domingo, 20 de março de 2011

A giganta


Sentei-me no balcão de um bar e pedi uma cerveja. Pretendia apenas tomar uma para relaxar depois de um dia cansativo de trabalho. Não tinha maiores pretensões naquele lugar. Não conhecia ninguém por ali e nem queria mesmo conhecer. O lugar estava cheio, mesas lotadas. Eu pretendia ir embora assim que a cerveja acabasse, e enquanto bebia observava desinteressado o movimento das pessoas nas mesas ao redor. De repente em meio a multidão de ninguéns surge um rosto que me invoca! Uma mulher sentada em uma das mesas rodeada de pessoas logo a minha frente cravou os olhos em mim como duas facas afiadas e precisas. Um olhar intenso, fixo e decidido, fortemente atraente e sensual, mas tão incisivo que chegava a ser violento, dominador, ameaçador, como algum tipo de felino que mira atentamente sua presa.
A mulher era de uma beleza exuberante, grandiosa, exagerada, extremamente sexy. Ela era alta, de um porte atlético, tinha uma pele morena com aspecto suave, suas cochas e quadril eram largos como de uma porta bandeira de escola de samba. Seu rosto tinha traços muito marcantes e bem definidos, linhas fortes formavam seu maxilas, nariz, e testa. Tinha um grande e reluzente par de olhos negros como a noite e profundos como um abismo, que me chamavam e me provocavam vertigem. Seus lábios eram grossos como duas frutas maduras e suculentas, levemente úmidos pareciam estar cheios de mel. Os longos cabelos negros caídos pelos ombros conduziram meus olhos a seus fartos seios apertados em um decote perverso de cor vermelha. A sensualidade dos corpos se manifesta na quelas partes que ficam nos limites entre o visto e o escondido, é ali que o desejo ganha força e alimenta a fantasia. Que coisas incríveis pode imaginar uma mente inebriada de desejo! Aquele olhar me paralisou o corpo todo, e me encheu de contraditórios sentimentos. Um misto perturbador de um irresistível desejo carnal e uma profundo medo existencial! Eu não sabia bem se eu queria agarrar aquela mulher e possuí-la ali mesmo como um animal selvagem, ou sair correndo daquele demônio que ameaçava me destruir! Seus olhos eram só de certeza e desejo, eles não se mexeram mais depois que se encontrarão com os meus. Era como se tudo houvesse desaparecido e só restasse em um espaço tempo indefinidos, eu e ela. Sua gravidade me atraia, me arrastava impetuosa, e eu resistia, mas cheio de vontade de desfalecer nela.
Dividido em mim, como se minha vontade fosse um campo de batalha entre o sim e o não, me mantive parado, somente olhando imerso naquela figura feminina tão poderosa. Ela se levantou e caminhou ousada, de passos intransigentes, parecia que nada podia pará-la, era como uma locomotiva vindo em minha direção em câmera lenta. Sentou-se a meu lado e aproximou seus suculentos lábios carnudos de meu ouvido e sussurrou... Meu corpo inteiro se arrepiou, e logo um calor gostoso e anestesiante se espalhou por meu peito. Depois o tempo se modificou drasticamente, se contorceu, se inverteu. Essa longa mirada na imagem da mulher, a posse de sua imagem por meus olhos, pareceu uma pequena eternidade que durou apenas uns três ou quatro minutos. Tudo que ocorreu depois, no intervalo de uma noite inteira, durou na percepção como segundos, como um vídeo acelerado de um filme com cenas cortadas.
