segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Imagens noturnas

                  (Fantoches da meia noite - Di Cavalcanti)

Derivando pelos meandros da cidade, pelo escuro vazio das ruas, o silêncio da madrugada ecoa por entre as muralhas verdes e os blocos de concreto, lapides gigantes incrustadas na epiderme urbana. Ao longe se ouve o barulho de um ônibus afastando-se gradativamente, o que não foi capaz de romper o silêncio, que pairava pelo ar feito neblina, leve como uma cortina translúcida esvoaçando ao vento. Pesado como o inverno que estremece o esqueleto. Caindo por sobre tudo como a noite, tal qual uma capa que protege e aquece  o sono dos homens que viajam para longe. É sem dúvida por debaixo da capa negra e misteriosa da noite que escapa o sonho, a loucura e o delírio, para contarem as histórias que ocorrem do outro lado da razão, e que o dia esconde em seu excesso de lucidez Pois para ouvir esse tipo de narrativa é preciso ouvidos mais sensíveis, mais desatentos, mais abstratos.
            Acompanhando  os fantasma soturnos do espírito humano, para compor a orquestra da meia-noite, vem os amantes e filhos das sombras. Pequenos seres rastejantes e vultos alados atravessam o passeio, tomado pela erva da terra. Vindos  das comerciais abandonadas, encima das pilhas de lixo e escombros de guerra, com seus pequenos ruídos asquerosos e movimentos rápidos, compõe a canção da noite em notas de medo, silêncio e solidão.
            Ouço zunindo pelos ares, transitando de um lado para o outro entre o topo das grandes árvores, a sonata dos morcegos, os vampiros citadinos que dançam como em um teatro mal-assombrado. Sinto eles voando por cima de minha cabeça, o som é agudo e desritmado como uma música dodecafônica, quase palpável. Pelos cantos sujos, os pequenos olhos brilhantes e vermelhos dos irrequietos ratos de rua, observam maquiavélicos minha passagem. Prontos para devorarem qualquer coisa que eu deixe cair, restos de pão ou de esperança, parentes que são dos abutres e hienas, lixeiros da morte, heróis malditos do ciclo da vida. 
            Distante na paisagem, na perspectiva infinita dessa calçada floresta onde vou  rumo  ao interior desconhecido de mim mesmo, vejo um fantasma de carne e osso, um morto vivo vagando esfarrapado, a chaga ambulante de um corpo social doente, cruel, injusto e implacável. Ele parece cantar, uma canção de desalento, ou grunhir uma oração inútil e melancólica por piedade de algum  deus. Palavras que não consigo entender, como as de um dialeto antigo e esquecido da civilização, a língua dos derrotados, dos degredados, dos estigmatizados. Ele some do nada, da mesma forma que apareceu, mas sua imagem fica gravada e minhas retinas como a lembrança disforme de uma vida passada, de um outro eu, uma sombra distante.
            Não consigo deixar de pensar na estranha semelhança que existe (por mais que nosso orgulho racionalista tente dissimular)  entre alguns tipos de homens e alguns tipos de bichos. Como em uma sociologia antropo-animal, comparo os grupos e os valores implícitos neles. Primeiramente é claro que os homens não são todos iguais, nem diante da natureza nem diante da sociedade. Os animais tão pouco são iguais, e também se diversificam em valores que nós os damos. Projeções destorcidas de nossa humanidade cambiante.  Por exemplo, a morte de um animal pode custar nada (como um cão atropelado na estrada, ou milhões de baratas envenenadas), ou pode ser um caso de justiça internacional, como no caso do tráfico de animais silvestres. Os grupos de homens e bichos carregam valores culturais, historicamente constituídos, o que os torna sempre desiguais. Se a coruja é símbolo de Atenas, a deusa sa sabedoria, com seus grandes olhos atentos, ao corvo com suas penas negras restou lembra a morte.  Dessa forma ratos são caso de saúde publica (entendam, devem ser  eliminados), mas a última arara azul é questão ambientalista. Assim quem irá querer defender a preservação do rato, praga do lixo, ou do mendigo, praga de nossa consciência social? O que resta ao homem-cão, sarnento e imundo? Que desprezível de mais, não merece nem uma única ong que o proteja e venda camisetas com seu rosto! E assim preserva-se o mico-leão-dourado, e exclui-se da lista de salvação o homem sem posses, o bicho sem voz e sem lei.
            Mas é claro que mesmo entre os marginais cria-se por contato, um sentimento de identidade dos excluídos, que unem-se pela miséria, pelo ódio e pelo ressentimento, e planejam as escuras o saque a casa do patrão, enquanto sua família dorme hipócrita em lençóis macios e fascistas (toda ordem estabelecida, por mais forte que seja, esta sempre sobre uma delicada ameaça, quase invisível, mas presente). Se todos admiram o papagaio por sua habilidade antropomórfica e cômica de imitar a fala humana, de nos lembrar o que temos de especial, o pombo, por outro lado, de antigo símbolo da paz, passa na modernidade a ser chamado pejorativamente de rato de asas, aturado com desprezo nos aglomerados urbanos, praças e telhados de prédios. Mas essa comparação só serve para fortificar a classe dos rejeitados, o humo malcheiroso que alimenta a vida que apodrece, que ainda conta com mendigos e baratas, alcoólatras, viciados e gatos negros, cães vadios e poetas malditos, músicos decadentes de jazz, ladrões e assassinos, órfãos abandonados, solitários inveterados, anciãos alucinados, dementes e leprosos, exilados e melancólicos, todos eles que vivem a margem do que os criou, sem objetivo, nem salvação.       
 
