segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Da construção do conforto e as ingratidões da liberdade


Era sem dúvida o móvel mais antigo da casa. Uma dessas heranças que se esquece a origem, que vai ficando e se torna mesmo parte indissociável do espaço, como se formasse a meteria bruta que constroem a própria sensação superficial do cotidiano. Por muito tempo foi apenas função, e fornecia aos usuários todo o conforto que lhe cabia, com tanta pericia que parecia natural e certa, nunca posta em questão. Na solidez de sua madeira e em seus garranchos barrocos havia também uma carga de vida subjetiva, tanto do homem que a fez quando dos que a utilizaram, se levarmos em conta a força simbólica da memória impregnada ao objeto, suas histórias contadas e silenciadas. Mas como nada pode resistir ao tempo que se faz sentir na matéria, uma de suas pernas envergara, não chegando a rachar, mas com alguns pregos velhos já frouxos, causava um fenômeno peculiar. Toda vez que alguém nela se sentava com muito impeto, a cadeira sedia um pouco para o lado, causando a rápida sensação da queda, em  uma leve dose medo, como uma picada de agulha, que ameaça, mas não chega a prejudicar. No inicio isso causava desconforto como traços de raiva. O susto, mesmo quase insignificante, trazia sempre a sensação de desamparo e tirava toda a paciência necessária. Ele esbravejava, falava palavrões em voz alta, se indignava com a falha do móvel, com sua própria falha! Repetia com sigo mesmo que tinha que dar um jeito naquilo. Mas se uns dos principais efeitos da ação do tempo e a degradação, por outro lado ele também cria uma certa malicia, que logo torna-se conhecimento e gera uma certa acomodação a partir do costume, que podesse mesmo chamar conforto, almejado e anestesiante. Adiando na corredia dos dias o concerto da cadeira, ele logo aprenderá nesse exercício de procrastinação a dominar o fenômeno ilusório de queda. Dessa forma, sentando-se com jeitinho, apoiando o peso do lado certo, em um determinado ângulo do quadril e das pernas, voltou a usufruir do histórico conforto que a velha cadeira proporcionava. E isso de certa forma parecia só contribuir com o valor nela agregado.
Ficava constrangido quando alguma visita em sua casa sentava-se desavisada na cadeira e tomava um susto, seguido de risadas. E todos questionavam o porque de não comprar outra cadeira ou concertar aquela. Ele não sabia bem responder, mas passou a avisar os amigos que naquela cadeira temperamental somente ele sabia como se sentar. A cadeira tinha um segredo, assim como todos temos. A convivencia elevara o mero objeto para além de sua serie de produção, tornando-o único pela relação. Um dia, quando tudo parecia normal, em um impulso impensado, em um desejo contraditório de modificação e liberdade sem destino certo, ele apanhara um martelo e alguns pregos, e agregando uma pequena tabua a perna da cadeira, acabará de vez com o seu cambalear. Com uma estranha sensação de conquista ele sentou-se nela sem preocupação, esparramado-se em seus braços, e aliviado, acendera um cigarro em frente a janela da sala, onde passou horas em meditação... Uma semana depois decide-se finalmente partir, muda-se e começa vida nova.

sábado, 25 de agosto de 2012

Discurso 22

De que matéria são feitas as possibilidades perdidas?Quantas vozes devo calar, quantas vidas devo negar para poder dizer quem sou? Se tudo que podemos ter do Tempo além das lembranças insólitas do passado e os ideias ilusórios do futuro, é o concreto AGORA em sua insustentável carga de liberdade e medo. O problema da escolha se desloca do julgamento pragmático de valores aos mistérios do Desejo e o sutil equilíbrio que provoca o nascimento do Gesto, pois tudo que é potência de vida, inevitavelmente é aceitação de morte.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Na rua do alheamento

Recito meus pensamentos em uma língua morta e sigo repetindo como um mantra pelas ruas a dentro, como uma música interior que ressoa silenciosa pela solidão monumental da cidade branca. Avanço descompassado cortando o espaço geometrizado. Em um movimento inerte cruzo por entre blocos de concreto e vidro, e as cortinas verdes dos jardins de decadência. Vejo passar por mim sombras, projeções cinematográficas do que sei, que revelam em suas imagens turvas o que não sei, e talvez, não se possa saber, se não por um único segundo antes do esquecimento. Caminho em suspenso, desvio de mim, já não consigo me alcançar. E subo, pairando, distante, distante... onde tudo parece pequeno, delicado, prestes a desaparecer. Nuvens, sonhos...

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Ponderando

Não há planos para se seguir.
O melhor que farás será por acaso.
E nas contas da memória mais distante...
tuas perdas e teus ganhos serão apenas cinzas
na balança do tempo.