sábado, 27 de fevereiro de 2010

A relação do corpo com a alma

Corpo e alma são como lados opostos da mesma moeda, como a imagem e seu reflexo. Mantém relação intima e constante, compartilhando os mesmos elementos em disposições e graus diferentes. Tem a mesma origem e por isso o mesmo final. Poderia simplificar tudo dizendo que o corpo e nossa porção física e a alma nossa porção metafísica, porém vejo a relação entre ambos de forma mais complexa e não homogênea. A alma é o que o corpo tem de abstrato e o corpo o que a alma tem de concreto. Um soco, ação física concreta, pode provocar raiva, sensação subjetiva, palavra abstrata, assim como a raiva pode vir a provocar um soco. Por tanto a relação entre ambas se da de forma reciproca como em uma via de duas mãos. Bergson afim de acabar com os conflitos entre idealistas e materialistas, em seu ensaio “Matéria e Memória”, diserta sobre essa relação. Ele afirma que a memória é o elo de união entre corpo e alma. Pois a memória parte tanto de percepções sensório-motoras do corpo (que se dão através das formas possíveis de manipularmos os objetos exteriores, a memória psicofisiologica), como das percepções subjetivas da alma (que se dão através de livres associações imagéticas, a memória metafísica).
“Se a lembrança pura é já o espírito, e se a percepção pura seria ainda algo da matéria, precisávamos, colocando-nos no ponto de junção entre a percepção pura e a lembrança pura, jogar alguma luz sobre a ação recíproca do espírito e da matéria. Na verdade, a percepção pura, ou seja, instantânea, é apenas um ideal, um limite. Toda percepção ocupa uma certa espessura de duração, prolonga o passado no presente, e participa por isso da memória. Ao tomarmos então a percepção sua forma concreta, como uma síntese da lembrança pura e da percepção pura, isto é, do espírito e da matéria, encerrávamos em seus limites mais estreitos o problema da união da alma com o corpo” (p.285).
Assim sendo, corpo e alma são elementos indissociáveis e essenciais no ser humano. No século XVIII o poeta inglês Wlliam Blake denunciava o engodo que é a separação entre corpo e alma, a super-valorização da alma em detrimento do corpo. E em sua poesia propunha o matrimonio entre o céu e o inferno, o reencontro entre corpo e alma.
“Todas as Bíblias ou códigos sagrados foram as causas dos seguintes Erros:
1. Que o Homem tem dois princípios existentes reais, a saber: um Corpo e uma Alma.
2. Que a energia, chamada Mal, é apenas do Corpo, e que a Razão, chamada Bem, é apenas da Alma.
3. Que Deus atormentará o Homem pela Eternidade por seguir suas Energias.
Mas os seguintes Contrários são Verdadeiros:
1. O Homem não tem Corpo distinto de sua Alma, pois o que é chamado Corpo é uma porção da Alma discernida pelos cinco Sentidos, os condutos principais da Alma nesta era.
2. A Energia é a única vida e é do Corpo, e a Razão é a amarra ou circunferência exterior da Energia.
3. A Energia é o Deleite Eterno” (Blake).
Em sua reflexão poética de cunho quase quântico, o poeta fala sobre a Energia, que seria talvez o fundamento de toda vida existente, essência tanto do corpo quanto da alma. Então ambos poderiam ser entendidos como substancias diferentes apenas em grau de manifestação, pois no fundo provem da mesma Energia.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A experiência humana

