segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A Melancolia e o Sublime

   

Tudo começa com uma belíssima sinfonia de Wagner, da ópera Tristão e Isolda, um prelúdio do fim. Uma cena em câmera lenta (mesmo recurso utilizado por Von Trier no inicio do filme Anticristo) mostra os menores detalhes dos movimentos, os corpos humanos, o vento nas árvores, as cenas em sequencia parecem um tipo de sonho profético, que mostra um contexto calmamente assombroso e catastrófico. Uma noiva imergindo em um rio, pássaros caindo mortos do céu, uma mulher correndo no campo com uma criança no colo, um cavalo negro caindo pelo chão. Um segundo que se estende ao infinito, como se esse fosse o último segundo de vida. Do espaço sideral, no ritmo da sinfonia de Wagner, a primeira imagem do sublime se faz aos olhos do espectador, um gigantesco planeta se choca com a Terra em uma colisão mortal. Pode-se ver a destruição espalhar-se como uma onda por toda a superfície do pequeno planeta em processo de pulverização. Esse é o fim do mundo!
O cineasta Lars Von Trier apropria-se do tema apocalíptico do fim do mundo, tão na moda por causa das ditas profecias andinas sobre 2012. Mas afasta-o totalmente dos chiches de ficção cientifica hollywoodianos e cria uma metáfora para explorar sua visão trágico existencialista sobre a condição humana, trazendo a tona a questão da melancolia na sociedade contemporânea e mais uma vez (como já tivemos a oportunidade de assistir nos filmes Dogville e Manderlay) desenvolver sua mordaz crítica ao capitalismo de consumo e as instituições que o apoiam, como a ciência e a religião. Associando assim a tragedia cósmica da extinção de um planeta ao micro cosmos de uma família e seus conflitos, representados pelas irmãs Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg), que nomeiam os dois capítulos do filme e revelam dois polos opostos de visão de mundo que ao longo do filme vão se transformando, dando espaço para a emersão da visão do diretor.
Melancolia, primeira manifestação:
Em algum lugar do planeta, realiza-se um luxuoso casamento em uma suntuosa mansão, isolada em um campo de golfe. A noiva Justine repara curiosa no céu uma estrela vermelha distante. O casamento organizado sistematicamente por Claire e patrocinado por seu marido milionário, o cientistas especialista em astros John, não se desenvolve como o esperado, mas porque afinal? Justine arrumara um bom partido como marido, receberá uma promoção na empresa de publicidade que trabalhava, e o marido já havia comprado um terreno para construírem suas vidas, presenteará com a foto do local onde plantariam árvores de maça e se amariam sobre sua sombra, todo o futuro parecia previamente planejado para a perfeita felicidade. Mas de repente a noiva e ataca por um mal estar súbito, aparentemente sem motivos. Ela se torna sonolenta e desanimada, seu desconforto é latente, o sorriso para os convidados é como uma máscara que não encaixa em seu rosto. Ele encontra todo o tipo de desculpa para se ausentar da festa, o que logo passa a indignar sua irmã e o marido, muito preocupados com as aparências e com o cumprimento dos rituais sociais do casamento. Nada mais parece fazer diferença para Justine, o casamentos, os convidados, a família, o emprego, o marido, tudo se torna inútil e cansativo. Justine caim em uma profunda melancolia.
Para a psicanalista Maria Rita Kehl (no livro “O tempo e o cão”) , a melancolia surge ai como um sintoma social, a perda dos laços sociais provoca um profundo desalento do sujeito frente as exigências do outro. Justine começa a perder em seu imaginário suas principais figuras simbólicas de autoridade, a figura paterna e a materna. Ao revelar para mãe que estava apavorada e sentia dificuldades para andar, como se as pernas estivessem atadas por um fio, não recebe da mãe, amarga e pessimista, nenhum acalanto, mas sim seu frio concelho desesperador de, “de o fora daqui'. Quanto ao pai, mulherengo e fanfarão, ela recebe o total abandono, ele se retira escondido, mesmo depois que a filha quase lhe implora para ficar. Em uma cena emblemática, John tomado por Von Trier como simbolo do capitalismo contemporâneo, cobra de Justine, ainda confusa com seus próprios sentimentos melancólicos, que todo o dinheiro empregado no casamento (“os olhos da cara”) confirme sua felicidade. Assim vemos uma sociedade do consumo onde se vive o que o filosofo Pascal Bruckner denominou como título de seu ensaio “A euforia perpetua”. A obrigatoriedade da felicidade pautada no consumo desregrado de futilidades efêmeras e enganosas é o ponto principal da critica do filosofo que afirma: “nós constituímos provavelmente as primeiras sociedades da história a tornar as pessoas infelizes por