   

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Reflexões na ponta de um cigarro


      Ah a fumaça do cigarro! Fluindo por entre meus lábios, de matéria tão leve quanto a palavra que flui pelo mesmo orifício, vácuo etéreo, palavra fumaça. Quando fumo, sinto esvanecer de mim todos os pensamentos, antes tão pesados com sua carga de angústia, agora,  leves pairando pelo ar, dançando abstratos e efêmeros. Sinto o vazio do corpo ocupado pela fumaça tragada, preenchido, inflado, comportado.  Em seguida, o retorno do vazio provocado pela baforada. Oco novamente, casca abandonada.
    A fumaça simboliza a leveza, e esse é o principio do fumar. Fumo quando me sinto deveras cheio. Depois do almoço, estômago lotado. Depois da leitura, espirito carregado. Depois do dialogo, palavras e ouvidos saturados. Fumo para me esvaziar, descarregar seja lá o que carrego, sentir o movimento que leva ao vazio. A saída do ocupante, a libertação do espaço ocupado, o nada novamente. E o que vira para novamente ocupar-me? Outra tragada, de fumaça, de bebida ou de esperança, quem sabe tragarei sonhos e ilusões! Trago a mim mesmo e ao outro, sou tudo e logo sou nada, entra e sai, vai e volta.
    O fumar também simboliza o tempo, a passagem gradual dos minutos dentro de cada cigarro, a repetição do gesto, da mão a boca, da boca a mão, o eterno retorno. Fumo para abstrair a  cruel ditadura do tempo que oprime. Pois quem fuma, mesmo sem tempo encontra tempo para fumar, e em pequenos fragmentos do cotidiano criam brechas temporais, dispõem-se do tempo funcional e obrigatório para a presença rápida de um cigarro libertador. Acende, traga, sopra...acende, traga, sopra... acende, traga, sopra. Assim se repetem em poucos minutos um tempo infindo, uma duração incalculável, que zomba do tempo dos relógios, pois nesse breve instante só a fumaça dita o tempo. A fumaça, sempre tão misteriosa, enigma da matéria, fronteira tênue entre o existente e o desistente.
    O cigarro torna-se espelho, objeto de reflexão, ponte, portal, válvula de escape do pensamento. Cada cigarro é como uma pergunta sem resposta, e que importa mesmo as resposta? Se cabe a inteligência sempre questionar as resposta em um espiral sem fim! Fumo e penso, penso e fumo, como se os dois exercícios se interpusessem no mesmo movimento lento e ritmado, de corpo e alma. Quando trago profundo a fumaça do cigarro sinto a vida que me invade e anima meu corpo. Sinto a mucosa que reveste minha boca, minha garganta, os alvéolos pulmonares  se expandindo. Sinto mesmo o ato da respiração como coisa essencial. Quase sempre nos esquecemos que antes de todos os problemas vem a respiração. Por ser um movimento repetitivo e involuntário na maior parte do tempo, não nos damos conta de que ele acontece sempre, ininterrupto, maquinal, indispensável, orgânico, vida. As vezes percebemos melhor as coisas pelo seu negativo, sua falta ou desarmonia. Quando corremos muito e nos cansamos, sentimos a respiração ofegante, percebemo-la pela falha, pela falta. Quando caminhamos e temos uma pedra no sapato, sentimos sem cessar o contorno do pé, pelo desconforto, pela intromissão estranha. Assim a fumaça do cigarro me lembra que respiro, que vivo mesmo sem querer, que penso mesmo sem saber para que.
    Fumar e pensar! Acaba um cigarro, acende-se um outro, igual ao primeiro, igual ao último, sempre igual a todos. Pensar e fumar! Tal como uma metáfora, um cigarro se finda pelo mesmo fogo que garante seu propósito. Quanto mais forte trago, mais prazer tenho e mais rápido se acaba. Como a vida, que quanto mais intensa mais próxima da morte. Sim a vida, que consome-se a si mesma e por isso  tem como sentido a morte. Assim como o cigarro que tem como sentido a fumaça, ou seja, seu próprio desfalecimento.  Por isso fumo a vida como a um cigarro, sempre concentrado na brasa, que é minha maior força e o principio de minha decadência. E o que há além do cigarro que fumo? Do instante que passa? Da vida que levo? Não sei... por isso fumo, fumo para esperar, para acalmar, para contemplar e tentar apaziguar a angústia da espera do que vem, porque algo sempre vem, mesmo sem se saber o que vem...