A vida é a materialização da energia cósmica que se torna corpo através de um processo biológico. Do corpo floresce a alma, que cresce e descobre o corpo. A unidade dos seres, orgânicos e inorgânicos, parte do mesmo substrato energético, místico, quântico. Tudo que existe compartilha de uma essência. Para Schopenhauer essa essência é a Vontade, para Kant é a Coisa em Si, para Platão é a Idéia. Ao longo da história das culturas humanas muitas interpretações mistíco-religiosas e metafísicas apontaram para o fato de existir uma espécie de linha mestra que une todas as coisas existentes, e até pode receber o nome de Deus ou Natureza (um Deus impessoal e inconsciente, mais assemelhado ao Caos do universo descrito pela física do que ao deus cristão humanizado e entendido como uma consciência epifenômena).
Assim sendo a experiência humana consiste em primeiro lugar no deslocamento de uma ínfima parte do Uno (Universo – Deus) que se fragmenta tornando-se indivíduo e lançando-se a si mesma (mundo) numa condição de tempo-espaço, em uma viajem que vai da imanência a transcendência passando por diversas metamorfoses. Como o ciclo da água, metáfora utilizada no romance Sidarta de Hermann Hesse, onde a água evapora do mar, torna-se nuvem, depois torna-se chuva que cai sobre os rios, que por fim correm novamente para a imensidão do mar. Um fragmento que se desprende do Todo, percorre esse Todo e depois funde-se a ele novamente, em um ciclo eterno da vida.
Ser humano é ser fragmento consciente de si e do mundo ao seu redor. Mas essa consciência de si e do mundo se desenvolve aos poucos, em um processo de constante descoberta. O autoconhecimento, pregado por Socrates e pelas culturas orientais como o budismo, diz respeito a descoberta de si como indivíduo pertencente a um Todo maior, porém indivíduo autônomo que goza de liberdade, liberdade essa que é condicionada e não total, pois liberdade total só é possível no Uno, quando se é tudo e nada ao mesmo tempo (Nirvana). O humano constrói seu Eu em um processo de identificação e estranhamento com o Outro. Só o Deus (Uno) se configura como identificação total.
Platão dizia que a alma clama por regressar ao mundo das Idéias de onde provem, há uma verdade nisso ligada a Morte, que é a passagem, o regresso tanto do corpo como da alma para seu lugar de origem, o Uno. Dizia Lavousier, “na natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma”, isso diz respeito ao corpo físico, que sendo matéria se decompõe e se une a terra, mas também ao meu ver diz respeito a alma, que como energia também se decompõe e se dissolve no universo.
A experiência humana dolorosa e perturbadora, envolve a transgressão da ordem do Uno e a reposição da mesma. Existe nisso a necessidade da aceitação que tal experiência é sempre perspectiva, pois sendo apenas parte não é possível percebermos o Todo por completo. Somos como pulgas nas costas de um leão, porém compartilhamos com esse leão o mesmo sangue, que nos alimenta e da vida a ambos. A condição humana é a condição de uma pequenez virtuosa!

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Alma

Antes de sermos interior, somo exterior. A consciência é um sintoma do corpo, nasce dele, é como um órgão, um membro, um instrumento. A consciência se lança ao externo como em uma explosão, toca os objectos, sente-os, percebe-os, depois regressa interiorizando-se no corpo. A alma e a consciência interiorizada, reflectida. E nesse processo dialético, o mundo se torna humano e o humano se torna mundo, a tal ponto que não se pode mais delimitar onde termina o dentro e começa o fora ou termina o fora e começa o dentro. Assim sendo a consciência é a mão que busca o fruto, e a alma a boca que dele se alimenta. A alma é o avesso, o fundo do corpo, nela se sintetizam e acumulam sensações, emoções,sentimentos, dela brotam, pensamentos, fantasias, linguagem. A consciência é o fora e a alma o dentro.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Almoço

O almoço deve ser o ritual mais sagrado da família cristã ocidental brasileira. Pois independente dos verdadeiros sentimentos e da união dos membros, eles sempre se reúnem diariamente e na mesma hora ao redor da mesa, em prol do bem mais essencial da vida, o alimento. É a fome do corpo a grosso modo que une os indivíduos da família ao redor da mesa, é claro que por detrás disso existe outros símbolos, metáforas para sentimentos mais subtis e silenciosos, que se escondem no interior da banalidade dos gestos cotidianos, mas que por serem mais subtis não são menos concretos do que a comida que se coloca nos pratos e nas bocas. Há uma leve tensão no ar, que se desenrola ao som dos garfos e facas que arranham os fundos dos pratos, os copos que batem o fundo na mesa, as mandíbulas que mastigam a comida calando a boca e dando voz ao silêncio que narra o ambiente pesado de fuligem sem precisar de palavras. Os olhos se entre cruzam disfarçados evitando a frontalidade do encontro rosto a rosto. Os assuntos são poucos, quase nenhum, espaçados e desconexos, se dão muito mais por nervosismo e constrangimento do que por sinceridade. Só a criança a mesa traz assuntos sinceros. Inocente e despreocupado o garoto discursa sobre sua vida simples e profunda aos quatro cantos, ora ou outra ouvindo uma reprovação adulta: "“mastiga menino!”. O patriarca sentado na ponta da mesa em seu lugar cativo, milenarmente reservado pela tradição dos antepassados, observa a família como seu reino, sua justificativa na Terra, ignorando a decadência de seu poder, fingindo-se sereno e altivo. E assim prossegue a farsa muda, como um ritual religioso onde se alimentam o corpo e a alma. O corpo de carne e pão, a alma de amor e ódio. E é isso que nutri os laços paradoxais da família, as raízes mais profundas e negras.