Em um instante estávamos eu e a bela e sedutora mulher em meu carro, no instante seguinte já estávamos em seu pequeno apartamento, a meia luz entrelaçados nus no sofá de couro como dois bichos no cio. Nós nos devorávamos de beijos e a fome só crescia! Era muita fúria e desejo misturados em uma amor carnívoro. Eu me sentia dominado por aquele corpo farto. Eu me perdia nela, seios, coxas, bunda, mãos, boca, tudo nela era grande, tudo me agarrava e prendia. Suas coxas grossas se fixaram em torno de minha cintura como duas serpentes que me exprimam. Acredito que não podaria me libertar nem se quisesse. Ela era sem dúvida mais forte que eu, e essa força parecia só aumentar. Seus beijos molhados quase me afogavam de voracidade. Seus seios nãos cabiam em minhas mãos, eles transbordam entre os dedos. Eu há penetrava com muita força, como poucas vezes havia feito na vida, e ela dizia querer mais rápido e mais forte, mais e mais. O êxtase daquele momento já tomará todo meu corpo e mente. Estávamos já banhados em suor e saliva, em uma transa que parecia interminável, como dois cães que se acoplam por horas. Em quanto minha fúria sexual já se apagava no cansaço físico, a dela parecia ferver cada vez mais, como um caldeirão prestes a explodir. Em minha mente dúvidas e temores se chocavam contra meus desejos. Uma mulher estranha, totalmente desconhecia, de onde afinal vem tanto desejo por mim? Ela já aparentava estar fora de si, gemia cada vez mais alto, gritava e tremia de tesão. Já me sentia fraco, minhas forças pareciam ser sugadas por ela, que crescia por sobre meu corpo. Sim no começo não havia percebido, mas ela parecia ter bizarramente aumentado de tamanho e de peso. Seus seios pareciam estar bem maior do que quando eu havia visto pela primeira vez. Eu já estava afundando neles, como se fossem areia movediça. Com ela deitada por sobre mim, eu já mal conseguia respirar, seu imenso quadril havia crescido e me esmagava contra o sofá. Eu esta imobilizado por aquela mulher que não parava de crescer. Já era uma gigante! Havia si tornado um mostro, e eu estava totalmente a sua mercê. Não conseguia mover meus braços ou pernas, estava preso no copo dela, completamente dominado por sua força e seu peso descomunais. Tudo parecia um pesadelo, e eu não conseguia acordar!

Logo passei ao desespero, tesão e pavor unidos, a situação estranha já estava se tornando perigosa, a mulher não parava de crescer e me desejava ardentemente, insaciavelmente, parecia que ia me devorar. Ela me lambia e sugava com seus lábios gigantescos. Comecei a pedir que ela parece, que me deixasse em paz! Mas ela nem me ouvia, gemia como um animal, uma leoa feroz, devoradora. Eu me esforcei, tentei escapar da giganta, mas foi inútil. Eu já estava exausto das horas e horas de transa, meu corpo já não tinha força alguma, e ela pelo contrario só crescia e crescia. Passei a não mais conseguir enxergar nada no apartamento, nem o teto, nem o chão, nem o sofá, posto que o corpo da mulher parecia já ter ocupado todos os espaços do local. Ela se espalhou gelatinosa enchendo todos os cômodos. Eu me afogava eu seu corpo como se fosse o mar. Não ouve escapatória, ela me absorveu inteiro em seu organismo, como se por fagocitose. Em um instante eu já não era eu, era agora parte da gigante que me devorará.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Aquelas mãos

Nessa noite de sábado comprei ingressos para ir ao teatro assistir a uma peça recomendada por amigos. Infelizmente ou felizmente, não sei ao certo, minha companhia teve um imprevisto e não pode comparecer. É claro que acostumado que sou ao exercício da solidão não me abati muito com o súbito abandono. A verdade é que tenho grande apreço pelas atividades solitárias, principalmente as vinculadas a apreciação artística. Sinto que centrado em minha solidão posso me entregar por completo a contemplação estética. Sendo que acompanhado por qualquer outra pessoa conhecida, amante ou amigo, sempre há de se reservar uma pitada de atenção ao acompanhante, até por uma questão ética, afinal é a pessoa que esta ali dividindo amistosamente uma experiência com você, e mesmo que sem palavras  sinto que uma parte minha esta sempre voltada para o outro, o que invoca, o que ameaça ou encanta, pois isso é o mínimo que qualquer tipo de outro exige numa relação, seja ela qual for.