não serem felizes”(Bruckner - A Euforia Perpétua). Impelida a um pseudofelicidade que não era capaz de sustentar, Justine acaba por desistir de tudo, frustrando os planos da irmã e se entregando a um profundo sentimento melancólico, que em crises lhe impedia até mesmo de se erguer da cama e andar. Incapaz de se virar sozinha Justine acaba sobre os cuidados da irmã e seu marido. Revelam-se então as personalidades do filme, de um lado Justine a irmã estérica, melancólica, doente, de outro Claire, a irmã, sensata, resolvida e equilibrada, e ainda sobra John, cientista milionário, hipocritamente feliz e seguro. Todos passaram por transformações e reviravoltas que revelaram seus verdadeiros temperamentos quando a morte surgir inevitável no horizonte de expectativa.
A melancolia, segunda manifestação:
No segundo capítulo do filme a melancolia, que antes surgira como manifestação subjetiva e abstrata em Justine, torna-se cada vez mais concreta. Um gigantesco astro batizado de Melancolia aproxima-se da Terra, sua gradativa aproximação trará a à tona nos personagens o medo arquetípico, o que está na origem de todos os medos humanos,o grande tabu, o medo da morte. Dizem que quando o ser humano tomou consciência da morte é que nasceu a filosofia, pois surgiu a necessidade de refletir sobre os porquês e para quês de uma vida finita (é claro que esse assunto também diz muito respeito as artes). É nesse tema que Lars Von Trier ira explicitar sua visão existencial de cunho nietzschiana sobre a condição humana. Assim três opiniões aparecem no filme. Jonh, acredita na razão cientifica, e afirma que Melancolia não atingirá a Terra, tentando assim acalmar sua mulher e filho. Claire, a pesar da confiança no marido, expressa o temor da incerteza. Se pensarmos bem, veremos que um dos aspectos mais paradoxais da morte é exatamente o fato de que ela é certa, não há dúvida de que todos morreremos um dia, mas esse dia e totalmente incerto, e ai nasce o medo, na dúvida. Justine depois de um primeiro momento de depressão e medo, que só depois mostra-se ligado inconscientemente a aproximação do astro, passa a uma mórbida tranquilidade e a um total desprezo por qualquer forma de esperança vã. A personagem antes estérica, vai se tornando serena e consciente. Por outro lado a Claire passa do medo ao desespero, o medo da morte pouco a pouco vai consumindo-a.
Em uma das mais belas cenas do filme, Claire segue a irma durante a madrugada até as margens de um pequeno riacho, onde vê Justine deitar-se nua sobre a luz azulada do grande astro Melancolia, como em um ritual erótico mistico de louvor a morte que se aproxima. Quanto mais Justine aceita o fato inevitável, mais a irmã entra em desespero, a ponto de comprar uma caixa de remédios para um possível suicido. A tensão dramática do filme se estabelece por completo quando Jonh, ao se deparar com a falha dos cálculos científicos, sente todas as suas certezas se dissolverem, deparando-se com o vazio existencial e coma inevitabilidade da morte. Ele caba se revelando como o mais desesperado, o que leva a covardia, e por isso ele se mata com os remédios de Claire, deixando sua esposa sozinha com o filho e a irmã. Nesse personagem a crítica de Von Trier as certezas cientificas é explicita, a razão cientifica assim como a fé religiosa tem a mesma origem e função, tentar dissimular a morte, em uma forma de negação.
Quando já certa do fim do mundo, Claire vai consultar a irmã, essa lhe diz: “A Terra é má, ninguém sentirá falta dela, estamos sós”. Através da personagem Von Trier emiti, assim como já havia feito em O Anticristo, sua visão de mundo trágica existencialista. A solidão e a insignificância humana frente a grandiosidade do universo, o vazio de todas as nossas conquistas e objetivos e o aspecto maligno da natureza, que é mãe e é madrasta, que caótica faz a vida se alimenta da própria morte e institui seu ciclo. Lembremos que o caráter trágico para Aristóteles envolve sempre um conflito e uma decisão, e termina de um jeito ou de outro conduzindo os personagens ao infortúnio e ao aniquilamento inevitável. Justine, desacreditada com vida, melancólica e pessimista, prepara-se para o fim. Mas na cena final do filme, surge a redenção, a única possibilidade de superarmos, não a morte em si, mas o medo da morte que nos mata ainda em vida. Essa oportunidade nasce da figura da criança (que na parábola nietzschiana contada por Zaratustra, surge como o espírito criativo e lúdico do homem), o pequeno filho de Claire revela seu temor pelo fim. E ao ver refletido no menino seu próprio medo, tomada de compaixão, Justine toma o que eu denominei de postura artística, e cumpre um ato poético-lúdico frente a morte, ao dizer para o garoto que poderia