sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Sobre a morte ou minha vida sem mim:



A morte é sem duvida um dos maiores medos humanos, ela traz a tona a percepção da temporalidade, da transitoriedade e da finitude da vida. Pensar na morte leva necessariamente a se perguntar de que vale realmente estar vivo. Mas é exatamente por estar intrinsecamente ligada ao problema da vida, que o problema da  morte é tão complexo e paradoxal. Ambos os termos são correlativos e inseparáveis, são opostos complementares, não se pode pensar uma coisa sem pensar a outra, mesmo que indiretamente.  A forma como  interpretamos a morte influencia a forma como interpretamos a vida e vice e versa. E por isso, me parece que esse duplo problema da vida e da morte é no fundo a origem e a finalidade de todo o conhecimento, de toda a filosofia, de toda a ciência, de toda a espiritualidade e de toda a arte. Pois parece que de uma forma ou de outra, tudo que o homem cria esta impregnado de vontade de tentar resolver esse problema, de tentar provar para nós mesmo que a vida pode vir a ter algum valor positivo mesmo frente a inviabilidade da morte.     
    O filme de  Isabel Coixet, intitulado “Minha Vida Sem Mim” é mais uma das inumeráveis obras de arte que abordam essa problemática como ponto central de sua trama. O titulo do filme, sagaz e sugestivo, até carregado de um certo tom de humor negro, é na verdade o resumo do argumento filosófico  desenvolvido através da narração da história de Ann. Uma jovem mãe de família, com uma vida cotidiana atarefada e cheia de responsabilidades ante o marido e as duas filhas pequenas, morando no quintal da casa da mãe e trabalhando como faxineira,  levando assim uma vida dura e simples, mas que ainda guardava uma última revelação trágica do destino. Ann com apenas 23 anos descobre de repente que tem um câncer que a matará em mais ou menos 3 meses. Toda a história se desdobra sobre os resultados dessa triste revelação na vida de Ann. Descobrir a própria morte, e é engraçado falar assim pois a morte é nossa única certeza absoluta, provoca modificações profundas na postura, nas escolhas e nos valores de Ann. Aparentemente nada muda nas praticas cotidianas da garota, ela continua dedicada ao trabalho e a família, o que mudam são os valores que guiam essas praticas e sua postura ética frente a vida.
    De um filme como esse, que trata de um tema tão profundo, pode-se tirar muitas interpretações, muitas discussões. Pretendo analisar alguns das atitudes tomadas por Ann frente a morte, e assim tentar esclarecer a opinião expressada pela diretora do filme, pensando a morte (e portanto na vida) de uma forma serena e realista, mas sem negar-lhe a beleza trágica e melancólica. Primeiramente, Ann decide não contar seu drama para ninguém. Essa atitude que superficialmente pode ser vista pelo prisma de um certo egoísmo ou mesmo conformismo, ganha na minha opinião um  tom diferente, quase épico.  Me parece que a morte nos garante uma referencia solida para valorarmos a vida, exatamente porque sabemos que ela sempre chega uma hora e que é inevitável. Dessa forma, podemos chegar a algumas conclusões lógicas. Se a vida é finita devemos dar a ela prioridades, valores distintos a nossos desejos e escolhas, e se o tempo urge, isso nos obriga a cada vez mais tentar resumir a vida as coisas mais necessárias e essenciais, a se desfazer de toda futilidade, a dispensar tudo que pode ser dispensado, a simplificar tudo que pode ser simplificado, a buscar a vida menor de que fala a poesia de Drummond. Em uma cena do filme, a personagem faz compras em um shopping enquanto pensa consigo mesma: “ tudo aqui serve para nos afastar da morte, aqui ninguém esta pensado na morte”. Ao enfrentar sua preparação para a morte ( o que teoricamente todos nós deveríamos fazer a cada dia), Ann percebe como as pessoas gostam de se iludir para fingir que a morte não existe, ou que esta muito distante, é uma forma corriqueira de fugirmos ao desespero e ao pavor. O silêncio de Ann parece refletir uma postura estóica e altiva, pois a morte nos leva a nos depararmos mesmo com a solidão, que não pode ser negada se não aceita, ela parece querer evitar toda e qualquer tipo de perda de tempo, como lamentações, preocupações e sofrimento antecipados e desnecessários, pois em nada podem mudar a realidade da morte. Há nisso também uma forte  dose de generosidade, pois a partir  do momento que nos convencemos de que a morte vem para todos, não há porque afligirmos os outros com nossa morte, pois eles terão a deles. Essa generosidade se mistura a uma certa doçura de espírito da personagem, ela controla o próprio medo e desespero da morte  para poupar os outros de sofrimentos inúteis, assim ela aceita corajosamente o caminho solitário e doloroso de sua própria liberdade. 