    Para esse tipo de evento, tenho para mim um ritual corriqueiro de preparação. Acredito que assim como o corpo deve ser aquecido antes de uma prática de exercício físico o espírito também deve estar nas condições certas para a apreciação da obra de arte. Por isso, procuro estar com os poros da alma bem abertos para poder fruir com os olhos e os ouvidos tudo que me for apresentado no palco, para poder sintetizar todas as sensações, sentimentos e idéias que se relacionarem com minhas experiências e assim reviver a obra, dar-lhe minhas próprias características e roubar-lhes algumas. Desse modo, chego sempre um pouco mais cedo ao teatro para evitar atrasos, filas, ou qualquer imprevisto desagradável que exija de mais de minhas ações, posto que antes mesmo do inicio da peça já começo a me colocar em um estado propicio a contemplação e a meditação, e quase como se minha alma se afastasse lentamente de meu corpo para poder se debruçar sobre o observado, para poder analisa-lo mais de perto em abstrato, sem o peso do corpo e da ação necessária. Ao lado do teatro havia um belo jardim, onde me sentei e acendi um cigarro. Com a fumaça do cigarro vai-se dissolvendo de minha mente pouco a pouco todas as preocupações e impacientais, todas as idéias excessivamente pesadas, os pensamentos se esvoaçam pelo ar livres,  e no corpo se instala uma calmo relaxamento. A ação continua de levar o cigarro a boca, traga-lo vagarosamente vendo-lhe a chama aumentar e a fumaça invadir minha boca e meus pulmões preenchendo-me o vazio interno, e depois afasta-lo e soprar a fumaça turva e densa pela boca e narinas tal como um dragão, é como uma forma de mantra que tende a me colocar na orbita certa do meu Ser. Ali sentado observei as pessoas chegarem ao teatro, em grupos, em casais, o teatro enfim é também um evento social, um lugar para convivência, como nos bares e restaurantes. Apresados faziam fila para comprar o ingresso e tumultuavam a entrada do teatro. De longe eu só observava.
    Sentei-me na poltrona marcada, e ao ver a poltrona do lado vazia sentir uma certa melancolia pela solidão. O que sei ser uma coisa  natural, afinal de contas devemos aceitar nossa solidão, mas não com um sorriso tolo no rosto e sim com um olhar triste e resignado de quem aceita o que não pode mudar e ama o que não pode entender. Ali na poltrona vazia deveria estar uma pessoa conhecida, amigável, com quem eu trocaria palavras, idéias, percepções, que se ocuparia de mim assim como eu dela. Mas não, agora somente a ausência, o vazio, onde certamente se sentara um Ninguém, um rosto desconhecido e estranho que provavelmente me invocara a indiferença, típico costume das cidades grandes. A peça atrasou alguns minutos e o barulho dos cochichos das pessoas estava me desconcentrando, resolvi ficar um pouco mais lá fora, quem sabe comprar um doce na cafeteria. Ao ouvir o último sinal para as luzes se apagarem regressei. Vi que alguém já havia ocupado a poltrona ao meu lado, era uma mulher, de cabelos loiros encaracolados na altura do pescoço, vestida elegantemente com uma jaqueta marrom. Não puder nem mesmo reparar em seu rosto, pois logo  as luzes se apagaram e fiquei entretido  com o inicio da peça. Era um monologo que parecia muito bom, uma daquelas histórias clássicas da literatura internacional, personagem perturbado com os processos de alto descoberta, em busca de sua própria liberada contra todas as opressões e violências do mundo, a imagem do louco santo. Algo assim como uma tragi-comédia cheia de idealismo liberais e utopias humanistas.
Mas repentinamente o foco das minhas percepções, ritualisticamente apuradas para a peça, teve seu foco deslocado. Começou quando senti um exuberante cheiro de rosas do campo que simplesmente se apossaram de meu ser, primeiro pelo olfato, mas depois todos os meus sentidos estavam impregnados por aquele cheiro . Era um cheiro doce como todos os méis, chocolates e néctares de frutas da terra. Era quente, macio e enebriante, sensual e apetitoso, tudo isso num único odor. Mas de onde vinha esse cheiro que me tomava e me impedia de prestar atenção na peça?
