Era
sem dúvida o móvel mais antigo da casa. Uma dessas heranças
que se esquece a origem, que vai ficando e se torna mesmo parte indissociável do espaço, como se formasse a meteria bruta que
constroem a própria sensação superficial do cotidiano. Por muito
tempo foi apenas função, e fornecia aos usuários todo o conforto
que lhe cabia, com tanta pericia que parecia natural e certa, nunca
posta em questão. Na solidez de sua madeira e em seus garranchos
barrocos havia também uma carga de vida subjetiva, tanto do homem
que a fez quando dos que a utilizaram, se levarmos em conta a força
simbólica da memória impregnada ao objeto, suas histórias
contadas e silenciadas. Mas como nada pode resistir ao tempo que se
faz sentir na matéria, uma de suas pernas envergara, não chegando a
rachar, mas com alguns pregos velhos já frouxos, causava um fenômeno
peculiar. Toda vez que alguém nela se sentava com muito impeto, a
cadeira sedia um pouco para o lado, causando a rápida sensação da queda,
em uma leve dose medo, como uma picada de agulha, que
ameaça, mas não chega a prejudicar. No inicio isso causava
desconforto como traços de raiva. O susto, mesmo quase insignificante,
trazia sempre a sensação de desamparo e tirava toda a paciência
necessária. Ele esbravejava, falava palavrões em voz alta, se
indignava com a falha do móvel, com sua própria falha! Repetia com sigo
mesmo que tinha que
dar um jeito naquilo. Mas se uns dos principais efeitos da ação do
tempo e a degradação, por outro lado ele também cria uma certa
malicia, que logo torna-se conhecimento e gera uma certa acomodação
a partir do costume, que podesse mesmo chamar conforto, almejado e
anestesiante. Adiando na corredia dos dias o concerto da
cadeira, ele logo aprenderá nesse exercício de procrastinação a dominar o
fenômeno ilusório de queda. Dessa forma, sentando-se com jeitinho,
apoiando o peso do lado certo, em um determinado ângulo do quadril e
das pernas, voltou a usufruir do histórico conforto que a velha
cadeira proporcionava. E isso de certa forma parecia só contribuir
com o valor nela agregado.
Ficava
constrangido quando alguma visita em sua casa sentava-se
desavisada na cadeira e tomava um susto, seguido de risadas. E todos
questionavam o porque de não comprar outra cadeira ou concertar
aquela. Ele não sabia bem responder, mas passou a avisar os amigos
que naquela cadeira temperamental somente ele sabia como se sentar. A
cadeira tinha um segredo, assim como todos temos. A convivencia elevara o
mero objeto para além de sua serie de produção, tornando-o
único pela relação. Um dia, quando tudo parecia normal, em um impulso
impensado, em um desejo
contraditório de modificação e liberdade sem destino certo, ele apanhara
um martelo
e alguns pregos, e agregando uma pequena tabua a perna da cadeira,
acabará de vez com o seu cambalear. Com uma estranha sensação de
conquista ele sentou-se nela sem preocupação, esparramado-se em
seus braços, e aliviado, acendera um cigarro em frente a janela da
sala, onde passou horas em meditação... Uma semana depois decide-se
finalmente partir, muda-se e começa vida nova.