     Alavancada de sua vida cotidiana onde tudo parecia muito solido e certo, Ann passa a ver as coisas de uma perspectiva mais ampla, isso leva-a a mudar seus valores. Sua primeira atitude é escrever em um caderno as coisas que ela quer fazer antes de morrer. Analisarei três dessas coisas que me parecem ter uma grande importância simbólica no filme. A primeira é gravar fitas de aniversário para suas  filhas até os dezoito anos e para outras pessoas próximas (seu marido, sua mãe, seu amante). Por traz dessa delicada, atenciosa e  singela atitude existe uma ética de afirmação da vida. E é ai que aparece claramente a sugestão vinda do titulo. Ann descobriu e aceitou que a vida continuara sem ela, que tudo continuara funcionando como sempre funcionou mesmo sem ela estar por aqui. As fitas simbolizam uma afirmação da vida, pois Ann demostra com elas que se importa com a vida mesmo depois que morrer, que se importa mesmo sabendo que sem ela tudo continuará, e por isso quer deixar algo para as pessoas que  ama, e que sabe que terão de continuar a viver sem ela.    
    Outro ponto em sua lista de coisas a fazer antes de morrer, era reencontrar seu pai que a anos ela não via porque estava preso em uma penitenciaria.  Falo sobre esse ponto porque imagino que normalmente se pensa que ao nos depararmos com a morte certa, passamos a  nos importar só com o presente, com o instante agora, não acredito que seja bem assim. Na verdade parece que a morte pode provar o quanto a vida é inútil, porém do ponto de vista contrario ela também pode provar que a vida é sagrada e única e por isso dentro dela tudo é valido, tudo deve ser aproveitado, pois bem ou mal tudo acabará por fim. Ann seguindo a segunda interpretação, busca o reencontro com o pai como uma forma de redimir o passado aceitando até mesmo a ausência do pai, mais uma forma de se valorizar a vida, de aceitar mesmo as coisas ruins que a vida lhe proporciona, como um pai bandido  e indiferente. Afinal de contas a vida continuara sem ela, e não há motivo para permitir magoas ou ressentimentos tolos de coisas passadas.
    Por ultimo destaco da lista de Ann o desejo que ela tinha de se apaixonar novamente, e isso não tem nada haver com traição, pois ela demostrava amar muito o marido, mas isso é diferente de paixão. A paixão é como o calor inicial que acende o amor, é um impulso primário poderoso e desconcertante, intenso e inexplicável racionalmente. É o que nos lança ao desconhecido (Outro), ao estranho, a descoberta de si mesmo no outro, a revelação da identidade dentro da diferença. Mesmo amando o marido Ann quer sentir uma ultima vez o impacto da paixão, pois somente esse sentimento parece, mesmo que por um breve instante, destruir o abismo que separa os sujeitos dando a sensação de que podemos ser um só ser, de que realmente podemos compartilhar com o próximo algo de verdadeiro e real, mesmo que intangível e indizível.
    O filme apesar do clima dramático é levemente romanceado por uma serie de coincidências que ajudam Ann a cumprir com seu desejos antes de morrer. Isso juntamente com a personalidade doce, quase infantil de Ann, e sua resignada melancolia, pintam o tema pesado e desconfortante do filme com uma leve tom  poético, triste porém esperançoso. O que até me faz lembrar de uma máxima nietzscheana que diz que devemos afirmar a vida mesmo em seus aspectos mais tenebrosos. Haverá aspecto mais tenebroso na vida que seu fim? “ Minha Vida Sem Mim”, é um exemplo de que para aceitarmos a vida temos de aceitar a morte. Como diz Epicuro: “ Não existe nada de terrível na vida para quem esta perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver”.  O filme consegue ser emocionante, sem ser piegas, sensível, sem ser bobo, profundamente filosófico sem ser excessivamente serio, além de ter uma linda trilha sonora.  E principalmente, por ele  levar inevitavelmente as  lágrimas, mas  não pela vida que a jovem Ann vai perder, mas pela vida que ela soube encontrar.