    Seguindo afetado o cheiro que me hipnotizava deparei-me com as mãos da mulher desconhecida sentada ao lado. A mulher  que a principio em nada me chamava a atenção, estava sentada de pernas cruzadas. De meu angulo de vista eu podia ver a penas a parte de baixo de seu tronco, suas pernas e suas mãos postas por sobre o colo. Ela retirou da bolsa uma pequeno pote, e despejou na palma de uma das mãos uma dose de creme.  Ao começar a esfregar o creme de uma mão na outra e por entre os dedos, começou a exalar um doce odor pelos ares. Ai então, foi como se todos os holofotes do teatro se voltassem para aquelas mãos. Aquele colo onde elas posavam leves como duas plumas tornou-se para mim então o palco, onde se desenrolava uma peça musical, quase um bale dos dedos, uma dança dionisíaca! Assim o odor que me atrairá e me proporcionava um prazer indescritível uniu-se também ao prazer do olhar. Comecei a observar de canto de olho, com muita atenção e descrição,  os movimentos ondulantes das mãos da mulher, que ao se massagearem parecia também poder massagear meus sentidos todos no mesmo movimento. Suas mãos eram de uma beleza angélica, brancas, pequenas, delicadas e sensíveis. Os dedos muito proporcionais, finos e alongados se entrelaçavam com uma graça sublime. A graciosidade é uma característica tipicamente feminina, pois um coisa graciosa é essencialmente harmoniosa em sua pequenez, nada deveras grandioso pode se aproximar da graciosidade, que invoca sentimentos de proteção e afeto diante da compartilhada fragilidade. Ah como suas mãos eram graciosas! Não pude entender bem na hora, tentei relutar com essa forte atração tão banal e voltar a prestar a tenção na peça. Mas foi inútil, mesmo voltando os olhos novamente para o palco não pude mante-los, a cada nova respirada eu voltava a sentir o doce odor das flores e tinha minha visão empurrada irresistivelmente para as mãos da mulher, como um marinheiro chamado pelo canto das sereias.
    Porque aquele cheiro, porque aquelas mãos, porque naquele momento? Perguntas que só cabem ao acaso responder! A peça simplesmente se desfez para meus sentidos como um vidro que se despedaça. E me entreguei todo aquelas mãos! Ao deleite daqueles movimentos suaves dos dedos se esfregando com carinho e calma por sobre as palmas, as unhas levemente cintilantes, os pulsos finos e elegantes como de uma leide!  Somente sua brancura e doçura acupavam minha atenção e meus desejos. Era um prazer sensual, erótico, estético, era uma obra de arte a parte, que meus sentidos encontraram por acaso perdida, jogada quase imperceptível  no meio da banalidade da vida. Eu queria tocar aquelas mãos sentir sua suavidade, sua pele de marfim. Queria ser tocado por aquelas mãos, sentir  sua delicadeza, seu calor, queria beija-las para absorver melhor sua pureza de manjar raro! Por mais ou menos uma hora pus-me a fruir o prazer estético sensual daquelas mãos sem corpo, ou melhor dizendo, aquelas mãos que eram um corpo inteiro de mulher. Observava sua performance teatral, musical, plástica, como se aquilo fosse o céu para mim por um instante, a sublimação de tudo que pesa na alma, o desfalecer de todos os significados aparentes por uma insignificância designificada. A contemplação desinteressada da beleza simplesmente bela! Engraçado como as vezes encontramos o que procuramos quando não estamos procurando e em lugares onde não pretendíamos achar, e não encontramos o que queríamos no lugar onde imaginamos que íamos achar. A beleza se esconde em todos os lugares, basta os olhos certos para encontra-las ou inventa-las! 
    Ao final da peça as luzes se acenderam me cegando momentaneamente, e os aplausos enlouquecidos turvaram meus ouvidos. Quando me dei por mim já não haviam mais mãos, nem peça, e todos se retiravam do teatro em uma enorme turba. Não pude me recompor rapidamente, era como se eu tivesse caído, minha cabeça foi sacudida pelo espanto prolongado! Só pude sair quando o teatro já se encontrava vazio, e é claro que perdi completamente aquelas mãos de vista, as quais muito provavelmente nunca mais verei. Foi como ver uma estrela cadente cair. Efêmera! Um instante de epifania! Quem era aquela mulher? Nunca saberei! E talvez realmente nem importe.  Será que me amaria? Não posso crer! O certo é que suas mãos, apenas aquelas belas e graciosas mãos me tomaram de tal amor, de tal amor como aquele que se sente por uma rosa ao sol, ou o crepúsculo vermelho e rosa do cerrado, ou a luz branca da lua no seu negro da noite. O amor leve, simples e incompreensível, por isso louvável. Como diz o grande mestre Caeiro: “...quem ama nunca sabe o que ama, nem sabe por que ama, nem o que é amar... amar é a  eterna inocência...” Quando eu aprenderei a ser inocente para poder comungar da beleza de cada instante? Sozinho no teatro  totalmente vazio aplaudi satisfeito o espetáculo que somente meus olhos presenciaram.

terça-feira, 1 de março de 2011

A vida é tal como um jogo, onde por fim iremos todos perder. Sábio é aquele que na derrota se contenta com o inútil prazer de ter jogado.