terça-feira, 20 de outubro de 2009

Crônica Urbana IV: Enquanto isso no ônibus



Sábado de manhã! Só quem trabalha no sábado de manhã é que pode dizer que tipo de infortúnio significa trabalhar no sábado de manhã. O dia está lindo, o sol radiante, os pássaros cantam, a manhã bela e clara surge quase como um convite da natureza para a felicidade, guardada no fim do arco íris, e você desperdiçando isso pegando um ônibus lotado para ir trabalhar. Mas na verdade pode ser o contrário também, pode ser uma manhã chuvosa, de vento frio e céu cinza, pouco convidativa, e no fundo tudo que você queria era poder permanecer na cama embaixo das cobertas passeando entre o sono e a vigília, mas não, você tem que pegar o ônibus lotado para ir trabalhar. Em ambos os casos o infortúnio é o mesmo, e se chama obrigação (palavra assustadora pela própria sonoridade), e tudo parece melhor do que cumprir uma obrigação, faça chuva ou faça sol.
Eu bem sei da importância do trabalho na vida humana, afinal é nossa capacidade de transformar e manipular diretamente a matéria através do trabalho que nós da uma posição privilegiada na cadeia alimentar. O trabalho entendido como uma forma produtiva e criativa que ocupa o vazio de nossa existência tediosa impedindo muitas vezes que pule-mos do primeiro precipício. Porém, nesse caso que chamo atenção não estou me referindo a essa forma ideal de se entender o trabalho. Estou na verdade me referindo ao trabalho como práxis, no senso comum, ou seja, atividade continua, cansativa e repetitiva que o império das necessidades capitalistas nos obrigam a fazer, forma de vender seu tempo e sua paciência em prol de uma atividade que na maioria das vezes é mal remunerada e mal valorizada, é essa idéia de trabalho ao qual me refiro. E acho que não estou de todo enganado se digo que todo mundo diz querer ganhar na sena para não precisar mais trabalhar, principalmente no sábado de manhã. Isso faz de certa forma o trabalho como o mal numero um do homem.
O fato é que todo sábado de manhã quando eu pego o ônibus lotado para ir trabalhar, desanimado por esse fardo e tomado por essa reflexão, me deparo com muitas outras pessoas que parecem levar o mesmo fardo e talvez a mesma reflexão. Mas o curioso dessa história, e ai essa é uma percepção puramente minha, é a atitude um tanto quanto filosófica do motorista do ônibus, que em uma reta, ao avistar um decline na pista da esplanada, acelera o ônibus e desce em alta velocidade, provocando nos passageiros aquele friozinho na barriga igual o da montanha russa. Isso acontece por causa da adrenalina, não sou nenhum fã de esportes radicais, mas sei que a drenalina é uma substancia produzida pelo corpo humano e liberada no organismo quando o indivíduo, por algum motivo, se depara com uma situação aparentemente de risco. Basicamente essa substancia aumente a freqüência cardíaca deixando o corpo pronto e atento para uma ação rápida e essencial. É isso que acontece no caso do ônibus, a velocidade, a descida brusca e repentina pela pista. Começa como um ansiedade latente, que logo se materializa em uma espécie de bolha de ar no estômago, que vai crescendo e subindo pelo esôfago conforme o ônibus aumenta sua velocidade na descida, no fim de um segundo essa bolha explode na boca em um leve suspiro que termina inevitavelmente com um sorriso de canto de boca. Essa sensação boba é suficiente para varrer para longe o desanimo. Agora muitos me perguntaram, o que tem de filosófico e mesmo de curioso nessa besteira banal que acabo de descrever?
O ponto é, essa atitude simples, e provavelmente despropositada, levanta um questionamento sobre o fardo e o desanimo da vida, seja lá por que motivos forem, por trabalhar no sábado ou no domingo, ou mesmo não trabalhar. A leve sensação de adrenalina provoca uma quebra no cotidiano, parece acordar todo mundo sacudindo o desanimo e chamando a vida a tona, como um formigueiro que você sacode para instigar as formigas. A adrenalina parece nos dizer que perante o perigo da morte ( mesmo que esse perigo seja um simples ônibus numa descida) nada mais importa a não ser preservar a vida, e assim qualquer fardo fica pequeno. E como se a sensação sentida confirmasse para mim mesmo que realmente estou vivo. O motorista um tanto quanto filosófico, parece utilizar de uma metáfora para afirmar a vida mesmo nas desavenças de sábado de manhã, para lembra aos tripulantes que antes de tudo vem a própria vida como problema essencial e insolúvel, ante isso qualquer preocupação ou angústia se torna mesquinharia. Assim sendo para os que perceberam a metáfora do motorista ou não, eu afirmo, viva a filosofia do banal, pois ele vai além da metafísica!