ser construída uma toca mágica que os protegeria. Assim ela e o garoto cortam alguns galhos e fazem precariamente uma frágil toca no jardim, onde os três se colocam para enfrentar a colisão. Ai é que Von Trier revela o aspecto lúdico essencial do espírito humano, nossa maior arma contra o medo da morte, nossa infinita capacidade de sonhar, de imaginar e de simbolizar nossa vasta interioridade. Isso é a arte, como a mentira contada por Justine a seu sobrinho para acalmá-lo, a arte mente para tornar suportável a vida, como afirmava Nietzsche. A arte como a mais doce e delicada mentira! A Mentira sagrada! No gesto de Justine está a mais poderosa resistência do espírito humano frente ao supremo mal, o limite intransponível e incompreensível, a gratuidade da vida. As teorias sobre a arte desde Aristóteles até Freud, sempre falaram do processo de sublimação que a obra de arte pode proporcionar aos piores sentimentos humanos. Desta forma a arte age diferente das religiões e das ciências, ela não nega, mas integra a morte de forma que o medo e o desespero sejam sublimados pela beleza, e assim transformamos o tabu em totem, o supremo mal em supremo bem, em um processo de transvaloração. A arte não pode trazer nenhuma imortalidade (desejo vazio e contraditório), mas pode lançar-nos para além da esperança e do medo que oprimem.
A estética do sublime:
Não é por acaso que Von Trie constrói seu filme sobre a estética do sublime. Para Kant o sentimento do sublime nasce de uma desarmonia entre a natureza e a razão ao se perceber o terrível, o indeterminado. Esse sentimento por mais esmagador que seja gera um estranho agrado. É como se fossemos tomados pela visão de algo que é tão grandioso e incomensurável que vai muito além dos nossos sentidos, que só pode ser apreendido pelo espírito, assim a firma o filósofo: “O que nós chamamos de Sublime é aquilo que é absolutamente grande. Este termo designa aquilo que é grande para além de toda comparação...O sublime é qualquer coisa que, pelo simples fato de ser pensada , revela uma faculdade da alma que ultrapassa qualquer medida dos sentidos” (Kant – Critica do Juízo de Gosto). Dessa forma Von Trier inicia o filme com uma imagem sublime, de um ângulo externo a Terra, no espaço sideral, vemos o astro Melancolia chocando-se com o planeta Terra. No final do filme vemos a mesma cena, desta vez de um ângulo interno da Terra, do ponto de vista dos minúsculos seres humanos. Ambas as cenas invocam imediatamente o sublime, a grandiosidade do Melancolia e a peques da Terra, mais que isso, a grandiosidade da morte que vai muito além de nosso entendimento racional, mas que é sentida na alma, a morte de um planeta inteiro, bilhões de vidas, de seres que levaram bilhões de anos para se desenvolver, desaparecendo em um único instante efêmero. Quantos mundos acabam no fim do mundo? Quantas vezes o mundo pode acabar?Afusão das imagens com a sinfonia de Wagner, o prelúdio de Tristão e Isolda, causa uma especie de catarse visual-sonoro. A presença da música torna-se essencial para a criação do sentimento do sublime, um dos principais trunfos do filme. A intensidade oscilante da música traz uma tristeza profunda, paralisante e hipnótica. É como se a gravidade das imagens na tela do cinema nos atraísse, e também nos arrasta-se para o mesmo final trágico dos personagens do filme. Assim o fim do mundo para Lars Von Trier torna-se uma metáfora para a condição humana, marcada por sua finitude, pela gradativa e melancólica aproximação da morte. Que no fundo não nega a vida, mas molda-a por dentro, instituindo seus parâmetros, e acaba se tornando o motor para a criação do espírito, que não aceita a ditadura do materialismo biológico e se lança na arte e no lúdico, ao infinito.



terça-feira, 11 de outubro de 2011

                                                           (Maria Bonomi - Sappho I)

Se a morte lhe apavora, canta a Morte, torna-a poesia . Assim o tabu vira totem, e do supremo mal extrai-se a Beleza, que regenera toda a existência incontornável.

domingo, 9 de outubro de 2011

                                         (Goeldi - xilogravura)

No alto de minha torre de marfim, sentado frente a janela, contemplo a imagem melancólica da cidade cinzenta la fora, com o som sereno da chuva que cai por sobre as árvores. A fumaça de um cigarro misturado ao vapor de uma xícara de café dissolve os pensamentos em silêncio interior. Me sinto no auge de minha solidão tal como a matriz sólida de uma xilogravura, imóvel no tempo, imagem imemorial, que guarda em sí todas as virtualidades do possível. E assim o fato banal se torna poesia. Despreocupado, tomo o livro de minha vida nas mãos e o folheio sem ordem estabelecida, como em um sonho...