guarda-chuva, morre a função, morre a palavra, sobra o resíduo de memória que paira como fantasma sobre o corpo renascido da coisa indefinida que sobreviveu e perdura em estranhamento.