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Estética do observador




De minha quase que natural inclinação a solidão, associada a minha vivência urbana, típica das metrópoles cosmopolitas do mundo contemporâneo, acabei por desenvolver um alto grau de singularidade frente a sociedade que me rodeia. Sou só mais um transeunte anônimo caminhando pelas ruas da cidade, pelas praças, dentro dos ônibus e metros. E tudo que meus sentidos captam do mundo externo e automaticamente interiorizado e peculiarmente tornado meu, tornado eu. Tenho livre acesso as mais modernas e tecnológicas fontes de informação, que derramam por sobre meus olhos e ouvidos quase todo o conhecimento já produzido pela humanidade por séculos e séculos, e isso só depende de um simples movimento do meu dedo indicador por sobre o mouse. Voraz consumidor de saber, bebo conhecimentos de todos os tipos, de filosofia grega a bossa nova, de fenomenologia a geopolítica, de cinema novo a surrealismo...
A contradição disso tudo é que dentro de toda essa multiplicidade do mundo pós-moderno acabei por me torna incapaz dos mais simples exercícios de sociabilização. Praticamente um eremita na cidade! Tudo fora de mim parece estranho e hostil, já não sinto intimidade com nada. Participo dos mais diversas culturas e subculturas contemporâneas, mas não pertenço a nenhuma. Eterno estrangeiro de todos os lugares! Ando em meio as multidões, mas estou sempre só. Olho para as pessoas e sei que são humanas como eu, e ainda assim pareço pertencer a uma raça única e já extinta. E é daí que surge o que chamo de estética do observador.
Da janela de meus olhos observo o mundo lá fora. Ele é vasto e diverso, sem começo nem fim, sem centros ou mesmo periferias, caótico e extremamente organizado, sublime e apavorante! Um macro sistema global formado por inúmeros micro sistemas locais. Um enorme emaranhado de culturas tão iguais quanto diferentes. Em suma um enorme caldeirão de relações de poder, impossível de ser analisada como um todo por indivíduos que são só seus fragmentos, e por tanto só podem dar conta de analisar fragmentos. Querer mais do que isso é como pedir a uma formiga que explique o que é um continente.
Como já não tenho pretensões de entender a existência como se ela fosse totalmente inteligível e o racionalismo cartesiano me parece banal, me contento em apreciar o quanto posso ver e sentir do mundo e o quanto posso particularizar isso como meu mundo. Aprecia-lo como se dele não fizesse parte, como mero observador, como um voyeur da vida. Olhar para o mundo como se uma película fina, porém intransponível me separasse dele. Assim tudo se torna belo e contemplativo, até mesmo os horrores humanos, pois no fundo tudo se resume a estética, a como percebemos as coisas, todas as ideologias, filosofias e religiões não passam de estética. A sociedade é uma grande farsa, um teatro de máscaras, um filme sem fim onde sou o único expectado do lado de fora da tela, que na verdade é meu lado de dentro. Minha ânsia de mudar o mundo tende a se apaziguar, pois já percebi que o mundo não precisa de mim para muda-lo, ele faz isso naturalmente. E a mim, cabe apenas notar essas modificações e quem sabe escrever algo sobre elas como puro exercício de estética...
Obs: Estética é normalmente definida como o estudo do belo. Mas prefiro adaptar essa definição para o estudo das formas de percepção do belo.